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Professores censurados por parte das famílias e de algumas escolas é uma realidade no Brasil e cresceu com o avanço do movimento Escola sem Partido. A suposta existência do “kit gay” e de uma “ideologia de gênero” nas escolas detonou uma onda de perseguições a […]
Publicado em 17/05/2022
Professores censurados por parte das famílias e de algumas escolas é uma realidade no Brasil e cresceu com o avanço do movimento Escola sem Partido. A suposta existência do “kit gay” e de uma “ideologia de gênero” nas escolas detonou uma onda de perseguições a partir de 2016. Três anos depois o movimento sofreu derrotas jurídicas e dissensos, enfraqueceu, mas cravou seus pressupostos no imaginário de parte da população.
Fernando Penna, diretor da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, acompanhou o Escola sem Partido desde sua origem. Para ele, “o movimento refluiu, mas a perseguição aos professores não arrefeceu; a adesão a essas práticas reacionárias foi muito grande, não depende mais da articulação de um movimento, está no país inteiro”. Sobre professores que acreditam no aumento da censura com a proximidade das eleições de outubro, Penna concorda e explica: “Bolsonaro mobiliza sua base por meio da manipulação política do pânico moral”. Os relatos a seguir, inclusive com nomes fictícios, evidenciam as dificuldades que os educadores vêm enfrentando nos últimos anos.
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O temor da perseguição, de sofrer violência física, ou de perder o emprego podem levar o professor à autocensura e essa “é a consequência mais grave da censura”, afirma Penna. “Não se trata de responsabilizar os professores, é um problema político, coletivo, que demanda uma resposta de toda a sociedade. O grande prejudicado é o aluno, que não tem acesso pleno ao seu direito de educação.”
Danilo dos Santos é professor de história na rede pública, atua na zona rural de Camanducaia, MG, e aponta a dificuldade de apresentar a cultura afro-brasileira.
“Uma aula para o 7º ano resultou em acusação de exaltação ao diabo”, conta Danilo.
Também enfrentou um pai militar depois de falar sobre a influência do racismo científico do século 19 na criminologia brasileira para alunos do 3º ano do ensino médio. Para sua defesa, Santos utiliza o plano de aula, onde detalha suas fontes.
Cláudio Ferreira, professor de filosofia na rede pública paulista, na zona norte da capital, conta que nunca sofrera censura em mais de duas décadas de atuação até ser chamado à direção da escola, em 2017. A reclamação: falar muito de política. “Uma aula foi gravada, o que é ilegal; avisei que tomaria providências.” Ele explica que no currículo do 2º ano do ensino médio há questões relacionadas à identidade, à origem da política nas sociedades grega e romana, além das relacionadas à ideologia e à alienação. A polêmica não foi adiante, mas a atuação da diretoria gerou forte constrangimento.
O professor lembra que “graças à luta de educadores e da sociedade civil, a educação alcançou status importante na sociedade, inclusive com a liberdade de cátedra”. E completa: “Vou continuar professando”.
Uma festa literária gótica resultou em ameaça de processo contra professores em um campus do Instituto Federal do Amapá. Fernanda, professora de sociologia, conta que um dos pais soube do evento por meio de foto nas redes sociais em que sua filha estava deitada num caixão: “Ele chegou à escola com a Bíblia e o ECA [Estatuto da Criança e do Adolescente] nas mãos, querendo nomes”. Os alunos são orientados a detalhar aos pais as atividades, mas, nesse caso, Fernanda avalia que houve falha na comunicação entre eles. “Conversei com o pai; apesar do conservadorismo e do fundamentalismo religioso, conseguimos nos entender muito bem; às vezes, as coisas ficam inflamadas quando acontecem nas redes sociais.”
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Para ela, num contexto em que a educação se transformou na principal trincheira ideológica, o respaldo vem do plano de ensino, da BNCC (Base Nacional Comum Curricular). Em outro campus do mesmo Instituto, neste ano de 2022, Waiapi, professor de história, em sua primeira aula do ano a alunos do ensino médio, apresentou os temas transversais abordados na sua disciplina. Abordou a origem de opressões como o machismo, o racismo e a homofobia. E falou sobre sexualidade: “Em meio à conversa, mencionei a série Sex education [educação sexual em tradução livre] “.
A menção reverberou nas famílias: “Os pais foram à coordenação pedagógica dizendo que eu já tinha marcado a data para exibir a série. Expliquei que foi apenas uma menção, que eu sabia que a série era imprópria para a faixa etária, e que isso tinha sido explicado a eles”. Waiapi considera que tem sido vigiado pelos pais por ser novo no campus e tratar de temas considerados polêmicos. O fato de ser homossexual também prepondera. Há alunos gravando suas aulas e ele sabe quais são.
