NOTÍCIA
Antares, pequena cidade do Rio Grande do Sul, que mal consta no mapa, serve de microcosmo para a realidade fantástica e absurda que pairava por essas bandas tupiniquins. O ano é o de 1963, com todos os seus temores. Na primeira parte da narrativa, as […]
Publicado em 30/09/2022
Antares, pequena cidade do Rio Grande do Sul, que mal consta no mapa, serve de microcosmo para a realidade fantástica e absurda que pairava por essas bandas tupiniquins. O ano é o de 1963, com todos os seus temores. Na primeira parte da narrativa, as famílias mais tradicionais da cidade, os Campolargo e os Vacariano, digladiam-se pelos privilégios oligárquicos e, ironicamente, entram em embate, ao mesmo tempo e juntos, contra as novas ideias políticas que estavam surgindo – o fantasma do comunismo, crescente na classe operária de Antares, e que assombrava os privilégios das famílias rivais.
Na segunda parte, o realismo fantástico dá as caras. Uma greve geral sacode os pilares do confronto comezinho da burguesia em Antares e, à vista disso, uma paralisação total dos trabalhadores entra em curso. Para alargar o drama, neste mesmo dia, sete pessoas morrem; e insepultas esperam que providências sejam tomadas para seus corpos encontrarem o destino final. No entanto, como os coveiros também entram em greve, não havia como enterrar os mortos. Indignados com o descaso, à noite, os defuntos saem de seus caixões e, juntos, decidem voltar a Antares para reivindicar seu direito à sepultura e para denunciar a miséria fétida deles e a moral pútrida dos vivos e viventes.
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Os mortos-vivos convocam uma assembleia ao meio-dia de uma sexta-feira, 13 de dezembro de 1963, no coreto da praça, onde falariam todas as verdades engasgadas e sabidas sobre suas mortes, sobre os políticos desonestos, sobre as autoridades corruptas e sobre os moradores da cidade, vivos-mortos que distraídos não supunham a tragédia do ano e das décadas seguintes. Protegidos pela morte, sem temer represália ou castigo, os insepultos chacoalham a distração e o horror daquela cidade.
A denúncia na praça pública – espaço democrático – torna-se uma alegoria de um levante contra o desatino. O leitor encontra, na cidade tacanha e de valores corrompidos, absurdos maiores e mais apodrecidos do que o espanto de ver seus mortos indignados a acusar os malfeitos de um sistema político e social colonizado, degenerado e arraigado num primitivismo tosco fomentador de desvios e de corrupção.
A praça e a cidade, tomadas pelos cadáveres, tornam-se metonímias de um país insepulto.
—“Simples. Descemos juntos pela Rua Voluntários da Pátria ruma da Praça da República. Lá nos dispersaremos, cada qual poderá voltar à sua casa… Para isso teremos algumas horas. O essencial (prestem a maior atenção!) é que quando o sino da matriz começar a dar as doze badaladas do meio-dia, haja o que houver, todos devem encaminhar-se para o coreto da praça, sentar-se nos bancos em silêncio e ficar à minha espera.
— E que é que você vai fazer? – quer saber João Paz.
— Vou primeiro à minha casa buscar uns papéis importantes… Depois me dirigirei à residência do prefeito para lhe entregar um ultimato verbal… ou nos enterram dentro do prazo máximo de vinte e quatro horas ou nós ficaremos apodrecendo no coreto, o que será para Antares um enorme inconveniente do ponto de vista higiênico, estético… e moral, naturalmente.”
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Imaginemos, no final do ano da graça de 2022, se nossos quase 700 mil mortos acometidos pela covid, dessepultos, resolvessem denunciar suas agruras, suas dores, seus sofrimentos, seus abandonos, suas crenças e o nosso atraso em dar conta da tragédia avassaladora anunciada que poderia ser, em números, evitada. Afinal, somos 3% da população mundial e aproximadamente 10% dos mortos pela covid.
Apilhados nas ruas e nas redes sociais, vociferariam suas verdades, transformando o país em um imenso coreto sombrio. À beira da floresta amazônica, revelariam a dor da asfixia pela falta de oxigênio medicinal em Manaus e a indignação do enterro em vala comum, sem direito a velório. Revoltados se voltariam contra aqueles que incentivavam aglomerações em tempos de novas e mortais cepas e contra os que se opunham ao uso de máscaras nas ruas e nos locais públicos. Constrangidos, ver-se-iam mortos acreditando neles próprios e em quem os convenceu de que a covid era apenas mais uma das gripezinhas inocentes que assolam nossos trópicos ensolarados e imunes.
Ouviriam, tardiamente, o regente do coreto nacional dizer-se arrependido por ter, nas palavras dele, “aloprado” na pandemia ao alardear que “não era coveiro” diante do aumento vertiginoso de mortos e, irônico, responder a pedidos de compra de vacina “só se for na casa da tua mãe”.
Haveria também entre os mortos as mesmas contendas que há entre os vivos – uma disputa absurda pela verdade particular e pela violência da interpretação. De um lado, haveria mortos culpando-se pelo uso de remédios sem comprovação de sua eficácia contra a covid, e outros lamentando a fatalidade – apesar de continuarem em morte a defender a eficácia da cloroquina e similares. E, entre eles, haveria quem batesse no peito um “mea-culpa” por cair no conto mais antigo da humanidade e aceitar de pronto o que a Europa já refutava com sabedoria. E, por fim, haveria o engasgo da dor da perda que nem um morto-livre seria capaz de dizer.
Levantados do chão, em insurreição, gritariam contra o atraso na compra de imunizantes, contra a recusa em aceitar a vacina chinesa em bom tempo; lamentariam a propagação de fake news e a crença em muitas delas. Colocariam os dedos mortos e em riste no nariz dos vivos e diriam, como os cadáveres falantes de Antares: “cada um de nós tem nas suas mais remotas cavernas interiores um troglodita adormecido que, submetido a um certo tipo de estímulo, vem rapidamente à tona de nosso ser e se transforma num déspota totalitário capaz de todas as bestialidades”. E nunca faltará um falso humanista para inventar uma teoria filosófica com o objetivo de coonestar todas as monstruosidades cometidas pelo “homem das cavernas”. (…)
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