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Por Vanderlei Cardoso*: Na escola estadual Sales Gomes, em Tatuí, SP, o aluno do ensino médio Eliel Constantino, descobriu, no então recém-lançado YouTube um material que resolvia as dificuldades de seus colegas com geometria espacial. “Era um problema com pirâmide; lembro até hoje”, conta. Entusiasmado, […]
Publicado em 09/11/2021
Por Vanderlei Cardoso*: Na escola estadual Sales Gomes, em Tatuí, SP, o aluno do ensino médio Eliel Constantino, descobriu, no então recém-lançado YouTube um material que resolvia as dificuldades de seus colegas com geometria espacial. “Era um problema com pirâmide; lembro até hoje”, conta. Entusiasmado, indagou o professor de matemática sobre o uso de novas ferramentas e teve a má sorte de se deparar com um ‘negacionista’. “Vai se graduar em matemática e vem aqui fazer melhor”, respondeu o professor. Dito e feito. Constantino é mestre em educação matemática e atua na formação de professores.
Seu primeiro contato com um computador foi em 2001, pouco após sua alfabetização, quando a irmã mais velha começou um curso de espanhol. “Era daquelas máquinas com um monitor que ocupava toda a mesa, que levava 10 minutos para ligar”, lembra. O pai nunca tinha mexido em um computador, mas era formado no EAD que existia antes, em um curso técnico por correspondência. Afinal, na escola em Tarumã, SP, uma cidade de 8 mil habitantes, só chegou computador na escola municipal em 2003, quando tinha nove anos. “Eram dois alunos por máquina e nem se podia ligar sem a supervisão do professor.”
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Em 2007, quando tinha se mudado para Cerquilho, usava a conexão de internet da lan house para acessar Orkut, MSN e salvar as pesquisas escolares em um pen drive. “Internet em casa, só com 16 anos, no segundo ano do ensino médio”, conta. Aquela “máquina branca” (como a família saudosamente se refere), de 2001, teve a sobrevida esticada até 2009.
Na casa de Rafaela Lima, mestre em biologia e professora de escolas estaduais e privadas no Rio de Janeiro, o computador chegou também em 2001, com internet discada, por dificuldades técnicas e financeiras de ter banda larga na comunidade da Maré. Ao mesmo tempo que dava um jeito de acessar Orkut e MSN, as febres daquela geração, desenvolveu habilidade digital que começou a aplicar logo no início de sua carreira no magistério, no final da década.
“Em 2010, já procurava usar os recursos nas aulas expositivas. Mesmo em escolas particulares, o acesso à internet era limitado para os alunos. Em 2007, chegou a haver lei que proibia uso de celular na escola. Só em 2019 consegui levar a internet para dentro da sala de aula, com um modem no notebook”, descreve.
Quando ingressou na rede pública, teve a ideia de disponibilizar resumos das aulas em vídeo, para atender aos alunos que perdiam aula. O objetivo inicial se frustrou pela dificuldade de consumo de vídeo, por limitações nos planos de dados. “Na escola pública, 70% têm celular, mas alguns esperam a mãe chegar do trabalho para usar o aparelho com crédito”, constata. Contudo, o canal Mais Ciência, criado em 2015, ganhou alcance nacional, hoje tem 170 mil inscritos e desde 2017 é monetizado. “A pandemia trouxe um boom no canal. Os próprios professores começaram a usar mais. No YouTube, grande parte dos acessos a vídeos educacionais é gerada por links no Google Classroom ou no Google Docs”, menciona.
Embora as segmentações etárias classifiquem os professores nas gerações Y e Z (com meados da década de 90 como marco), ambos cresceram aprendendo a usar a tecnologia disponível em seu próprio processo de aprendizado. Quando Rafaela Lima nasceu, usar um caixa eletrônico ainda era novidade e só havia PCs em grandes companhias. Apesar da pouca diferença de idade, Eliel Constantino conheceu um cenário diferente. A reserva de mercado tinha acabado dois anos antes de ele nascer. O câmbio, junto a políticas setoriais, começavam a popularizar a “informática”.
Em 1997, o programa ProInfo iniciava a distribuição de cerca de 150 mil computadores às escolas públicas, A internet era incipiente, até porque dependia de telefone fixo, que, por sua vez, era acessível a menos de 10% da população.
Há 25 anos, a experiência digital era irreconhecível para quem veio depois. Com os monitores pesados, o compartilhamento de arquivos era feito com disquetes (de 1,44 MB) e a internet atingia poucos e pacientes usuários de conexões a 28 Kbps (0,1% dos planos básicos de banda larga atuais). Até os dados sobre esse período são escassos, o que o faz parecer distante mesmo para os mais velhos.
A Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) só contabiliza a penetração de computadores a partir de 2001, quando estava em 12,23% dos domicílios. A TIC Educação é realizada pelo Cetic.br desde 2010, inicialmente com foco em computadores e conectividade. “Começamos a medir o uso de plataformas só em 2013 e não dimensionamos ondas como o MSN e o Orkut”, menciona Daniela Costa, doutora em educação e coordenadora da pesquisa.
Junto a toda a jornada de evolução da indústria em computadores, velocidade de acesso, sobretudo a mobilidade e nuvem, as redes sociais mudaram o jogo em meados da primeira década do século. Em 2007, o Brasil representava a maior base mundial de usuários do Orkut e a segunda do MSN. O MySpace tinha 3% do mercado, seguido da brasileira Via6, e o Facebook apenas 1%, segundo o Ibope/NetRatings. Entre as edições de 2013 e 2019 da TIC Educação, o Facebook tinha 79% em 2013 (entre alunos e professores com conta) e 62% em 2019. O WhatsApp era usado por 20% em 2014; 79% em 2015; e 85% em 2019. Em 2014, 6% usavam o WhatsApp para trabalhos escolares e 61% em 2019, e o Facebook vai de 11% a 30% na mesma comparação.
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De acordo com uma estimativa da Accenture, feita em 2018, US$ 11,5 trilhões podem ser adicionados ao PIB global até 2028 se os países conseguirem preparar melhor os alunos para as necessidades da economia futura. “Sistemas desatualizados limitam o acesso às habilidades necessárias para impulsionar as economias e representam risco à produtividade”, advertia o Fórum Econômico Mundial, no estudo Escolas do futuro, definindo novos modelos de educação para a 4a Revolução Industrial, publicado em janeiro de 2020.
Cientes desta transformação desde o início da era da informação digital, tanto os agentes econômicos quanto os educadores tinham suas estratégias, com acertos e erros, para formar pessoas com habilidades tecnológicas. Até que surgiram aplicações, modelos comerciais e mudanças de cultura que balancearam o direcionamento das inovações e estabeleceram novos protagonistas.
No início do século, a filha do diretor de tecnologia de uma companhia de saneamento pediu para usar o MSN no escritório do pai enquanto o esperava. “Aqui é bloqueado”, disse o engenheiro, logo depois, a menina de 11 anos, lhe informou sobre um site que ensinava a contornar, embora estivesse perplexa por não ver nenhum sentido no bloqueio, já que o pai às vezes ligava para casa do telefone fixo da empresa. Devido à sua inclusão, privilegiada e precoce, ela representava a primeira geração em que a conexão digital fazia parte do cotidiano.
Quase duas décadas depois, tanto as empresas quanto os gestores de ambientes escolares, por exemplo, aprenderam a ter flexibilidade para se moldar a esse novo público de funcionários ou alunos.
“Durante a pandemia, as redes sociais foram uma salvação. As lives mantêm a conexão entre alunos e professores, quando têm condições de acessar. O WhatsApp funciona com acesso ruim e tem sido o jeito de manter a comunicação”, exemplifica Rafaela Lima.
Além das aplicações de mensagens e redes sociais, os buscadores, as wikis e blogs já criavam, na prática, novos hábitos de aprendizado. Em 2006, chega o YouTube e abre caminho para novos hábitos de ensino, com muitos professores na home do site. “Os canais de maior sucesso são diferentes das aulas tradicionais. É preciso aproveitar os recursos digitais na medida certa e criar um estilo atraente aos alunos”, diz Constantino.
No ambiente escolar, Emílio Loures, diretor para assuntos de responsabilidade corporativa da Intel, destaca a disseminação de redes Wi-fi, também em meados da década. “A conectividade na escola era um ponto crítico. Com o acesso móvel, o computador saía do laboratório e ia para a sala de aula” lembra. Portanto, conforme a TIC Educação, em 2020, 68% do total de escolas possuíam acesso à rede na sala de aula e 51% disponibilizavam acesso para os alunos.
“Tão importante quanto melhorar a conectividade nas escolas é a distribuição do acesso a professores e alunos”, enfatiza Tomas Fuchs, diretor do Grupo Datora e cofundador do Instituto Escola Conectada, ONG constituída em março por ISPs (provedores regionais de serviços de internet) para fornecer conexão de alta velocidade a escolas públicas.
Logo após a primeira implementação, em Miracema, RJ, uma aplicação imediata de EAD (ensino a distância, que, paradoxalmente, às vezes aparece como tradução de e-learning) já resolveu uma limitação – um professor contraiu covid e deu aulas virtuais para alunos presencialmente na escola.
A infraestrutura de acesso continua prioritária, o que justifica inclusive a iniciativa do Escola Conectada. Em relação à infraestrutura de computação, Fuchs lembra de outra grande transformação, com a computação em nuvem. Entretanto, além de eliminar o desgaste com servidores, instalação de software e outros contratempos inevitáveis há pouco mais de 10 anos, as aplicações em nuvem trouxeram outra grande transformação: o uso e o aprendizado no mesmo movimento. “Em meados da década de 90, a Datora tinha cursos de Windows e aplicativos. No início um público de jovens e crianças e chegamos a trabalhar em escolas, a principio mantivemos a oferta de cursos, mas 20 anos depois praticamente todos os alunos eram idosos”, menciona.
