NOTÍCIA
Ponha-se no lugar de um professor do século 21: conforme a faculdade que fez, a escola em que trabalha, as lives a que assiste, os livros que lê, os congressos que frequenta, o diretor que decide, o coordenador que chega, as formações que realiza, um […]
Publicado em 06/09/2022
Ponha-se no lugar de um professor do século 21: conforme a faculdade que fez, a escola em que trabalha, as lives a que assiste, os livros que lê, os congressos que frequenta, o diretor que decide, o coordenador que chega, as formações que realiza, um novo conjunto de novas referências pedagógicas se acotovela para caber no seu escaninho. Por uma mesma sala de aula, em um único dia, podem passar materiais montessorianos, registros e documentações da abordagem de Reggio Emilia, propostas de alfabetização alicerçadas no construtivismo com Emilia Ferrero, ideias da pediatra húngara Emmi Pikler ou do bielorrusso Lev Vigotski, apenas para se pensar na educação da infância.
Acabou? Nem começou: principalmente a partir do ensino fundamental e ensino médio, surgem as metodologias ativas, aprendizagem baseada em projetos, ensino híbrido, sem contar a Teoria das Inteligências Múltiplas, ensino para a compreensão, aprendizagens visíveis, metodologia ágil, um rol infinito de novas ideias e práticas pedagógicas e, no final, ainda a guilhotina a sangue-frio do vestibular.
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Na sociedade do conhecimento, na qual a educação se torna cada vez mais o maior bem, é compreensível que a pedagogia busque novas fronteiras, ao mesmo tempo que é tributária das conquistas dos últimos (pelo menos) 100 anos e que permanecem atuais. E é de se esperar também que seja cada vez mais influenciada (ou pressionada) por outros campos do conhecimento, como psicologia, sociologia, economia, administração, as ciências da mente. Mas, justamente por isso, pode ser hora do chamado freio de arrumação. É um tema delicado e controverso, e é preciso organizar a casa para entender para onde estamos indo.
A pedagoga Bruna Ribeiro, doutora em educação pela USP, com frequência ouve uma mesma pergunta de seus alunos: com tantas abordagens, não seria melhor pegar um pouquinho de cada? A resposta para ela é: não…
“É como se tivéssemos uma carruagem na qual cada abordagem pedagógica fosse um dos cavalos. Cada um pode querer seguir em uma direção”, compara.
Em sua pesquisa de doutorado, Bruna acompanhou experiências tidas como inovadoras e participativas em quatro países. “Ficou evidente o quanto ainda é preciso descontruirmos a visão de que a simples inclusão de elementos provenientes dessas pedagogias por si só, produza a transformação”, diz.
Ocorre que, muitas vezes, os profissionais de educação – nele incluídos diretores e coordenadores – têm acesso apenas a recortes de um pensamento. Daí vem a falsa ideia de que ações isoladas, como comprar mobiliário, criar espaços ou utilizar estratégias isoladas de diferentes abordagens, por si sós, sejam suficientes.
“É preciso dar um passo além e compreender as bases que sustentam determinado pensamento pedagógico para não ficarmos reféns de modismos educacionais que só nos fazem andar em círculos”, afirma Bruna.
Deve-se levar em conta que as diferentes abordagens estão ligadas a um contexto histórico, certa cultura, determinada visão de mundo.
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Na percepção da educadora Josiane Pareja, diretora do Ateliê Carambola Escola de Educação Infantil e do Ateliê Centro de Pesquisa e Documentação Pedagógica, é necessário dar um passo atrás para se repensar o que é a pedagogia. “O que vivemos hoje é um processo esquizofrênico e a miscelânea reflete uma visão da educação como mercadoria, em um brasilzão cheio de apostilas”, compara.
“Escolas que pegam apenas fragmentos e recortes das abordagens pedagógicas, sem que tenham coerência entre si, parecem não ter clareza de que ser humano querem ajudar a formar”, diz.
A seu ver, a bússola para orientar os educadores na tempestade de tendências é a documentação. “Hoje, as pessoas não documentam nada, sequer o projeto político-pedagógico, e não há pedagogia sem registro”, diz. Para ela, o primeiro passo para quem quer mudar é olhar para a própria realidade e documentar aquilo que já faz. A partir desse olhar, sim, decide-se aquilo que é preciso mudar.
“Antes de se partir do conteúdo, é preciso entender o que é uma criança, perceber como ela aprende, o que é importante para ela”, diz. E isso requer estudo contínuo. No Ateliê Carambola, todos os professores têm duas horas remuneradas de estudo por dia e nesse movimento, começam a confrontar sua visão com a dos outros professores, da direção e do atelierista, e a escolher aquilo que querem tornar visível. “Essa narrativa faz com ele seja um autor. A formação do professor não se esgota, vai construindo formas de pensar a pedagogia”, sintetiza.
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Essa preocupação com a coerência pedagógica não é apenas brasileira. É um dos temas do livro Outra pedagogia é possível (ed. Pedro e João) da filósofa Almudena García, publicado este ano no Brasil. A autora descreve diferentes propostas educativas, sob o epíteto nem sempre bem aceito de ‘alternativas’. Algumas têm muitas décadas de existência, mas ainda são inovadoras.
“Falar em respeito aos ritmos da criança – e, cuidado, sobre isso cada pedagogia entende algo diferente – ainda é considerado algo inovador. Muitos professores que estão atualizados usando lousas digitais ou plataformas digitais continuam penalizando o erro”, lembra.
Entre as experiências que Almudena cita como exemplo estão as das escolas Waldorf e também as inspiradas na obra da médica italiana Maria Montessori (1870-1952). A educadora Márcia Righetti, diretora da escola Aldeia Montessori e do Centro de Estudos Montessori, no Rio de Janeiro, explica que: “a sociedade clama por uma educação que faça do ser humano um habitante amável com todas as espécies de vida. Maria Montessori vislumbrou este panorama, criando uma pedagogia cientifica com base na neurociência e na psicopedagogia, e trouxe para a escola todas as facetas do cotidiano dos humanos”.
Em seu livro, Almudena procura exatamente mostrar outros caminhos para uma educação que não seja o que chama de pista de obstáculos. “Muitos professores ainda mantêm a ideia de que educar é algo como colocar um molde. Quem não se adapta a esse molde, quem não consegue acompanhar as aulas, acaba se sentindo totalmente desvinculado, querendo chegar à idade em que não precisa mais continuar na escola”, explica. A seu ver, uma das principais virtudes das chamadas pedagogias alternativas desenvolvidas no século 20 é favorecer a motivação e a inclusão. “Alguns preferem pensar que é necessário dar um tablet a cada aluno, mas outros defendem que o papel do educador e da interação com os pares é insubstituível”, finaliza. Nesse sentido, sim, permanecem inovadoras. Afinal, como lembra Bruna Ribeiro, citando a educadora brasileira Lydia Hortélio, as crianças são a última novidade do mundo.