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É direito dos alunos e alunas e responsabilidade da escola incluir temas de educação sexual no currículo, determina a Constituição brasileira e o Estatuto da Criança e do Adolescente. Mas a visão distorcida sobre a educação sexual e as notícias falsas contribuem para a reprodução […]
Publicado em 11/10/2022
É direito dos alunos e alunas e responsabilidade da escola incluir temas de educação sexual no currículo, determina a Constituição brasileira e o Estatuto da Criança e do Adolescente. Mas a visão distorcida sobre a educação sexual e as notícias falsas contribuem para a reprodução do mito de que ela erotiza as crianças e facilita o acesso de abusadores aos seus corpos.
Dados do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos apontam que cerca de 75,9% dos casos de abuso sexual infantil ocorrem no ambiente domiciliar, onde 40% dos episódios são cometidos pelos próprios pais ou padrastos. Esse estudo mostra que, se a educação sexual continuar reservada à esfera familiar, crianças não terão acesso à informação que pode protegê-las dos abusos.
A prevenção da violência sexual e o caminho para a proteção das infâncias e das juventudes acontecem através do diálogo de qualidade, com profissionais preparados e materiais didáticos adequados. Segundo Caroline Arcari, pedagoga e mestra em educação sexual pela Unesp e consultora na área de educação sexual e enfrentamento à violência sexual contra crianças e adolescentes, foi comprovado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), por meio da análise de mais de 1.000 relatórios sobre os efeitos da educação sexual no comportamento de jovens, que quanto mais informação de qualidade sobre sexualidade, mais tarde os adolescentes iniciam a vida sexual.
“A educação sexual não se refere apenas ao conhecimento dos genitais e de onde vêm os bebês, mas aos conceitos de autoproteção, consentimento, integridade corporal, sentimentos, emoções, sonhos, identidade, tipos de toques que adultos estão autorizados ou não em relação ao corpo da criança e do adolescente, escolhas, higiene, saúde, relações – tudo isso é educação sexual”, ensina Caroline, que trabalhou na formação de educadoras(es), psicólogas(os), profissionais de saúde, conselheiras(os) tutelares e assistentes sociais no Brasil, na Inglaterra, em Portugal, na Espanha, nos Estados Unidos e em Cabo Verde.
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Em todas as escolas da rede municipal de ensino da cidade de Itumbiara, em Goiás, do 1º ao 9º ano do ensino fundamental 1 e 2, há uma disciplina chamada PQV-AE (Prevenção e Qualidade de Vida com Amor Exigente), ministrada uma vez por semana, onde são trabalhados os temas da educação sexual. Sentimentos (identificar as emoções e conseguir verbalizar o que sente), prevenção ao abuso sexual com material especializado, toque do sim e toque do não (toques de amor trazem sensação boa; toques abusivos são desconfortáveis e tristes), violência, prevenção às drogas, mídias, empoderamento feminino, entre outros. No início do ano a escola identifica o professor apto a trabalhar essa disciplina com crianças e adolescentes e inicia a formação para capacitá-lo, de acordo com a faixa etária dos alunos.
“Desde 2008, quando foi criada a disciplina para dar educação sexual aos alunos, todo ano é realizada a formação de novos professores, para que sejam preparados para o cargo”, conta Tânia Regina Martins e Sousa, coordenadora pedagógica na Secretaria Municipal de Educação de Itumbiara.
De acordo com a última contagem das escolas da rede municipal de Itumbiara, Tânia Martins relata que foram identificados 132 casos de abuso sexual de crianças, e, em 99,9% dos casos, o agressor era homem. Em apenas um caso a agressora era a mãe da criança. Esse número deu credibilidade ao trabalho de prevenção realizado e ganhou o apoio da população.
Pesquisa do Datafolha divulgada este ano revela que 73% dos brasileiros apoiam a presença da educação sexual nas escolas. Já sobre a importância de abordar o tema em aula para a prevenção de abuso sexual, nove entre 10 pessoas concordam.
Existe a crença de que se deve responder apenas o que a criança pergunta, mas Caroline Arcari alerta para o fato de que não se sabe o motivo de a criança não perguntar. Ela é a autora do best-seller Pipo e Fifi: proteção contra violência sexual (ed. Caqui), que recebeu o prêmio internacional de melhor material didático de prevenção à violência sexual da Universidade do Minho, Portugal, o prêmio de Direitos Humanos Neide Castanha e foi contemplada com a medalha Zilda Arns, cedida para iniciativas de cuidados com a primeira infância.
Nem sempre uma criança que não pergunta de onde vêm os bebês não tem dúvida e curiosidade sobre como isso acontece. É provável que já tenha demonstrado interesse, mas nota que os adultos se esquivam, mudam de assunto, prometem responder depois (torcendo para que a criança esqueça). A criança pode ter passado por algum constrangimento na escola e, ao receber uma resposta que não foi positiva, deixa de perguntar.
