NOTÍCIA
Em uma das suas mais recentes obras, A estranha ordem das coisas (ed. Companhia das Letras, 2018), o respeitado neurocientista português António Damásio escreve que o domínio do homem sobre o fogo trouxe grande impacto para a espécie humana – por muitas razões, entre elas, […]
Publicado em 08/12/2022
Em uma das suas mais recentes obras, A estranha ordem das coisas (ed. Companhia das Letras, 2018), o respeitado neurocientista português António Damásio escreve que o domínio do homem sobre o fogo trouxe grande impacto para a espécie humana – por muitas razões, entre elas, uma menos lembrada. Estendendo a duração do dia e permitindo a reunião dos humanos para algo mais que coletar, caçar e comer, ao fim da jornada cotidiana, a luz e o calor das chamas abriram espaço para conversar, bisbilhotar, reparar laços, buscar significado para os fenômenos, enfim, para contar histórias. É pelo menos tão antigo como o uso cotidiano do fogo, portanto, o prazer humano pelas narrativas, elo entre o passado e o presente, ponte para o futuro, capaz de gerar ou produzido por “… um sentimento encorajador de desejo e antecipação. Chamemos-lhe magia”, escreve o autor.
Visto de um ponto de referência tão longínquo, não é de surpreender, portanto, que o poder das histórias narradas tenha se tornado, no complexo mundo do século 21, uma estratégia utilizada cada vez mais na comunicação – e, agora, também na educação. É um mágico poder que faz a mensagem chegar ao destinatário, fazendo frutificar o desejo por ouvir atentamente, saber mais e converter o conhecimento em fermento de transformações. Multiplicam-se pelo país os que estudam ou atuam profissionalmente sobre essa nova face das narrativas, agora sob o nome inglês storytelling, ou o bom e velho conhecido hábito dos humanos: contar histórias.
Leia: António Nóvoa: aprendizagem precisa considerar o sentir
Entre esses profissionais, alguns já andam pelo mundo das celebridades há algum tempo, como é o caso do comunicador e escritor Marcelo Tas, que recentemente se tornou professor do Ibmec. Para Tas, o objetivo principal do uso de estratégias de storytelling é garantir o engajamento dos estudantes, conceito que a seu ver está bastante desgastado, mas cujo significado realmente importa.
“O engajamento é muito diferente do fascínio, por exemplo, das redes sociais. As redes sociais trabalham com o encantamento, com uma atração, cientificamente estudada para a sedução”, explica Tas.
Para ele, a partir da certeza da qualidade do seu conteúdo, o professor deve pensar qual a melhor maneira de criar o engajamento, quais são as ferramentas, as metodologias para se criar não apenas narrativas mas também experiências (cada vez mais valorizadas, e com razão), ou seja, problemas a serem selecionados pelos alunos.
“E não estou falando apenas da pandemia. O que aconteceu na pandemia foi apenas a evidência da necessidade de novas formas de praticar a educação”, considera.
A atual geração de crianças e adolescentes, na avaliação de Tas, já está mais acostumada com a formulação de diversas formas de narrativas. Não apenas games, mas também construção de protótipos, invenção de artefatos novos, soluções para problemas antigos ou que ainda nem existem, o que teria fortalecido, por exemplo, a cultura maker.
As narrativas implicam em curadoria, conta o comunicador. “Podemos usar a metáfora do técnico de futebol. Não adianta juntar as crianças e adolescentes e dar a bola para jogarem. Precisamos do técnico, que orienta, diz que o jogo tá bom ou ruim, pede mais. O técnico é o cara que tem a experiência, já percorreu a jornada, tem estratégia, sabe aonde quer chegar. Mas, ele tem de estar aberto a aprender, pois vai aprender bastante”, diz. Nesse exemplo, as narrativas assumem novos contornos. “Na vida acelerada e conectada em rede, todos participam da construção das narrativas. Não é que todos fazem o que querem. A era digital não deve ser um vale tudo. A construção é colaborativa e em rede, mais democrática e aberta. Mas precisa ser organizada, estruturada….na educação, pelo professor”, conclui.
