NOTÍCIA

Edição 283

Educação profissional: a sina do patinho feio

No conjunto do ensino público brasileiro, a Educação Profissional Técnica de Nível Médio (EPT) tem sido, historicamente, o patinho feio de uma história de pouco encanto. Não ocupa as manchetes dos jornais, seu declínio até quase a extinção pouco mobilizou a sociedade, seus problemas não […]

Publicado em 10/03/2022

por Paulo de Camargo

No conjunto do ensino público brasileiro, a Educação Profissional Técnica de Nível Médio (EPT) tem sido, historicamente, o patinho feio de uma história de pouco encanto. Não ocupa as manchetes dos jornais, seu declínio até quase a extinção pouco mobilizou a sociedade, seus problemas não movimentam políticos, não provocam grandes congressos, nem fazem brilhar os olhos das edtechs – não, pelo menos, da forma como ocorre na educação básica regular e no ensino superior.

Com tanto tempo de estagnação, o resultado dessa história pode ser contado em números que ilustram como o mundo desenvolvido seguiu a direção contrária e vem dando crescente atenção ao tema. Segundo os dados mais recentes do Education at Glance 2021, relatório sobre educação global publicado pela OCDE, apenas 9% dos concluintes de ensino médio no Brasil estão em cursos profissionalizantes – contra 38%, em média, nos países que integram a organização de nações desenvolvidas. No outro extremo da lista estão países como a Áustria, com 76%, a Suíça, Reino Unido e Eslováquia, com mais de 60% dos formandos prontos para ingressar no mundo do trabalho.

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Leia: Mitos, dilemas e desafios da educação profissional

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Para muita gente, o insucesso das políticas para o setor no Brasil parece um drama sem fim. É claro, existem casos de excelência – que atendem pelo nome de Senai, Senac, Institutos Federais de Educação, Fundação Paula Souza. Mas o fato é que essa opção nunca conseguiu se estabelecer como uma alternativa real para 80% dos alunos brasileiros que não tiveram a oportunidade de chegar ao maior sonho de ascensão social – a universidade. Pior, devido à qualidade acima da média, muitas instituições públicas que oferecem EPT atraem as classes médias, provocam filas, seleção de melhores alunos que, ao final, consideram a passagem pela escola técnica apenas um pedágio para chegar mesmo aonde sonhavam, a universidade.

Os sistemas de educação profissional dos países asiáticos estão entre os mais reconhecidos do mundo. Nesta escola japonesa, os alunos têm carros e motos à disposição para aprender sobre mecânica dos motores
(foto: arquivo/Paulo de Camargo)

Mas, há sinais de mudança no horizonte. Eles chegam por meio de iniciativas dos estados, como o Ceará, Piauí, Pernambuco e Paraíba, e podem ganhar novo fôlego com a implantação do novo ensino médio, que começa oficialmente a acontecer em 2022.  Um dos objetivos de fundo da reforma estabelecida em lei de 2017 é justamente o impulsionamento da EPT na forma do itinerário formativo, na lógica da flexibilização curricular.

Claro, tudo depende da forma como isso vai acontecer. Mas, pelo menos, o debate volta à mesa. Como era de se esperar, entre as muitas mudanças trazidas pela reforma desta etapa, a abertura de espaço curricular para a educação profissional de forma integrada ao currículo geral foi a que menos chamou a atenção pública, mas trouxe de novo o debate à tona, mobilizando pesquisadores, que produzem estudos, mobilizando organizações sociais e também governos, especialmente os estaduais.

Mas, por que é tão difícil levar adiante um projeto de educação técnica e profissional? Acontece que este é um processo que depende de múltiplos fatores, como articulação entre instâncias de governo e setores produtivos, mas esbarra ainda mais fortemente em uma mudança de chave cultural.

A educação profissional carrega um estigma secular, que separa a educação de ricos e pobres. No Brasil, já na primeira iniciativa, em 1909, com o presidente Nilo Peçanha, a EPT foi ofertada como uma ação pelos desvalidos, para dar ao povo ao menos uma ocupação – possivelmente aquela em que estacionaria o resto da vida

Apesar dos esforços dos muitos militantes da educação profissional, do movimento da Escola Nova, do surgimento do chamado Sistema S e de diferentes iniciativas, até hoje pouco mudou na percepção social: para boa parte da sociedade, a escola regular deve preparar para a universidade, caminho das elites; a educação técnica é o caminho do trabalhador braçal.

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Leia: Novo ensino médio: currículo nunca foi tão discutido

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Origem medieval

Para um dos mais influentes debatedores do tema no Brasil, Cláudio de Moura Castro, esse sempre foi um ponto de clivagem, que vai além da história do Brasil. Segundo diz, a cisão vem pelo menos desde a parte final da Idade Média. De um lado, na nascente universidade sob a influência escolástica, o registro da abstração, do pensamento, da lógica. Do outro, as corporações de ofícios, em que o artesão aprende com o mestre.

