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Segundo a pesquisa TIC Kids Online Brasil 2021, 22,3 milhões dos brasileiros com idades entre nove e 17 anos são usuários de internet. São 93% das pessoas nessa faixa etária, um índice maior do que a média da população (85%). Os efeitos do uso excessivo […]
Publicado em 20/10/2022
Segundo a pesquisa TIC Kids Online Brasil 2021, 22,3 milhões dos brasileiros com idades entre nove e 17 anos são usuários de internet. São 93% das pessoas nessa faixa etária, um índice maior do que a média da população (85%). Os efeitos do uso excessivo ou indevido entre adolescentes já chegam aos consultórios e núcleos de atendimento especializados. Os casos incluem a história de uma adolescente induzida à subnutrição pelas redes sociais, além de dezenas de pacientes com graves dificuldades de interação pessoal e de lidar com contextos reais. E as estatísticas deixam de fora cerca de 30 milhões de crianças, que, na prática, também estão expostas a produtos digitais.
“Deixar as crianças e adolescentes sem mediação é como ficar sentado à beira de um vulcão esperando o que vai acontecer. Criança não é miniadulto e a exposição às telas influencia de forma diferente o comportamento”, adverte Evelyn Eisenstein, coordenadora do GT de Saúde Digital da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). “Os malefícios vêm por uma porta que se abre por dentro. Os pais entregam celulares e tablets para crianças sem saber como isso afeta o desenvolvimento das interações e da linguagem”, observa Cristiano Nabuco, coordenador do Núcleo de Dependências Tecnológicas do PRO-AMITI do Ipq-HC-FMUSP.
Pediatras, psicólogos e neurocientistas, como mostram as recomendações das sociedades científicas, são praticamente unânimes em descartar o uso de dispositivos eletrônicos por crianças de até três anos. Em vez de simplesmente ‘acalmar’, esses produtos concorrem por recursos mentais na hora em que o indivíduo mais precisa deles para se desenvolver. “O gatinho na tela é feito para reter toda a curiosidade e a criança deixa de olhar o resto”, nota a pediatra Evelyn. Para as demais faixas etárias, os manuais da SBP escalonam limites de uso.
Fernando Louzada, neurocientista e professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR), aponta alguns efeitos mais evidentes, como a piora do sono. Embora ratifique as recomendações gerais dos pediatras, o pesquisador pondera que uma avaliação não se esgota com os indicadores quantitativos. “Ainda faltam parâmetros para definir os marcadores de transtornos. O tempo excessivo é preocupante, mas o foco deve ser o impacto nas interações e no comportamento. Um jovem pode ser um usuário intensivo do digital e ainda assim ser ativo e espontâneo em outras interações e eventos”, diz.
“Quem vai para o céu ou inferno se define pela margem de erro. Antes de tentar categorizar, é preciso olhar o contexto”, observa.
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Em 2018, a 11ª edição da Classificação Internacional de Doenças da Organização Mundial da Saúde, a CID-11, incluiu o uso abusivo de jogos eletrônicos (gaming disorder) na seção de transtornos que podem causar vício. O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, o DSM-5, também passa a abranger problemas relacionados à dependência digital.
“Conforme a demanda no atendimento clínico, as classificações de transtornos vão se inserindo nos manuais. Em pouco tempo, devem entrar outras coisas relacionadas a redes sociais ou celulares”, explica Anna Lucia Spear King, do Instituto Delete.
Anna Lucia é especialista em saúde mental e autora de livros sobre dependência digital e explica que os casos atribuídos ao ‘vício tecnológico’ trazem histórias mais amplas. “Os leigos chamam de ‘viciado’ quem é só mal educado. Os casos patológicos trazem transtornos associados”, esclarece.
“Tive um paciente que não conseguia se desvencilhar do celular e ficava paralisado com a bateria baixa porque tinha transtorno do pânico. Outro jovem veio porque seria ‘dependente’ do computador e vimos que tinha fobia social. A dependência patológica geralmente vem associada a um transtorno primário”, exemplifica.
Além da atuação em atendimento clínico, a especialista do Instituto Delete também é autora de Etiqueta digital, focado em aspectos comportamentais. Ela destaca a importância de um papel mais ativo dos educadores, para corrigir distorções danosas, mesmo que não configurem doença mental. “Quem libera o Wi-fi e os dispositivos não pode reclamar de falta de condições para dar limites”, constata.
