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Do Rio de Janeiro | 17 de outubro de 2009 seria um sábado de aulas comum para mim e meus colegas de ensino médio caso um helicóptero da Polícia Militar não tivesse sido abatido a tiros no Morro dos Macacos, zona norte do Rio de […]
Publicado em 20/03/2023
Do Rio de Janeiro | 17 de outubro de 2009 seria um sábado de aulas comum para mim e meus colegas de ensino médio caso um helicóptero da Polícia Militar não tivesse sido abatido a tiros no Morro dos Macacos, zona norte do Rio de Janeiro, naquele dia. A cerca de 5 km de onde estudávamos, no Colégio Pedro II em São Cristóvão, o confronto não podia ser ouvido da nossa sala de aula, mas foi suficiente para que um inspetor batesse à porta e avisasse o que tinha acabado de acontecer:
— Derrubaram um helicóptero da PM.
Quem vive fora do Rio pode não entender exatamente a relevância dessa informação, mas se aprende cedo as implicações de um ataque desse tipo. A morte de um policial significa que vai haver uma reação. A morte de alguns traficantes e milicianos, também. Em termos simples: é guerra. Só que o campo de batalhas é a cidade, especialmente as favelas e seu entorno. Ali mesmo, no meio de casas, comércios, postos de saúde. E escolas.
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Se aquele sábado de aulas de 2009 parece tão fresco na memória é porque uma colega de sala começou a chorar copiosamente. Talvez por morar naquela favela, ou por ter pai policial, e também porque foi a primeira vez, em 10 anos, naquela escola, que o tema da violência atravessou seus enormes portões de forma tão crua.
A informação precisou passar pela equipe de segurança, transpor muros altos, salas de arte, música, laboratórios de ciências e quadras poliesportivas para interromper a explicação da professora e suspender aulas de todas as turmas. Em um colégio público de qualidade, cujos direitos à vida e à educação deveriam ser respeitados, o perigo de confrontos armados ficava do lado de fora. É o básico, a alunos de todas as escolas, mas virou exceção.
“Estava dando aula e ouvimos barulho de tiro. Nesses casos, a recomendação é sair da quadra esportiva e ir para a parte interna. Vimos o helicóptero sobrevoar a escola, mas isso fazia parte da rotina, sempre víamos. Só que, nesse dia, o barulho da hélice foi ficando cada vez mais alto, mais perto, até que eles (policiais) pousaram na quadra, desceram do helicóptero e seguiram para uma parte descampada que dá acesso à favela para seguir trocando tiros”, conta a professora de educação física do município do Rio, Laís Clímaco.
Esse episódio com helicóptero, diferente do primeiro, aconteceu em uma escola da Praça Seca, zona oeste, entre 2017 e 2018, e foi um dos mais assustadores da trajetória da professora entre muitos outros que já presenciou em uma década como concursada da prefeitura. O bairro voltou a viver dias consecutivos de conflitos entre o final de 2022 e o início deste ano. “Não vejo melhora. As coisas ficam calmas por um tempo. Achei que tinha melhorado e agora voltou novamente”, lamenta Laís.
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No mesmo 2017, outra aula de educação física, em um ponto oposto da cidade, foi interrompida, mas com uma consequência brutal. Maria Eduarda Alves da Conceição, de 13 anos, foi atingida por tiros na quadra da Escola Municipal Jornalista e Escritor Daniel Piza, em Acari, na zona norte, e morreu. O laudo da perícia confirmou que as balas partiram da arma de um policial. Os pais de Duda, como era chamada a menina, um pedreiro e uma auxiliar de serviços gerais, seguem cobrando justiça do estado.
Blindagem de edifícios, estudo balístico, procedimentos para evacuação do prédio. Todos esses termos podem parecer retirados de uma rotina militar em circunstância de guerra, mas, na verdade, fazem parte do cotidiano de um colégio de ensino médio localizado em Manguinhos, zona norte do Rio de Janeiro. A Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), unidade técnico-científica da Fiocruz, instituição pública federal de ensino e pesquisa, precisou elaborar um Plano de Contingência para o caso de conflitos armados no entorno.