“A universidade nasceu na estratosfera e ainda não perdeu essa afinidade”, ironiza Castro, que interrompeu o trabalho com sua coleção de formões para dar esta entrevista. “O mundo de cima tem ojeriza pelo mundo de baixo”, diz esse ph.D. em economia que estuda o tema desde a década de 1970.

Desde então, a separação entre a nobreza do trabalho intelectual e o mundo concreto das ocupações manuais só se fortaleceu. Onde, por razões históricas, o preconceito foi superado, como nos países germânicos, a educação profissional prosperou mais rapidamente e de forma mais estruturada. Hoje, segundo explica Castro, Alemanha, Áustria e Suíça têm os modelos mais avançados – mas de tal complexidade que é difícil que se realizem fora daquela cultura. Lá, a integração entre educação e trabalho, no plano burocrático e econômico, entre empresas e escolas, está estabelecida e enraizada na sociedade.

Mas, especialmente na segunda metade do século 20, as coisas começaram a mudar pelo avanço tecnológico. Se nos anos 1800 um produto tecnicamente sofisticado como um violino Stradivarius nascia da competência de um prático, no mundo contemporâneo o avanço da tecnologia vem promovendo um reencontro entre mãos e cabeça. Que o diga o mecânico que tem de aprender a lidar com um carro do século 21. Lidar com eletricidade, internet, sensores, sistemas automatizados requer cada vez mais competências integradas.

Desse ponto de vista, pode parecer lógico que a escola básica e o ensino superior ofereçam caminhos profissionais, na forma de cursos técnicos e tecnológicos. Mas as barreiras persistem, e o Brasil pouco avançou nos últimos anos. Segundo o Anuário Brasileiro da Educação Básica, em 2020, 1,9 milhão de jovens estavam matriculados em cursos técnicos (dos quais 62,2% na rede pública), um avanço de apenas 6,4% em uma década – o que deixa o país cada vez mais longe de atingir a meta do Plano Nacional de Educação de triplicar o número de matrículas até 2024.

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Leia: Aproveitamento da tecnologia digital requer transformação cultural e didáticas inovadoras

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Um olhar mais próximo para esses números, no entanto, permite ver desigualdades regionais. Alguns estados avançam de forma consistente, e já possuem um quarto das matrículas de ensino médio no modelo das EPT. É o caso do Espírito Santo, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Sul e Rio Grande do Norte.  Diferentes modelos são ofertados, tornando a EPT um complemento ao currículo do ensino médio regular, e criando formas alternativas, como ocorre hoje, quando a formação pode ser subsequente, concomitante ou integrada à etapa média, e também integrado à EJA, em tentativas de atender diferentes tipos de público.

Essa forma de oferta é a forma visível de outro grande campo de disputas que envolveu a educação profissional, nos últimos 100 anos. Conforme explica o economista Simon Schwartzman, ex-presidente do IBGE e um especialista brasileiro de projeção internacional, entre os grupos que se polarizaram ao longo do tempo estão os que, inspirados nas ideias do teórico marxista Antônio Gramsci (1891-1937), defendiam a ideia de que a educação técnica burguesa acabava por reforçar as condições de reprodução da organização econômica. Ou seja, serviam para formar massa trabalhadora alienada. Muitos teóricos e movimentos sociais importantes defenderam e defendem essa posição.

Para eles, modelos de ensino técnico integral deveriam ser oferecidos de forma complementar à escola regular – na qual os filhos dos trabalhadores deveriam ter as mesmas condições de formação dos filhos das elites e poder desenvolver competências politécnicas. Como consequência imediata, a escola regular se afasta das questões do mundo do trabalho e a formação técnica requer mais tempo de formação.

“Essa discussão precisa ser feita com cuidado, porque há pressupostos falsos, como o de que basta fazer ensino técnico para conseguir emprego. O ensino médio técnico precisa, sim, trazer a vida real para a escola, a educação tecnológica, mas a profissionalização não deve ser precoce demais. Só deve acontecer depois dos 18 anos”, diz Carlos Artexes Simões, ex-coordenador de ensino médio do MEC, com uma carreira inteira feita no campo da educação tecnológica.

Carlos completa: “Não se pode correr o risco de reduzir a formação geral dos mais pobres. Esse é o chamado dualismo estrutural, com a educação plena para as elites e uma reduzida para os demais”.

De qualquer forma, na visão de especialistas da área, a característica de ser um currículo adicional ao já superdimensionado programa do ensino médio básico, distante da realidade dos alunos, acabou também dificultando a adesão dos jovens, com urgência de trabalhar. E, em que pesem a importância da discussão e os argumentos de parte a parte, é preciso olhar para o mundo dos jovens. As pesquisas mostram o quanto a escola é vista como algo distante da real e que não prepara para um futuro cujo primeiro desafio é o emprego.

