NOTÍCIA
“Tenho três filhos estudando em Manaus. Eles têm gostado de aprender a cultura deste país.” As palavras, ditas numa rápida entrevista e traduzidas do espanhol, são de Luisana Del Valle León Dé Torres, venezuelana refugiada no Brasil há três anos. Graças à documentação que receberam […]
Publicado em 30/01/2023
“Tenho três filhos estudando em Manaus. Eles têm gostado de aprender a cultura deste país.” As palavras, ditas numa rápida entrevista e traduzidas do espanhol, são de Luisana Del Valle León Dé Torres, venezuelana refugiada no Brasil há três anos. Graças à documentação que receberam na fronteira, as crianças começaram a estudar tão logo chegaram à capital manauara.
Aqui, um panorama geral da situação: em outubro de 2021, a Agência da ONU para Refugiados (Acnur), o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) e o Ministério da Educação (MEC) lançaram o Guia para pais e educadores sobre integração de crianças e jovens refugiados nas escolas. O projeto faz parte do Portal de Educação para Refugiados e foi idealizado com o objetivo de facilitar o acesso à informação, de maneira a garantir a integração efetiva de crianças e jovens refugiados no sistema educacional brasileiro.
A ação se mostrou ainda mais necessária porque, mesmo a educação sendo um direito humano universal e fundamental, dados do mais recente relatório global de educação do Acnur apontam que apenas 77% das crianças refugiadas estão matriculadas no ensino primário (fundamental 1), e somente 34% frequentam o ensino secundário (fundamental 2 e médio).
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Leia: Crianças refugiadas: longe da pátria e longe da escola
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No Brasil, por exemplo, o direito à educação está garantido pela Constituição Federal e pela Lei de Migração nº 13.445/2017, sendo flexibilizado pela Resolução CNE nº 1, de 13 de novembro de 2020, a qual assegura que a população em situação de refúgio e migração possa se matricular ainda que não possua todos os documentos requeridos pela instituição de ensino.
Isso significa que todas as crianças e adolescentes refugiados, apátridas, solicitantes da condição de refugiados e imigrantes no Brasil têm – ou deveriam ter – espaço garantido no sistema público de ensino. Portanto, o direito à educação é universal e independe da situação migratória em território nacional.
Ainda assim, de acordo com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), a maioria das crianças refugiadas ainda não está matriculada. Por isso, ações vêm sendo tomadas para melhor receber aqueles que chegam ao Brasil – especialmente pelas fronteiras entre o Norte do país e a Venezuela. Desde 2018, por exemplo, o Acnur apoia o governo brasileiro na implementação da Operação Acolhida, que se estrutura no ordenamento de fronteira, na documentação e acolhimento e assistência humanitária e na estratégia de interiorização de pessoas refugiadas.
A estratégia de interiorização (quando o refugiado é realocado de forma voluntária e gratuita para outro município) tem como finalidade a inclusão socioeconômica e a integração local, ou seja, busca oferecer melhores oportunidades para os venezuelanos em outros estados do país, incluindo vagas de emprego e acesso à educação. Como consequência, boa parte das crianças é matriculada nas escolas depois de a família já ter sido interiorizada.
Em Manaus, por exemplo, o Acnur segue atuando de maneira ativa em parceria com a prefeitura e o governo do estado do Amazonas para assegurar a matrícula escolar a qualquer pessoa, independentemente da nacionalidade. Foi dentro desse contexto que Luisana chegou ao Brasil, em 2019. Junto de sua mãe, do marido e dos três filhos, ela deixou a Venezuela por questões econômicas e migrou para o território brasileiro na expectativa de melhores condições de vida. A família passou três dias num abrigo para refugiados em Boa Vista. Todos conseguiram dar entrada no pedido de documentação e, com os papéis em mãos, os cinco seguiram para a capital manauara e foram interiorizados.