Caroline explica que a educação sexual deve operar como a educação no trânsito: “não esperamos o pequeno perguntar, para a sua segurança o ensinamos a atravessar a rua, a respeitar os faróis de pedestres, a como andar na calçada para que saiba agir diante de qualquer situação. Ou seja, é preciso fornecer as ferramentas de autoproteção antes de a criança precisar, para que saiba dizer não, para que detecte um ato abusivo, para que ela peça ajuda assim que esse ato se apresentar, para que consiga reagir. Essas informações vêm antes de as coisas acontecerem”, alerta Caroline.
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Sexualidade nada mais é do que a busca pelo bem-estar, seja na relação consigo mesmo ou com o outro. E essa busca se dá desde o nascimento: pelo toque dos pais, pela amamentação, como o bebê sente segurança, o embalar de um colo, a percepção do seu corpo, a descoberta das cores, das texturas, dos sons e do mundo.
Segundo Tânia Martins, a sexualidade é o tema mais difícil de trabalhar na escola porque os responsáveis pelos alunos têm medo do que será ensinado aos seus filhos sobre sexo. Reuniões para esclarecer dúvidas, apresentar os materiais que serão utilizados, indicar literaturas sobre o tema são essenciais para o apoio da família, explica.
Caroline Arcari orienta que a educação sexual precisa levar em conta as demandas de cada faixa etária e que deve começar na primeira infância. “Mais do que falar sobre de onde vêm os bebês, de genitalidade, anatomia e fisiologia, a educação sexual fala de sentimentos, de emoções, da construção da identidade, da busca do bem-estar, do respeito ao consentimento, do prazer do afeto, das pessoas de confiança, questões presentes desde a primeira infância”, assegura.
Nessa fase a educação sexual acontece na interação da criança com seu meio e com outras pessoas, nas experiências afetivas, na construção da sua imagem corporal, ao aprender as partes do corpo e as diferenças anatômicas. A partir daí, em cada faixa etária, a criança apresentará demandas e curiosidades diferentes e a função da escola e da família é responder com honestidade a todos os seus questionamentos.
Os adultos devem falar sem constrangimento sobre as partes do corpo e ensinar os nomes corretos, inclusive das partes íntimas, explicando que são especiais. Isso ajuda a criança a se apropriar de seu próprio corpo e a crescer com uma perspectiva positiva em relação a ele. Ela precisa saber quem é que pode dar banho nela (a professora da creche ou um adulto de confiança de sua casa, por exemplo). Tudo isso é educação sexual, pois oferece ferramentas para que crianças e adolescentes façam escolhas responsáveis, percebam quais são os limites, saibam qual é a forma saudável de os adultos se relacionarem com elas e detectem situações de violência sexual, ao descobrirem, por exemplo, que aquilo que achavam corriqueiro, que o pai ou o avô fazia, era na verdade um toque abusivo.
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“Este ano, durante a aula em que a professora ensinava sobre os toques do sim e os toques do não, uma criança de seis anos falou para a professora que o avô, quando a avó dormia, a levava para fora de casa e fazia, nela, os toques do não.”, relata Tânia. Depois de conversas com a criança e análise dos desenhos feitos por ela, a escola conversou com a mãe da criança que se negou a denunciar o avô, por não acreditar na história contada. O Conselho Tutelar foi chamado e foi feito o boletim de ocorrência. Por fim, descobriu-se que o mesmo avô havia abusado da mãe da criança e que a criança era filha dele.
Caroline explica que, para as crianças e adolescentes, os temas trabalhados são: gravidez, namoro, masturbação e relacionamento e que a educação sexual desempenha papel determinante no combate ao machismo, sexismo, violência, preconceito, na prevenção da gravidez, no combate ao abuso sexual, além de ajudar no desenvolvimento da afetividade. É o espaço para que expressem suas dúvidas, angústias e sentimentos em relação ao corpo e ao sexo, podendo desfazer mitos, preconceitos e tabus.
“Quando ministrada com qualidade e material adequado a cada faixa etária, a educação sexual é excepcional como ferramenta de autoproteção. Crianças e adolescentes que têm educação sexual na escola e em casa estão seis vezes mais protegidos contra a violência sexual”, conclui Caroline.
A Unesco publicou em junho de 2010 a Orientação Técnica Internacional sobre Educação em Sexualidade e um dos propósitos do documento é que crianças, adolescentes e jovens, respeitando as especificidades de cada faixa etária, possam ter uma visão positiva da sexualidade, percebam a importância de uma comunicação clara nas relações interpessoais, desenvolvam espírito crítico e reflitam a cada tomada de decisão relativa à sua vida sexual e reprodutiva, garantindo assim o seu bem-estar.