Professora de história por 19 anos e coordenadora por cinco, em escola estadual na área central da cidade de São Paulo, Vanda conta que, ali, a comunidade é avançada e tolerante, “há pelo menos 15, 20 anos. Muitos professores homossexuais não disfarçam, inclusive já trabalhei com uma professora travesti, concursada, muito respeitada pelos alunos”.
Mas as coisas mudaram e surpreenderam, diz ela: “por exemplo, em 2018, uma mãe que sempre foi participante, parceira da escola, pediu que uma professora homossexual, superprofissional e confiável, se afastasse de sua filha”. Como coordenadora, Vanda lembra que em episódios assim a primeira preocupação é com os alunos, mas que é preciso também apoiar os professores. No caso relatado, aluna e professora se afastaram.
Juliana foi professora de redação num colégio particular de Alphaville, em São Paulo. Inaugurou o ano letivo de 2021 de forma remota, enviando proposta de atividade para uma turma de 3º ano do ensino médio, saudando-os: “Querides alunes”. Foi chamada à coordenação. “Trabalhava nessa escola há 10 anos, o coordenador era novo, não me conhecia; ele me proibiu de usar o gênero neutro e pediu que eu parasse de militar.”
Na aula seguinte, para trabalhar introdução na redação, Juliana apresentou o curta Escola sem partido, da Cia do Latão, que denuncia a relativização de verdades históricas como a escravidão e a ditadura militar. O coordenador se sentiu afrontado. Houve reunião com as famílias e demais coordenadores; Juliana soube, então, que apenas três famílias reclamaram e que tinha o apoio dos demais coordenadores. Ela considera que se contrapor à censura é uma decisão pessoal que nem todos os professores podem tomar, pois temem perder o emprego.
Foi com o apoio da escola que Fábio Nunes, professor de produção textual e linguagem audiovisual, pôde trabalhar com seus alunos numa escola particular católica na região central de São Paulo. Lá, os alunos produziram documentários sobre gênero, pluralidade religiosa, retrataram refugiados do centro da cidade e os skatistas da Praça Roosevelt.
“Isso incomodou alguns pais, mas a própria instituição me blindou”, conta. Entretanto, anos antes, em outra escola da mesma região, Nunes vivenciou situação bem diversa. Seus alunos exercitaram técnica de construção de parágrafos com um tema dialético. “Apenas orientei, não sugeri tese nem antítese.” Sua demissão foi a resposta da escola à pressão das famílias por causa do tema da redação: “Foi legítimo o processo de impeachment?” Nunes explica que não carrega bandeiras em sala de aula ou nas redes sociais, mas o papel do professor é inequívoco: “Ser provocador”.
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Professores argumentam, com razão, que a falta de conhecimentos na área da sexualidade resulta em riscos à saúde dos alunos. Também a ignorância da sociedade em geral resulta em riscos à vida, como no caso das pessoas trans. “Nós temos alunos não binários, trans, e em transição; eles informam como querem ser chamados e fazemos mudanças internas na comunicação”, conta a professora Valéria Delbem, do particular Colégio Santa Maria, na zona sul de São Paulo. Ela explica que há resistência das famílias, há relações complexas entre os jovens, mas é um ambiente em que esses alunos se sentem seguros. “Nem sempre foi assim, a equipe mudou ao longo dos anos, aprendemos uns com os outros.”
O apoio da direção garante o ambiente inclusivo e plural. Diane Cundiff, diretora-geral do Colégio Santa Maria e educadora há 54 anos, diz que pouca coisa a assusta, mas a hostilidade contra a educação a desagrada. “Também esse movimento da ‘ideologia de gênero’ é antigo, agora está levantando a cabeça, mas se a pessoa pesquisar e estiver aberta a saber, vai perceber que é uma mentira.” Ela afirma que à direção escolar cabe esclarecer o papel social da escola. “Para os pais que acreditam que a escola é um órgão propagandista que vai formar cérebros fechados, eu digo: você não conhece o jovem. Pais, escola e governo não conseguem dizer o que o jovem tem que pensar. O papel da escola é ajudar o aluno a buscar verdades que sempre estão, historicamente, em processo de mudanças.”
A censura das famílias aos professores está vinculada a conteúdos que fazem parte da BNCC (Base Nacional Comum Curricular) ou a fatos contemporâneos que são discutidos na escola. Ao conservadorismo e fundamentalismo religioso somam-se versões distorcidas nas redes sociais, em fake news ou no “ouvir falar”, gerando reações contra os professores, na maioria das vezes, infundadas. A lista de conteúdos que se tornaram polêmicos na sala de aula vem crescendo: