NOTÍCIA

Edição 286

Educação infantil: prática pedagógica ainda é desafio

Qual é o caminho o Brasil tem trilhado na educação infantil? Como garantir a qualidade na aprendizagem das crianças? Para responder a essas e a tantas outras questões é preciso um olhar atento na situação que estamos hoje. Por isso, a Fundação Maria Cecilia Souto […]

Publicado em 04/07/2022

por Mariana Gonzalez

Qual é o caminho o Brasil tem trilhado na educação infantil? Como garantir a qualidade na aprendizagem das crianças? Para responder a essas e a tantas outras questões é preciso um olhar atento na situação que estamos hoje. Por isso, a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal (FMCSV) promoveu um estudo, em 2021, com 12 municípios e 3.467 turmas, em 1.807 unidades educacionais, e apresenta um retrato dessa situação com destaque também para a aplicação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). “Ainda que não seja uma amostra representativa do Brasil, é o maior estudo já realizado sobre esse tema. Em 2009, a professora Maria Malta Campos coordenou uma pesquisa, da qual participei como assistente, e publicada pela Fundação Carlos Chagas. Quando olhamos o panorama de 2009 e os resultados obtidos pelo estudo atual, infelizmente vemos dados muito semelhantes”, comenta Beatriz Abuchaim, gerente de conhecimento aplicado da FMCSV, formada em psicologia, com mestrado e doutorado em educação. Confira, a seguir, entrevista exclusiva com Beatriz.

Educação infantil
Beatriz: o objetivo maior de fazer um estudo como este é dar subsídio para a melhoria dos processos de gestão
Foto: Divulgação/FMCSV

Quais são os aspectos relevantes da pesquisa Avaliação da qualidade da educação infantil: um retrato pós-BNCC, recém-divulgada?

Constatamos que, geralmente, temos uma infraestrutura predial melhor em relação a resultados referentes às práticas pedagógicas. Esse é um ponto que chama bastante atenção, e é muito semelhante ao levantamento de 2009. Esperávamos encontrar mais avanços nas questões pedagógicas no contexto da educação infantil, já que, neste tempo, tivemos dois importantes documentos lançados no Brasil: as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil e a BNCC. Foram poucos os avanços relativos às práticas que visam boas oportunidades de aprendizagem para as crianças. São dados que nos preocupam bastante. Porém, encontramos nessa amostra uma grande diversidade. Apesar de poucas turmas atingirem os patamares propostos pela BNCC, percebemos que eles são possíveis. Temos diferenças dentro de uma mesma rede. Se uma escola consegue avançar nesse sentido, ela pode servir de modelo para outras escolas.

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Por que algumas escolas da mesma rede avançam e outras não?

 É uma pergunta difícil de responder. Provavelmente é um conjunto de fatores. O que vimos no estudo é que quando cruzamos os dados referentes às pontuações das práticas pedagógicas e os relacionados à infraestrutura e gestão vemos fatores interessantes. As turmas com melhor qualidade nas práticas pedagógicas  provêm de escolas cujo diretor é concursado. Parece, então, que ele é um técnico, com mais profissionalização. Nesse mesmo sentido, turmas de professores que se declaram altamente identificados e motivados a trabalhar com educação infantil tendem a ter pontuações maiores. E esse é um dado que se repete em inúmeros estudos dentro e fora do Brasil. A qualidade está muito relacionada à possibilidade dar atenção individualizada à criança. Quando a turma é muito grande, com um adulto apenas, é mais difícil implementar a BNCC e dar às crianças oportunidades de aprendizagem interessantes de fato. Esses indicativos são alertas aos secretários de Educação. Por que em uma mesma rede há escolas beirando a excelência e, em outras, o  que se vê é inaceitável? Como estimular redes de cooperação entre essas escolas?

O que é inaceitável e o que é o mínimo aceitável?

Inaceitável é tudo o que viola os direitos das crianças. Infelizmente, algumas turmas de escolas que visitamos nos relataram casos de violência verbal e física. Isso não deveria acontecer. As pessoas devem ser punidas. Elas violam a lei dentro da escola, dentro da própria sala de aula, na presença de um observador externo. Esse tipo de comportamento do adulto é naturalizado de alguma maneira. Observamos violência verbal em 10,8% das unidades estudadas. Encontramos 3% de interações físicas negativas, que é um ponto de atenção para a gente. Isso é inaceitável. Em termos de infraestrutura, há condições precárias que colocam em risco a vida das crianças e dos profissionais, por exemplo, fios desencapados dentro da sala. Rodas essas situações são inaceitáveis. Quanto às práticas pedagógicas, consideramos condições mínimas aceitáveis as que dão boas oportunidades de aprendizagem às crianças. Ou seja, elas não passam o dia sem uma atividade planejada e mediada pelo professor.

Em relação ao poder público na educação infantil, como estão sendo feitos os investimentos, esforços e ações?

É notável o protagonismo dos municípios e a representação dos secretários de Educação. Durante o período da pandemia, notamos que era maior a articulação dos municípios do que do governo federal com os municípios. Na educação infantil, infelizmente, temos pouca participação dos governos estaduais. Seria muito importante que eles colaborassem mais nesse processo. Acreditamos nos modelos colaborativos,  por exemplo, dos municípios com o estado. Em geral o governo federal passa os recursos para os estados e municípios; estes enfrentam o enorme desafio que é gerir a educação infantil: veja, somos um país diverso, com mais de 5.500 municípios e realidades muito diferentes. Um estudo  de avaliação como esse é muito importante para o poder público. Eu diria que o objetivo maior de fazer estudos desse tipo é dar subsídio para  melhorar os processos de gestão. Quando entramos numa escola observamos quais materiais estão presentes, como as salas estão dispostas, se tem área externa para as crianças utilizarem. Olhar para todas essas características ajuda o gestor na sua tomada de decisão, inclusive no investimento dos recursos públicos. Não vemos esse tipo de levantamento nos municípios brasileiros. 

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E como esse retrato da realidade da educação infantil pode ajudar o serviço público a melhorar a qualidade da educação? 

Por exemplo, como é o concurso público para contratar professores, diretores e coordenadores pedagógicos para a educação infantil? Que tipo de conteúdo é incluído, pensando no alinhamento com a BNCC? Outro ponto muito importante é a formação continuada. Quão efetiva ela é? Se o gestor percebe que, em média, as escolas do seu município estão seguindo determinado caminho quanto à prática pedagógica, ele pode ajustar a formação continuada e obter os resultados esperados em relação à implementação da Base. Um dado que nos preocupa é que em 45% das turmas observadas não foram presenciados momentos de brincadeira livre. Isso nos surpreendeu, pois é um dos eixos estruturantes das Diretrizes Curriculares. Se sou secretário de Educação e estou a par desse dado, como faço para mudar essa realidade? Como crio formações que permitam aos professores oferecerem momentos de brincadeira livre, mediados por eles, com propostas de atividades, envolvimento na dinâmica e seleção do material? Há todo um planejamento a ser feito. Não é porque é livre que não deva ser planejada e intencional. 

Segundo o estudo, apenas 9% dos professores fazem planejamento diário…

Essa questão é fundamental. A educação infantil e a Base preconizam isso. Tem de ser uma educação com intencionalidade pedagógica. O professor tem objetivos a serem alcançados com as crianças e ele vai em busca disso, preparando uma prática pedagógica que contemple as necessidades e os interesses das crianças. Ele tem de planejar. Não é uma atividade espontânea, e isso é uma virada de chave que, às vezes, é difícil fazer, principalmente no caso de crianças muito pequenas. Tudo fica aberto, muito livre e desestruturado, e parece que não há uma linha de aonde se quer chegar.

Nesse cenário, incluindo a pandemia e as ações do poder público, qual é a importância das ações intersetoriais?

Apesar de esse estudo não ter levado em conta a gestão das secretarias municipais e o acesso, sabemos que, principalmente as crianças mais vulneráveis, negras, residentes de áreas não urbanas são as que tendem estar fora da educação infantil, principalmente das creches. Isso gera um alerta para a importância de trabalharmos com a Assistência Social e Saúde a fim de localizarmos essas crianças e incluí-las. Isso é prioritário. Sabemos que a demanda por creches é grande, mas defendemos fortemente na Fundação os critérios de priorização. Porque se olharmos para as crianças mais ricas da nossa população, a meta do Plano Nacional de Educação já está batida. Temos mais de 50% dessas crianças matriculadas em creches. Porém, quando se trata de crianças mais vulneráveis, esse percentual é muito baixo. Por isso, acreditamos na integração dos serviços, principalmente no caso da garantia de direito dessas crianças mais pobres.

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Como o estudo apresentou a relação com as famílias e como você acha que ficou essa relação no contexto atual? 

Escolas que envolvem famílias e comunidades tendem a ter pontuações mais altas nas práticas pedagógicas e avaliações. Esse envolvimento é importante para melhor a qualidade. A família é o agente externo que questiona, contribui, traz informações sobre a criança, sobre seu desenvolvimento e cotidiano. Essas interações têm de ser potencializadas dentro da escola. É preciso buscar estratégias para isso. No Brasil temos um paper de 2016, do Núcleo Ciência pela Infância (NCPI), A importância dos vínculos familiares na primeira infância. Os resultados são ruins: pouco diálogo, pouca interação, as famílias se sentem à parte do universo escolar e, muitas vezes, os próprios profissionais de educação afastam as famílias da escola. Com a pandemia, temos vários depoimentos muito bonitos sobre essa aproximação, tanto de famílias quanto de professores. É diferente receber só a criança na escola e o processo de interação virtual, entrar na casa das famílias e ter uma conversa mais frequente com elas. Foram criadas estratégias nesse sentido e a expectativa é de que essas práticas se mantenham e a família passe a entender a importância da escola. 

“Escolas que envolvem famílias e comunidades tendem a ter pontuações mais altas nas práticas pedagógicas e avaliações”, diz a gerente de conhecimento aplicado
Foto: Léu Britto

Na sua visão, onde estamos e para onde vamos depois desse retrato atual da educação infantil?

Sou otimista. Desde a Constituição de 1988 tivemos muitos avanços, como o aumento do número de matrículas e o percentual da população atendida. Tivemos a inclusão da educação infantil no Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), que garantiu sua expansão e financiamento. Também o aumento do percentual de professores formados, que hoje é bastante significativo. Todos esses indicadores são crescentes. Temos documentos importantes lançados, como as Diretrizes e a Base, alinhados com currículos internacionais de ponta. As concepções pedagógicas são muito relevantes e visam de fato o desenvolvimento integral das crianças. Quando olhamos para os municípios vemos um atendimento estruturado. Precisamos avançar mais na formação de professores, pois isso tem impacto direto na prática pedagógica. Precisamos avançar também em processos de avaliação da educação infantil, que é justamente o foco do estudo. Enquanto não tivermos os dados, não conseguiremos direcionar as nossas ações visando o melhor. A educação infantil no Brasil está no caminho bom. E, comparando com políticas internacionais, o país se destaca no que diz respeito à garantia do direito. Agora precisamos exercer esse direito com qualidade. Esse é o desafio.

Escute nosso episódio de podcast:

Autor

Mariana Gonzalez


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