NOTÍCIA
O Brasil perdeu uma de suas principais referências em alfabetização, com prestígio também internacional. Mas pessoas gigantes e compromissadas com a justiça social não morrem, se eternizam nos livros, pesquisas, formações e, finalmente, na sala de aula. Magda Soares brincava que era guru de Paulo […]
Publicado em 02/01/2023
O Brasil perdeu uma de suas principais referências em alfabetização, com prestígio também internacional. Mas pessoas gigantes e compromissadas com a justiça social não morrem, se eternizam nos livros, pesquisas, formações e, finalmente, na sala de aula. Magda Soares brincava que era guru de Paulo Freire – de verdade ela é guru de muitos educadores e educadoras, sendo guia daqueles que escolheram como profissão o ato de educar.
A mineira Magda Becker Soares faleceu aos 90 anos, no primeiro dia de 2023, em decorrência de um câncer. Seu corpo foi cremado em cerimônia restrita. Deixa cinco filhos, quatro netos e dois bisnetos.
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Graduada em letras, doutora e livre-docente em educação, foi professora titular emérita da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), da qual foi uma das criadoras. Também idealizou e fundou em 1990 o Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale) – órgão complementar da Faculdade de Educação da UFMG. Professores universitários e de redes de ensino mantêm o objetivo de Magda de desenvolver estudos na área e apoiar na criação de políticas públicas. Mesmo aposentada, Magda Soares continuou atuando no Ceale.
Em 2015, foi a primeira pessoa da educação a receber o Prêmio Almirante Álvaro Alberto, concedido pelo CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico). Principal premiação na área da ciência e tecnologia, destaca todo ano um pesquisador de obra científica ou tecnológica para o progresso da sua área do conhecimento.
Ganhou o Prêmio Jabuti de 2017 na categoria Educação e Pedagogia com o livro Alfabetização: a questão dos métodos (ed. Contexto). No período cujo Ministério da Educação foi nomeado pelo governo Bolsonaro, por questões ideológicas, atacavam-se as suas contribuições.
Também de sua idealização, o projeto Alfaletrar teve início em 2007, sendo uma parceria com a secretaria municipal de Educação de Lagoa Santa, Minas Gerais – o objetivo é o desenvolvimento profissional dos educadores da rede municipal. A partir dessa união, foi criado o Núcleo de Alfabetização e Letramento, com atuação de técnicos e educadores da rede e cujas reuniões recebiam a coordenação voluntária de Magda.
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A partir da experiência com o projeto, em 2020, Magda lançou o livro Alfaletrar: toda criança pode aprender a ler e a escrever (ed. Contexto). Em setembro do mesmo ano, Magda Soares apresentou o projeto durante um debate online no canal oficial do Ceale no YouTube. Clique aqui para assistir.
Magda Soares defendia que sim, é preciso ter vários métodos para alfabetizar, mas, sobretudo, como ensinar o quê e para quem. Deixou claro que a fala é inata, já a escrita é cultural e precisa ser desenvolvida, ou seja, a criança não aprende a ler e a escrever sozinha.
“Continuamos discutindo método, sem entender o processo. Como se pudesse achar de repente um método que fosse uma varinha de condão, uma receita”, alertou Magda em 2016, em entrevista realizada pelo jornalista Rubem Barros à revista Educação.
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“A professora Magda Soares é um exemplo de vida inteiramente dedicada à alfabetização. Seus escritos e forma de ser no mundo influenciaram e ainda vão influenciar todos aqueles e aquelas que lutam pelo direito à aprendizagem da leitura e da escrita para todo ser humano. Ler Magda e escutá-la é renovar a certeza de que alfabetizar é, sobretudo, intencionalidade pedagógica”, afirma Lourival José Martins Filho, presidente da Associação Brasileira de Alfabetização (Abalf) e professor da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc).
Lourival complementa: “Teses e dissertações em educação e linguística têm em Magda uma referência obrigatória e a Abalf, da qual ela é presidente de honra, tem inteira gratidão à Magda”.
Como a maioria das pessoas, o primeiro contato do diretor do Ceale, Gilcinei Carvalho, com Magda, foi via suas publicações. Era estudante de letras na UFMG, fato que fez aumentar ainda mais o interesse por seus trabalhos. “O livro Linguagem e escola [publicado em 1986] era leitura praticamente obrigatória dentro da área de letras e linguística”, lembra Gilcinei. Ele tem mestrado e doutorado em linguística também pela UFMG e pós-doutorado com estágio nos Estados Unidos. O encontro presencial ocorreu tempos depois, durante a apresentação de uma banca.
