NOTÍCIA
No filme 2001, uma odisseia no espaço (Stanley Kubick, 1968), o sistema de inteligência artificial fictício HAL 9000 tem como objetivo conduzir uma missão espacial humana ao planeta Júpiter. Para isso, ele elimina quase toda a tripulação, deixando vivo o único astronauta capaz de completar […]
Publicado em 06/03/2023
No filme 2001, uma odisseia no espaço (Stanley Kubick, 1968), o sistema de inteligência artificial fictício HAL 9000 tem como objetivo conduzir uma missão espacial humana ao planeta Júpiter. Para isso, ele elimina quase toda a tripulação, deixando vivo o único astronauta capaz de completar a tarefa com sucesso. Ardiloso e manipulador, o computador de bordo levantou nos espectadores mais questões sobre a humanidade do que sobre as máquinas. O astronauta sobrevivente, Dave Bowman, ironicamente, era o único que compreendia a ‘natureza’ fugidia de HAL.
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Atualmente, o espanto vem do cotidiano. Ao deparar com a rapidez e a qualidade de um algoritmo de inteligência artificial que levanta padrões, em meio a uma gigantesca qualidade de dados, e assim gera um produto final (um texto mais preciso do que muitos cérebros fariam), sentimos mais uma vertigem mórbida sobre os limites das capacidades humanas do que uma admiração pelo desenvolvimento de um sistema inteligente. No final das contas, o ChatGPT, e outras filiações da chamada inteligência artificial generativa, nos alertam para os limites da nossa própria existência.
A chegada de tecnologias no universo da educação sempre chacoalhou o tradicionalismo que impera entre os muros da escola e, pior, entre os limites morais do que é considerado o ‘sagrado ato de educar’. O rádio, as calculadoras, a televisão, os processadores de texto, o recurso de ‘copiar e colar, as redes sociais, os games e o buscador Google profanaram aquilo que é sublime para muitos: a aprendizagem. Afinal, esse complexo processo sempre foi tido como puro, emocional, exclusivamente humano e delegado à escola.
Ante o espanto, o melhor caminho é a compreensão. Em primeiro lugar, é importante admitir que a ontologia contemporânea tem espaço para os ‘quase-objetos’, ou os híbridos (como propõe a antropologia do francês Bruno Latour). A vida cotidiana é permeada e mediada por entes não exclusivamente humanos por décadas – somos criadores e criaturas delas. Admitindo isso, é possível perceber que o processo de aprendizagem nunca foi puro, tampouco é exclusivamente humano. Aproximá-lo de uma questão moral é quase um risco. Negar que fenômenos como o desenvolvimento da inteligência artificial farão parte cada vez mais de nossas vidas é pouco eficiente.
Neste exato momento, profetas dos mais diversos se dedicam a pensar práticas, dicas, proposições, explicações e limitações morais que possam tranquilizar os professores. Talvez eu seja um deles, mas não consigo tranquilizar ninguém. No caminho que invento, sugiro explorar a questão singular e inicial deste texto: o que ainda nos faz humanos?
Em primeiro lugar, os sistemas de inteligência artificial, como o ChatGPT, não têm consciência, sentimento ou originalidade. O que fazem, basicamente, é cumprir tarefas. Um algoritmo é uma lista de tarefas que a máquina é ordenada a fazer para obter determinado resultado. No caso, estabelecer padrões e comparar dados para fornecer algo mais próximo da resposta que desejamos. Sua capacidade de realizar isso é milhões de vezes maior que a dos seres humanos. Os resultados dependem muito da qualidade de nossas perguntas e são muitas vezes superestimados por nós mesmos.
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Escute nosso episódio de podcast:
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A entrevista em que o escritor Joca Reiners Terron dialoga com o próprio sistema, publicada no jornal Folha de S.Paulo, pedindo que esse produzisse textos ao estilo de William Shakespeare, resultou em um texto sem originalidade, mas com maneirismos ‘shakespearianos’. Em outra frente, diversos letristas da música popular solicitaram ao sistema uma produção no estilo de seus trabalhos; como resultado, obtiveram cópias falastronas.
Há também resultados incríveis, devemos admitir, que passam longe do que um ser humano teria habilidade para criar sozinho; o que nos pode ser muito útil. Já a acurácia das respostas e a assertividade dos textos irão melhorar com o tempo – de imediato para solicitações menos complexas. Acertar as questões do Enem, por exemplo, é mais um problema de relacionar resultados em uma base de dados confiável; o Google buscador já é capaz de fazer isso há tempos, só não nos entrega o texto pronto.
A questão que responde ao título desse artigo, portanto, não reside em minimizar o impacto da inteligência artificial. Ele é imenso e tem influência de transformação em muitos campos; nesse sentido, tem sido comparada àquelas promovidas pela energia elétrica. Trata-se de um rio caudaloso que, como todos, só corre para um lado. Empregos são extintos, transformados e o próprio conceito de cognição, colocado em xeque.
O ponto central é que a inteligência artificial não tem subjetividade mas, ao mesmo tempo, não é neutra. Trata-se de um sistema estatístico de probabilidade, como define a pesquisadora e doutora brasileira Dora Kaufman, da PUC de São Paulo. Os sistemas são desenvolvidos por seres humanos, e grande parte de suas diversas implicações éticas podem ser mitigadas durante o processo de desenvolvimento ou na base de dados à qual estão expostos.
Parafraseando novamente Latour, temos que ser modernos, finalmente. Na educação isso significa repensar como educamos, para quê educamos, com base em que evidências avaliamos, com quem ou o quê interagimos na vida cotidiana e em quem media nossas relações com o mundo. O dedo mais uma vez está apontado para os vícios de uma educação ‘bancária’, conservadora e que enxerga ainda um mundo industrial e linear. Compreender esse cenário significa sobreviver a ele, tal qual o astronauta Bowman, de 2001.
Transformação humano digital da educação é inevitável