Leia: Nos EUA, abordagem coletiva tem melhorado o desempenho escolar
Para compreender o universo do storytelling, é preciso separar o fundamental ato de contar histórias de um processo mais complexo, que é justamente criar narrativas. As narrativas encadeiam acontecimentos, atribuem sentidos aos fatos aparentemente desconexos, conduzem o pensamento para um modo mais integrado de compreensão da realidade. O psicólogo Jerome Bruner, que lecionou nas universidades Harvard e de Oxford, estudou o poder que há por trás de uma boa história. Segundo Bruner, as chances de lembrarmos algo que foi narrado pode ser 22 vezes maior, pois a mente humana processa mais facilmente as histórias.
Isso tudo vem sendo transformado em técnicas apropriadas pela indústria do entretenimento, pelos comunicadores, pelos políticos. No campo do cinema e da TV, trata-se de um velho conhecido, e o sucesso das séries, tão populares hoje em dia, são evidências de uma audiência ávida por boas histórias, mas cuja atenção é cada vez mais difícil de capturar. “Hoje, ninguém consegue ficar mais do que cinco minutos sem checar mensagens ou navegar em redes sociais, mas quando vemos um filme bom, ficamos duas horas sem olhar para o celular”, lembra Bruno Scartozzoni, cofundador da StoryTalks e autor de um procurado curso sobre o tema no qual é especialista. Da mesma forma, argumenta, todos dizem não ter tempo para nada, mas quando uma série é muito boa, criamos um tempo que não existia.
Scartozzoni diz que esse poder de manter a atenção do público passa pelo uso de técnicas em busca de resultados engajadores, que ajudam a contar boas histórias. Para ele, são habilidades cada vez mais importantes para os educadores. “Os professores têm muita dificuldade de conseguir a atenção dos alunos, seja na sala de aula física, seja na sala de aula virtual”, ele lembra. Para o especialista em storytelling, o maior concorrente pela atenção das pessoas é o celular.
“No smartphone, os alunos encontram temas mais interessantes que a aula, desde a conversa no grupo de amigos até um filme da Netflix. Nas aulas remotas, nem precisa do celular…é só abrir mais uma aba no navegador de internet no computador”, diz.
No entanto, pela experiência de Scartozzoni, não se trata de uma concorrência invencível. “Quando alguém começa a contar uma história cativante, as pessoas param para prestar atenção. Você consegue transformar seu conteúdo em histórias, ou empacotar seu conteúdo com histórias, ou mesmo ilustrar seu conteúdo com histórias, e aí há uma chance de vencer o celular ou outras distrações”, diz.
Uma das estratégias do storytelling, claro, passa por temperar os conhecimentos com a emoção das narrativas. “As pessoas se lembram quando se emocionam. A cada tópico de conteúdo que você trabalha, o que o aluno sente? Esperança, medo, nojo, amor, um quentinho no coração…toda vez que a pessoa sente algo, aquilo se torna memorável”, destaca Bruno Scartozzoni. Por isso, aconselha, cada bloco de conteúdos deve estar associado a uma emoção. Há várias formas de trazer essa emoção à tona: contar algo pessoal, trazer para o contexto a trajetória de uma figura histórica, utilizar filmes, encenar peças, entre outras estratégias.
Leia: A liberdade do pensar de Maria Nilde Mascellani e Lauro de Oliveira Lima
Com a covid-19 e o isolamento social, muita coisa mudou no mundo da educação. No esforço de adaptação feito pelos professores às aulas remotas, tornaram-se mais prementes desafios que já acompanhavam a profissão nos últimos anos: como prender a atenção dos alunos, que agora estão do lado de lá das telas, no mais das vezes com o vídeo fechado?
Para João Jonas Veiga Sobral, professor de língua portuguesa, literatura e orientador educacional, houve uma aceleração de tendências também nesse campo. “Se modernamente o aluno já vinha deixando de ser simples espectador de aulas e exposições orais, o ensino on-line, que prevaleceu durante o período de pandemia, consolidou essa tendência”, considera. Por isso, a seu ver, cada vez mais a aula deve ser pensada como o roteiro de uma narrativa, na qual crianças e adolescentes são roteiristas e atores do processo de ensino-aprendizagem”, diz.
Nesse sentido, os recursos tecnológicos até mesmo podem favorecer a construção de storytelling, criando novas e variadas oportunidades de o aluno assumir maior protagonismo, tornando-se aliados valiosos do professor. Sobral comenta que, ao longo deste ano, diante do ineditismo da situação em que se viram, muitos professores começaram por reproduzir pelo computador as aulas que davam antes, em sala. “Mas isso não funciona”, diz o educador, que fez esse percurso.