“Magda é pouco destacada como a sociolinguísta que analisa essa relação entre linguagem e escola, da qual o próprio livro traz pistas para o entendimento”, pontua o diretor.
Gilcinei resume que a atuação básica do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita, fundado por Magda, é desenvolver projetos de formação continuada, atividades de pesquisas e documentação. São as pesquisas que centralizam toda a produção de conhecimento sobre a alfabetização, como teses e dissertações. Segundo ele, é isso que diferencia o Ceale de outros centros – ainda mais ao pensar na época em que foi criado, em 1990. “Esse feito de centralizar a produção de conhecimento sobre alfabetização é uma marca muito clara da Magda Soares”, reconhece Gilcinei.
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O diretor pede cuidado na afirmação de que os cursos de formação docente estão defasados. “Há uma certa dinâmica em que os próprios currículos, de tempos em tempos, necessitam de reformulação, complementação, realinhamento.
Além disso, qualquer classe profissional exige atualizações para o acompanhamento de uma agenda contemporânea daquela área. Nesse aspecto, o professor não está imune a essa necessidade de constante acompanhamento. Novamente, não estamos falando de defasagem. Mas da necessidade de não só introduzir temáticas que muitas vezes os cursos, por uma questão até histórica, não abordaram, mas também de reenquadramento.”
Ainda sobre os desafios da formação docente, ele resume colocando que em jogo está a velha discussão entre teoria e prática e como as duas se autoalimentam. “Qualquer curso de graduação, qualquer instituição e, principalmente, considerando instituições de maior peso, precisam estar abertas a essas renovações, a essas reavaliações.”
No caso específico da alfabetização, o diretor do Ceale dialoga com Magda Soares ao destacar a importância de debater os métodos.
“Por pensar que já está tudo resolvido, há quem ache uma discussão ‘caduca’ ou desatualizada abordar métodos. E precisam ser discutidos, inclusive não só para buscar os fundamentos, mas para a construção de críticas necessárias ao entendimento desses contextos históricos e políticos de emergência de determinadas tendências”, esclarece Gilcinei.
Como esperado, o livro de Magda Soares que ganhou o Jabuti, Alfabetização, uma questão de métodos, se tornou referência na área. “É uma obra que traça esse panorama. Mostra a necessidade de um conhecimento relativo a várias facetas – palavra muito presente no texto clássico também de Magda [Letramento e Alfabetização: as muitas facetas – ou As muitas facetas da alfabetização]. Essa formação mais abrangente é necessária e se constitui de forma prévia para depois ter uma aplicação. Ela dialoga muito com os desafios que são demandados nas próprias vivências profissionais”, explica Gilcinei.
Sobre esses vários olhares, vale resgatar outro trecho da entrevista que Magda Soares concedeu à revista Educação por meio de Rubem Barros: “A vantagem que levei foi ter sido formada em letras, e não em pedagogia. A alfabetização sempre foi entendida como um problema de pedagogo. Até hoje ainda há muito disso. E é, mas não só. É também da psicologia, da linguística e de todas as ciências linguísticas”.
Em diálogo com Paulo Freire, o que Magda Soares e também Gilcinei tentam destacar é que não há uma receita pronta no processo de ensino e aprendizagem. Entre as marcas de Magda está a de colocar o aprendiz no centro. E não negar sua identidade, gerando uma construção do conhecimento. “A discussão sobre metodologias tem que ser configurada para não ser muito simplista em relação a dar uma resposta, principalmente uma resposta que seja universal e que atenda a universos tão variados”, alerta Gilcinei.
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Ainda sobre os legados de Magda Soares, Gilcinei Carvalho enaltece seu espírito agregador, na construção do Ceale com membros de diferentes visões. Além da perspicácia de convidar pessoas certas em momentos adequados e fazer a proposta acontecer.
“Precisamos recompor junto ao MEC e à sociedade brasileira a imagem de Magda Soares. Ela e Paulo Freire foram muito aviltados, sem fundamento, como se fossem responsáveis pelos problemas da alfabetização do Brasil. Ao contrário, eles são responsáveis pelos avanços da alfabetização brasileira”, declara emocionada Maria Mortatti, escritora, pesquisadora e professora titular na Universidade Estadual Paulista (Unesp).