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Pouco tempo depois de instalados na cidade, os filhos de Luisana conseguiram vagas em escolas locais. Hoje, três anos após deixarem a Venezuela, já falam português e interagem tranquilamente com outras crianças brasileiras. Mas nem sempre foi esse o cenário.
Num primeiro momento, Álvaro, 17 anos, Luisannys, 11 anos, e Luciángeles, seis anos, tiveram dificuldade de adaptação por conta do idioma. O que dificultou um pouco mais a situação foram as matrículas em escolas diferentes – as escolas estaduais Raimundo Gomes Nogueira e Maria da Luz Calderaro, e o CMEI Wilson Mota dos Reis –, e nenhuma possuía uma disciplina específica de aprendizado da língua portuguesa para alunos estrangeiros.
Contudo, em cidades que recebem um número expressivo de refugiados venezuelanos, é comum que algumas instituições ofereçam aulas gratuitas de português. Foi o que possibilitou que não apenas os filhos, mas toda a família de Luisana dominasse a língua local. Hoje, Álvaro, Luisannys e Luciángeles já aproveitam melhor o tempo em sala de aula.
Com um trabalho voltado para crianças, o Unicef também atua diretamente com aquelas que chegam da Venezuela e precisam de suporte para se reintegrar e reestabelecer em solo brasileiro. A estratégia Súper Panas nas Escolas, por exemplo, visa à integração das crianças e dos adolescentes migrantes e refugiados ao sistema escolar brasileiro por meio de mediação intercultural e práticas pedagógicas condizentes.
Vale ressaltar que, dentro das escolas, a realidade é bastante diversa. Há instituições acolhedoras, em que é possível perceber uma integração significativa dessas crianças e jovens refugiados. Contudo, há escolas pouco abertas, cuja integração se torna mais complexa. Crianças indígenas warao, por exemplo, passam meses sem conseguir desenvolver competências em língua portuguesa porque a escola não se mostra apta a acolhê-las propriamente. São as escolas mais sensíveis ao tema e/ou da estratégia Súper Panas nas Escolas que acabam oferecendo todo o atendimento mais bem direcionado.
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Leia: Educação indígena: escola viva ainda está longe de ser alcançada
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E não falar português é um dos entraves que mais impactam na interiorização. Segundo Arturo Nieves, oficial sênior de coordenação do ACNUR em Boa Vista, “saber falar português aumenta em até 70% a chance de ser interiorizado”.
Nesse aspecto, em Boa Vista há outro projeto de destaque que auxilia no processo de acolhida e integração de crianças refugiadas: o Mi Casa, Tu Casa • Minha Casa, Sua Casa. Tendo como uma das responsáveis pela iniciativa Stéphanie Habrich, a ação surgiu junto do jornal Joca, primeiro veículo de notícias voltado para o público infantojuvenil do Brasil e do qual Stéphanie é diretora executiva, em parceria com a organização internacional Hands On Human Rights, especializada em direitos humanos, e com o próprio Acnur.
O Mi Casa, Tu Casa tem como objetivo proporcionar acolhimento e contribuir para a continuidade da educação de milhares de crianças e adolescentes refugiados e migrantes venezuelanos. Dentre as atividades propostas pelo projeto está a construção de bibliotecas – uma maneira de auxiliar na disseminação do português por meio da literatura. Hoje, no Brasil, já são sete unidades construídas, sendo duas em São Paulo e cinco na capital de Roraima.
Em 2022, em uma mobilização inédita, cerca de 40 mil estudantes de 80 escolas públicas e particulares de diversos estados do Brasil arrecadaram mais de 37 mil livros – em português e espanhol. Tamanho o impacto do projeto, a iniciativa das bibliotecas ficou entre as cinco finalistas do prêmio Jabuti na categoria de fomento à leitura. Ainda assim, para Stéphanie, “o maior prêmio é saber que as crianças têm acesso diário às bibliotecas”.
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