“Há premissas importantes, que chamo de ‘5+1’. A primeira é a idade e o tempo de uso adequado. Também é preciso ver com que conteúdo a criança interage. Outro critério é o contexto; com quem e por que a criança usa as telas. Como educadores de saúde, temos ainda que enfatizar o que a criança faz fora das telas; e saber quais as atividades necessárias para o desenvolvimento psicomotor, de linguagem e social”, enumera Evelyn Eisenstein.
O item adicional (externo à ação direta dos educadores) é regulação. “Temos que ter marcos legais que responsabilizem as empresas. Os algoritmos estão fora de controle”, diz a pediatra. Ela defende uma agenda que envolva profissionais de educação, saúde pública, justiça e as próprias famílias. “Tem que se ter consciência da necessidade de mediação parental”, enfatiza.
“Não dê um smartphone para pessoas com menos de 13 anos”, afirma a médica. A linha de corte converge com critérios jurídicos. “Os termos de uso (das plataformas online) colocam essa idade mínima até pelo desafio de tratamento de dados pessoais”, lembra Patrícia Peck, advogada especializada em direito digital. “Eu mesma fiz meus filhos esperarem até os 13 anos, mas com a pandemia os parâmetros podem ter mudado”, especula.
Com bagagem tecnológica (de quem programava aos 12 anos), formação humanística e décadas de trabalho focadas nos efeitos da transformação digital, a advogada aproveitou o interesse do filho de sete anos por um game como um ‘experimento psicológico controlado’. “Depois de ver o jogo, avisei que havia zumbis e outras coisas que o assustavam. Ele criou um plano, com metas para superar esses temores, só para se mostrar preparado para jogar”, conta. “É preciso que os responsáveis leiam os termos de uso e verifiquem se os conteúdos são condizentes, até porque cada um tem temperamento e maturidade diferentes”, observa. “Criança navegando sozinha é menor abandonado digital”, define.
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Enquanto eram reunidas as contribuições dos especialistas ouvidos nesta reportagem, o pronunciamento de António Guterres na Assembleia Geral da ONU, em 20 de setembro, elencava o saneamento digital junto a urgências como as crises climáticas e de abastecimento.
“As plataformas de mídias sociais baseadas em lucros estão causando um dano imenso às comunidades e à sociedade… Os nossos dados estão sendo usados para influenciar o nosso comportamento. A inteligência artificial pode comprometer a integridade de sistemas de informação, a mídia e até a democracia”, disse o secretário-geral.
“Grande parte das plataformas se estabeleceram com práticas de manipulação e as consequências são ampliadas em crianças, que junto aos adolescentes totalizam um terço dos usuários de internet”, constata Gabriel Salgado, coordenador de educação do Instituto Alana. Ele observa que, além das técnicas de rolagem automática, reforço positivo, premiação por uso contínuo e acesso irrestrito a jogos com log de redes sociais, há métodos de condução ocultos (dark patterns), que se tornam cada vez mais personalizados.
“Publicidade infantil é abusiva e ilegal. Menores de 18 anos não podem ser alvo de microssegmentação publicitária”, afirma Maria Mello, coordenadora do programa Criança e Consumo no Alana. “A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) exige um tratamento especial a informações pessoais de crianças e adolescentes, mas o uso e muitos serviços são condicionados a um cadastro em rede social”, lembra Gabriel.
Segundo a TIC Kids 2021, 81% dos usuários de internet de 11 a 17 anos viram divulgação de produto ou marca. Influenciadores abrindo encomendas ou dando dicas de produtos correspondem a pouco mais de 60% dessas visualizações.
As advertências da ciência e das organizações de defesa de direitos, apesar de graves, soam com menos veemência do que as revelações de ex-funcionários das grandes plataformas digitais. “No Vale do Silício é comum os engenheiros matricularem seus filhos em techless schools [escolas sem tecnologia]”, menciona Cristiano Nabuco. Em consonância a especialistas de outras disciplinas, o terapeuta descarta qualquer benefício dos dispositivos eletrônicos na primeira infância.
“Fujam da pré-escola com educação digital; 90% dos aplicativos supostamente educativos jamais foram testados”, prescreve.