Além disso, no que se refere aos dispositivos, a popularização dos smartphones Android foi outro marco do uso da tecnologia no processo educacional. Conforme a TIC Educação 2019, 98% dos usuários acessam internet pelo celular e outros dispositivos e 18% exclusivamente pelo celular, desta forma, a parte mais produtiva dessa massificação é a facilidade de incorporar vídeos e outras formas de captura de informação nas atividades escolares.
Em contrapartida, a falta de dispositivos de “tela grande”, que já dificulta até assistir a uma aula, limita a experiência de produção de textos. “Vlogs, podcasts e até memes podem ter uma linguagem próxima à fala dos jovens, mas não usam a linguagem cotidiana. Há um objetivo deliberado, um desencadeamento de ideias e um cuidado maior com a sintaxe e o léxico. É texto”, esclarece Cristiana Mori, linguista e consultora pedagógica do Instituto Singularidades.
Daniela Costa, do Cetic.Br, observa que os “laboratórios de informática” vinham se esvaziando. Em 2015, 58% das escolas públicas tinham e em 2017 eram 36%, por outro lado, em 2019, voltam a 54%. “Mas hoje é outro tipo de uso. São ambientes que ficam disponíveis para pesquisa, edição e outras iniciativas”, pondera.
Os efeitos da pandemia no trabalho, na continuidade dos serviços e, evidentemente, na educação teriam sido ainda piores se não houvesse uma transformação em curso e acelerada na década passada. A TIC Educação 2020 revela que em 88% das escolas particulares e 86% das estaduais há algum uso de plataformas de videoconferência, além disso, antes da pandemia apenas 21% das escolas ofertavam conteúdos e atividades para os alunos na modalidade online.
Contudo, em relação a soluções mais estruturadas, com plataformas específicas para a atividade escolar, a TIC Educação passou a medir o uso de ambientes virtuais de aprendizado em 2016, quando era encontrado em 22% das escolas urbanas, o que passou para 28% em 2019 e 66% em 2020. “A evolução dos ambientes virtuais de aprendizagem começou a ocorrer para valer em 2019”, avalia Rafaela Lima.
Conforme a pesquisa Volta às aulas pós-pandemia, realizada entre maio e junho de 2020 pelo Instituto Crescer, 33% dos entrevistados vislumbram um modelo semipresencial com rodízio de alunos, índice que chega a 47% entre as escolas privadas. Mesmo com as incertezas que predominava naquele momento, para 55%, e havia previsões apocalípticas nos dois extremos: 7,2% acreditavam que tudo voltaria a ser como antes e 8,6% apostavam no trabalho exclusivamente online.
Mesmo com as incertezas, 61% reconhecem que a pandemia foi propulsora de modelos remotos que tendem a se desdobrar. “As possibilidades experimentadas no novo ambiente não vão deixar de existir”, constata Luciana Allan, diretora técnica do Instituto Crescer.
“Se o professor insistir em segregar o presencial e o online, e deixar de ver a atividade escolar e o aprendizado digital de forma integrada, a tecnologia é só adorno”, afirma Eliel Constantino. Ele esclarece que o papel tradicional das aulas expositivas e conceituais, permanece importante, mas agora pode ser inserido em contextos mais ricos.
“Em 2020, estimulei a criação de um portfólio virtual com aplicações práticas de matrizes em várias áreas, como biologia e engenharia, para dar sentido ao conteúdo da grade. O aluno hoje demanda menos a informação do professor, porque procura um vídeo ou pergunta aos colegas. Então faço ele mesmo produzir um vídeo, um artigo ou um post, para sistematizar e compartilhar o conhecimento”, exemplifica.
Portanto, sem sugerir nenhum retorno aos laboratórios e cursos de informática dos anos 90, com ensino focado nas ferramentas, Emílio Loures, da Intel, adverte que tecnologia também se aprende na escola. E questiona o jargão dos nativos digitais.
“Se a exposição à tecnologia capacitasse por si só, não teríamos deficiência exatamente nesse setor. Uma coisa é navegar com alguma familiaridade, mas entender a lógica e ter capacidade de análise vai além da tecnologia. Sistema educacional é fundamental para lidar com fake news, ética social e privacidade”, argumenta. “Entender os algoritmos, as aplicações e seus desdobramentos é saber como o mundo funciona”, acrescenta.
“A digitalização é um caminho sem volta. Como e para quem é que ainda não se sabe”, reconhece a coordenadora da TIC Educação.
Alfabetização digital se torna missão obrigatória para as escolas