“Percebi que, passados uns 30 minutos, a aula ficava enfadonha e os alunos tendiam a se distrair. Uma diferença importante é que na aula presencial eu posso me movimentar, modular a voz, variar a postura. Não podemos esquecer que o corpo fala”, ensina.
Para o professor, essa discussão é fundamental porque algumas mudanças vieram para ficar. Em primeiro lugar, explica, não há clareza sobre como será o ano de 2021 nas escolas, por exemplo, em relação a quantos alunos poderão estar em sala de aula. “Turmas de 30 ou 35 anos serão, provavelmente, inviáveis”, diz. Nesse contexto, o modelo híbrido, com aulas presenciais e remotas, deve prevalecer.
Não se trata, porém, só de questões de segurança, saúde e higiene. Não se sabe mesmo como os alunos vão retornar, seja no que se refere ao conteúdo que conseguiram aprender, seja no campo dos procedimentos de trabalho – ou seja, como se comportar em aula, como estudar ou como se concentrar em temas mais abstratos. “Como foi o tempo dessa criança ou desse adolescente em casa? Em um ano, tudo muda. Talvez, quando voltarem, sejam outros, com questões que nem imaginamos”, reflete o professor.
Nesse contexto, um modelo que misture o remoto e presencial terá de equilibrar as diferentes dimensões do processo ensino-aprendizagem, em especial, as de ouvir e fazer. “A sala de aula pode estar voltada, principalmente, às trocas entre os alunos e ao fazer em grupo”, sugere.
Leia: Socioemocional, fugir dos modismos e compreender o tema a partir de seu projeto pedagógico
Justamente, por isso, pode ser um bom caminho de reflexão – e de prática – olhar para o que já acontece no mundo das redes sociais, com uma força inédita. É o que recomenda uma profissional que vem conseguindo grande sucesso na web – a youtuber mineira Débora Aladim. Dona de um dos maiores canais educativos da internet, essa estudante de história da Universidade Federal de Minas Gerais iniciou sua trajetória como professora virtual com 15 anos e hoje, com 24 anos, tem mais de 2 milhões de seguidores para aulas de história, redação, bem como dicas gerais de estudo.
Para ela, o sucesso de seu trabalho está na linguagem utilizada e nas referências que constrói com produtos culturais do momento, como músicas e séries. Entre as estratégias que utiliza, surge com força o storytelling, cujas técnicas domina como poucos. Ela sabe, por exemplo, que para uma boa aula os primeiros segundos são essenciais. “É preciso ir direto ao ponto, colocar uma música ou vinheta legal, e usar muitos vídeos e imagens para ilustrar”, ensina. Assim, toda aula é uma boa história a ser contada.
Para Débora, isso está ao alcance de todo professor. “Pela própria profissão, o professor já é bem articulado – e, se não é, desenvolve essa habilidade no exercício da profissão”, acredita. Segundo a youtuber, as aulas virtuais demandam, sim, adaptação, já que não há audiência física, com pessoas reais acompanhando as aulas e com mais interação. Por isso, é mesmo difícil falar para a câmera como se fosse uma pessoa, no início.
“Mas, depois de um tempo, é até melhor, porque você pode ensinar com seu ritmo, pode se permitir errar e corrigir algo na edição, adicionar elementos posteriormente. É a prática que ensina, mas você pode assistir outros professores e youtubers como exemplo para aprender uma forma diferente de comunicação e edição”, recomenda.
Estudar o modo de trabalhar de outros profissionais é, aliás, uma recomendação importante, segundo Débora Aladim. É preciso ver quais se assemelham ao seu próprio estilo, com seu modo de falar, ver em qual tipo de edição cada professor se encaixa melhor. “Depois, mão na massa!”, incentiva. “Não tem problema ficar quatro horas gravando um vídeo que, no final, vai dar 30 minutos, isso tudo faz parte do processo criativo. E o apoio do público e dos alunos é fundamental, a propaganda boca a boca é a que mais converte inscritos e seguidores”, diz, mostrando o caminho das pedras. Sim, pedras. Mundo virtual não quer dizer mundo mais fácil, e os desafios dos professores tornam-se, como tudo, cada vez mais complexos. Está na hora de uma nova história da educação começar a ser contada.
*Esta matéria sobre storytelling na educação foi capa da edição 272, novembro/dezembro, da revista Educação, em 2020