No processo de aprendizado, Cristiano Nabuco avalia que o modelo de ‘economia da atenção’ vai de encontro à forma natural de se desenvolver conhecimento. “A engenharia direciona à navegação contínua. São capturados dezenas de parâmetros para entregar informação facilmente assimilada (tanto pela superficialidade quanto por afinidades conscientes ou não). Isso concorre com o raciocínio, que requer cadência”, diz. Na leitura ou nas interações tradicionais, seja qual for o canal, as pausas correspondem ao tempo que o cérebro necessita para ativar seus recursos de consolidação da memória. “É um cobertor curto. O que se ganha em quantidade (de informação) tem um preço neurobiológico na hora de entender textos mais longos ou assuntos um pouco mais complexos”, explica.
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Ainda segundo a TIC Kids, em 2021, 11,9 milhões das pessoas entre nove e 17 anos têm alguma conexão à internet em casa, mas não têm computadores, enquanto 2,1 milhões não têm nenhum acesso. O celular é o principal meio de acesso para a grande maioria e para 53% é o único, o que chega a 78% nas classes D e E.
Além do tamanho das telas, o próprio modelo de design dos produtos para mobile reduzem a relativa flexibilidade da navegação na web. As políticas tarifárias das operadoras, por sua vez, acabam estimulando o uso restrito a plataformas de oligopólios.
“A garantia de conexão com qualidade, gratuita e neutra (sem privilegiar esse ou aquele aplicativo) é muito importante. Se ignoramos essa condição técnica, vamos segregar e excluir”, avalia o coordenador de educação do Instituto Alana. “As vulnerabilidades relacionadas a renda, escolaridade e assistência à saúde influem nas condições de se apropriar de forma crítica. Por isso a importância de acesso de qualidade e livre, para escolhas conscientes”, enfatiza.
“Com a tecnologia, temos oportunidades de horários escolares mais flexíveis, melhoria do sono, liberação de tempo para atividade física e vários outros benefícios”, reconhece Fernando Louzada.
“Se não houvesse liberdade no acesso, não teríamos chefes de cozinha com nove anos”, menciona Patrícia Peck. “Toda tecnologia, até uma tesoura, tem algum risco. O problema é quando pais e educadores atribuem uma capacidade irreal de autoaprendizado à criança. É fato que só se aprende usando, mas sempre com uso orientado e limites de tempo. O aprendizado sem supervisão e crítica não contribui para um uso ético, seguro e sustentável”, argumenta.
“Os educadores precisam entender e orientar o uso da tecnologia com intencionalidade pedagógica”, resume o coordenador de educação Gabriel Salgado. Ele avalia que o uso impróprio é um risco generalizado, agravado por atividades comuns a praticamente todas as grandes plataformas. “Mas, quando olhamos efeitos de uso desenfreado, percebemos que são acentuados entre os mais vulneráveis. Há dificuldades estruturais para as famílias e para os próprios educadores estabelecerem a mediação pedagógica”, reconhece.
“Estimular os vínculos emocionais com a natureza e as pessoas, com brincadeiras livres e autônomas, sem algoritmos de indução de comportamento, é um contraponto importante”, lembra.
“As atividades online que exigem mais criticidade têm menor adoção do que as que exigem habilidades operacionais”, nota Luísa Adib, coordenadora da pesquisa TIC Kids Online. Enquanto mais de 70% usam redes sociais, sites de games e vídeos, apenas 22% buscam notícias regularmente e 15% entram em discussões sobre temas gerais da conjuntura. “Quanto mais aprofundado for o uso, mais se conhece o ambiente. Por isso a restrição não é o melhor caminho”, pondera.
Nas faixas etárias mais altas da amostragem, de jovens que começam a entrar no mercado de trabalho, o uso consciente é tão ou mais importante do que as habilidades tecnológicas em si. “As empresas buscam pessoas com capacidade de autonomia e foco”, diz Mirella Pedrol Franco, coordenadora da área trabalhista do GBA Advogados.
O cyberloafing (ou vagabundagem digital) é a faceta mais óbvia da inversão de valores no uso de tecnologia. A advogada destaca, todavia, que o aprendizado sem orientação crítica dificulta a adaptação a contextos que exigem concentração, objetividade e colaboração. “A infantilização da linguagem e a informalidade típica de algumas plataformas trazem riscos. Até o corretor ortográfico pode criar ambiguidades inaceitáveis em alguns contextos”, adverte.