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Leia: Professoras discutem a construção cultural que resultou na feminização do trabalho docente

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Os jovens e a EPT

Bons argumentos não faltam para defender a EPT, e cada vez mais estudos chegam para corroborar a linha de defesa. Há três meses, um estudo conduzido pelos economistas Sérgio Firpo e Alysson Portela, do Insper, trouxe uma proposta de Indicadores de Qualidade do Egresso do Ensino Técnico, como forma de trazer evidências para que a expansão da oferta aconteça com qualidade.

Elaborando microdados da Pnad, os pesquisadores mostraram que os indicadores da qualidade de ocupação (que reúnem fatores como salário, duração e tipos de emprego) da EPT são consideravelmente superiores aos do ensino médio, ainda que inferiores ao ensino superior. “Os indicativos são de que egressos da EPT têm boa inserção no mercado de trabalho, e o ganho principalmente acontece na formalidade, salários e na rotinização das atividades”, explica o estudo, que terá novos desdobramentos.

Para Carla Christine Chiamareli, gerente de gestão de conhecimento do Itaú Educação e Trabalho, que patrocinou essa pesquisa, estudos como esse têm o objetivo de oferecer evidência para a construção de políticas públicas, o monitoramento dos egressos da EPT e também para conscientizar as empresas. Para ela, o caminho da educação profissional no Brasil passa pelo aumento da oferta e, ao mesmo tempo, pela garantia da qualidade. “Para isso, um dos pontos importantes é olhar para a trajetória do aluno que sai do ensino técnico”, explica.

“Temos de expandir e com qualidade, mas com que alternativas? Quais modelos? Como democratizar o acesso?”, questiona Carla.

Em sua visão, o processo passa também pela melhoria da informação que chega aos jovens. Para quem pensa que os estudantes não se interessam pelo ensino médio, a pesquisa Percepções dos jovens sobre o ensino técnico, publicada em agosto de 2021 pelo Itaú Educação e Trabalho para a Fundação Roberto Marinho e pelo CDE, mostra o contrário.

Temos de expandir e com qualidade, mas com que alternativas? Quais modelos? Como democratizar o acesso?”, questiona Carla Christine Chiamareli
(foto: divulgação)

Ouvindo 1.000 jovens de 9º ano de ensino fundamental e 1ª série de ensino médio da rede pública, o estudo mostrou que a falta de acesso e conhecimento são os principais motivos para os jovens não considerarem a modalidade atrativa. Mais da metade dos entrevistados disse simplesmente não conhecer nenhuma escola de EPT, e 77% dizem ter baixo ou nenhum conhecimento sobre esse tipo de ensino. A rejeição é baixa: 62% dos alunos considerariam essa possibilidade.

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Leia: O papel da escola para além do conteúdo

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As discussões atuais sobre a EPT caminham na lógica da articulação curricular, o que é fortalecido na proposta do Novo Ensino Médio, que dividiu o currículo entre 60% do tempo destinado à Formação Geral Básica – esta sim, para todos – e 40% para os itinerários, entre eles o da educação técnica profissional. Nessa perspectiva, os temas do mundo do trabalho são incorporados ao currículo da educação média, e os alunos podem aprender os conteúdos específicos das disciplinas no exercício do aprendizado profissional. Em tese, claro, há muito a se comprovar. Mas, certamente, o ano de 2022 será muito importante para que as experiências bem e também as mal-sucedidas sejam conhecidas e avaliadas.

Há experiências interessantes em curso. A Paraíba, por exemplo, iniciou, em 2017, a Escola Cidadã Integral Técnica. Começaram com 3 escolas e hoje passam de uma centena. Com foco no protagonismo juvenil, as escolas foram equipadas com laboratórios tecnológicos diversos, como de robótica e física. “A riqueza do processo é que os estados aprendam uns com os outros, e isso não significa importar modelos, porque as soluções precisam responder às demandas do território”, diz Carla. Da mesma forma, Pernambuco tem longeva experiência nascida com os ginásios pernambucanos, e o Ceará vem expandindo sua rede de escolas integrais em forte ritmo.

Isso ainda não basta para se criar uma educação profissional organizada, consistente. Falta, na verdade, uma política mais ampla de desenvolvimento profissional para os jovens. A educação técnica e profissional precisa ser entendida como o começo de uma trajetória profissional e não seu marco final.

Daí, também, a importância de um diálogo efetivo com o ensino superior – que continua sendo uma possibilidade conforme a trajetória escolhida pelos jovens. Afinal, ter acesso a todas as possibilidades possíveis de integração na sociedade, à educação e ao trabalho não é uma opção – é um direito que assiste a cada um dos jovens brasileiros.

Escute nosso podcast:

Autor

Paulo de Camargo


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