Maria Mortatti se refere aos ataques do governo Bolsonaro que, por meio de seus ministros da Educação, criticaram duramente Magda Soares, a introdutora do conceito de letramento no Brasil. Contudo, gigante como é, o governo se foi e Magda se eterniza logo no primeiro dia do presidente Lula. Para Mortatti, ela é a dama da educação brasileira por seu amplo e premiado trabalho na área educacional, que vai além da alfabetização.
“As obras dela me marcaram e não só para a sala de aula, como o livro didático Português através de texto [ed. Bernardo Alvares, 1970]. Todos foram inovações fundamentais.”
Foi no mestrado e doutorado, nos anos 1980, que Maria Mortatti conheceu, em particular o livro Linguagem e escola: uma perspectiva social (ed. Ática, 1986). “Uma abordagem inovadora para a época situar a linguagem no plano da sociolinguística e da sociologia; foram muitos os avanços que ela propôs. Como professora e pesquisadora, foi fundamental para mim”, se recorda.
Maria Mortatti ficou 15 anos na educação básica. Quando ingressou na universidade, outras obras de Magda a guiaram em sua nova fase profissional de docência e pesquisa. Como o livro Alfabetização no Brasil: o estado do conhecimento (1989), em que se baseou para definir a abordagem histórica da alfabetização em sua tese de livre-docência – de cuja banca Magda participou. Entre outros também importantes, Letramento: um tema em três gêneros, além de, mais recentemente, Alfabetização – a questão dos métodos (vencedor do Jabuti).
A professora ressalta ainda a honra e a alegria de contar com a amizade intelectual e pessoal de Magda Soares:
“Sempre generosa e carinhosa, embora tenham sido poucos nossos encontros presenciais, ela me proporcionou momentos inesquecíveis de sentidos compartilhados na alfabetização e na vida, uma história que construímos ao longo dos anos. À dama da educação brasileira, que nasceu no dia em que se comemora a Independência do Brasil e faleceu no dia da posse do novo presidente do país e da festa da democracia e do povo brasileiro, minha admiração e agradecimento. Seu legado é imortal.”
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O educador José Pacheco, fundador da Escola da Ponte, em Portugal, e colunista da revista Educação, nos enviou em primeira mão sua nova cartinha (diariamente publica em suas redes sociais crônicas sobre educação) e a próxima será em homenagem à Magda Soares. Confira uma pequena parte:
“Aos 90 anos, a Magda mantinha contato com escolas e professores, trabalhando, voluntariamente, com alfabetizadores na rede municipal de Lagoa Santa, SC…
…este jovem professor (já fui jovem…) acolhera as propostas da Emília e da Magda sobre o processo de alfabetização inicial: restituir a língua escrita seu caráter de objeto social; aceitar que todos podem produzir e interpretar escritas, cada qual em seu nível; estimular a criança na interação com a língua escrita em vários contextos.
Nesse tempo, eu fazia a minha especialização na área da alfabetização e já praticava várias metodologias – fonomímicas, fonossintéticas, globais, silábicas e o “tu já lê” – mas a abordagem da Magda ajudou-me a ultrapassar alguns limites… Ela sabia não haver um “tempo certo” para aprender a ler. Também, isso me ensinou. De tanta aprendizagem lhe fiquei devedor!”
*Confira um trecho da entrevista exclusiva que Magda Soares deu à revista Educação por meio do jornalista Rubem Barros para a edição 256, em 2019:
“Senti na pele a distância que havia entre a escola em que eu tinha estudado [particular] e onde dava aulas agora [rede pública], a diferença de condições, professores, sobretudo de relação dos professores com os alunos. Esse momento representou um rito de passagem na minha vida. Daí em diante, passei a vida por conta da escola pública.
Deixei o ensino básico e fui para a universidade, com dedicação exclusiva, o que às vezes é mais um malefício do que um benefício para quem está formando professores. Você forma professores para uma escola da qual está distante, que conhece só pela pesquisa. Mas fiz e orientei pesquisas sobre a língua, sobre problemas de linguagem na escola pública. E fui me convencendo cada vez mais que a questão era o começo da história, a fase de entrada da criança no que podemos chamar de cultura da escrita. E acabei me voltando para essa área inicial.”
Leia a entrevista completa clicando aqui.
*Esta matéria foi reeditada em 2 de fevereiro de 2023, momento que a jornalista acrescentou a entrevista com Gilcinei Carvalho, diretor do Ceale