“O prédio tem três pavimentos e cada um deles conta com um responsável. No caso de tiroteios, conduzir todos os presentes no seu andar para o centro do prédio, que é o local mais seguro de acordo com um estudo balístico conduzido pela equipe de segurança”, descreve o professor de história José Mauro da Conceição. Neste contexto de risco de vida, ele ensina futuros técnicos em saúde sobre a relação da humanidade com a doença ao longo do tempo, além da história do SUS e de outros sistemas de saúde.
Elaborada em 2017, a cartilha com o Plano de Contingência foi uma resposta à frequência e à intensidade das operações policiais que a favela de Manguinhos vivia àquela altura. “A interrupção da circulação de trens (que dão acesso à escola), o sobrevoo de helicópteros, as rajadas de armas pesadas e o barulho de bombas que pareciam de filmes de Vietnã eram nossa rotina”, comenta José, que também já foi diretor de colégio estadual em São Gonçalo, cidade da região metropolitana do Rio de Janeiro. Lá, no turno da noite, ele assistiu e mediou situações de violência contra os estudantes.
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“Sei que situações como essas não são normais, mas é a minha normalidade. Não consigo mais sentir medo quando acontece um tiroteio, nem fico surpreso quando sei de um assassinato, como aconteceu com uma aluna em São Gonçalo. É tanto tempo vivendo neste estresse que naturalizamos. Chega a um ponto que não te causa mais espanto, você endurece”, revela o ex-diretor.
Apesar dessa constatação, José identifica que um dos maiores danos causados por esses conflitos é o adoecimento psicológico dos trabalhadores da educação. Ele contou que em um dos tiroteios entre policiais e traficantes em Manguinhos, uma bala entrou pela janela da escola e ficou cravada na parede, no posto de trabalho de uma funcionária, na altura de sua cabeça. Ela estava de férias na ocasião. Quando retornou e viu a marca do tiro, teve uma crise nervosa. “Ela chorava imaginando a possibilidade de não estar em folga no momento, precisou ser atendida no posto médico e, como muitos outros, deixou a escola um tempo depois. Aquilo acabou com ela”, relembra José.
O prolongamento de situações como essas tem consequências ainda mais sérias na vida dos docentes. Em sua pesquisa de mestrado Violência armada e escola pública: desafios à atuação do professor em favelas do Rio de Janeiro, Luana Caroline dos Santos entrevistou trabalhadores de colégios localizados no entorno de comunidades em diferentes pontos da capital. Os prejuízos à saúde mental desses profissionais são incalculáveis.
“São muitos casos de depressão, ansiedade, estresse. Não é fácil passar por isso e seguir até o fim da tarde dando aula. Ver essa realidade e seus alunos naquele contexto gera muita tristeza. Mas os professores acabam se adequando para poder seguir em frente com seu trabalho. Eram perceptíveis o amor e a dedicação que todos manifestavam pelo magistério, do mesmo modo que eram explícitas as enormes dificuldades a serem superadas”, explica Luana, que além de mestre em educação, cultura e comunicação em periferias urbanas pela UERJ, também atua como pesquisadora no Núcleo de Pesquisa Educação e Cidade (NUPEC/EDU-UERJ).
“No meu primeiro ano como concursado, os confrontos estavam muito intensos. Nunca esqueço o dia em que cheguei à escola, estava tendo operação policial e um aluno de seis anos me falou: ‘tio, tem que vir pelo cantinho!’. Ele estava me alertando sobre como caminhar pra me proteger de possíveis tiros. Mas ele ainda estava aprendendo a falar, era muito pequenininho”, conta o professor de educação musical da prefeitura do Rio, Lucas Torres. Ele dá aulas em Senador Camará, zona oeste. “Nesse dia, eu chorei muito”, completa.
Segundo os professores com quem a repórter conversou, a maioria dos estudantes que vive em áreas cujos confrontos armados são frequentes não demonstra tanto pavor com a situação quanto eles, educadores. A escola se torna uma extensão do que vivem cotidianamente em outros espaços.
“A gente se assusta muito mais do que os alunos. Eles devem ver muito isso (tiroteios) perto de casa. Quando dá um disparo e olho assustada pros alunos, eles falam com naturalidade: ‘é tiro, tia’. São desde cedo impedidos de terem uma rotina normal de criança”, reconhece Laís.
Para além dos riscos à vida e à integridade, esses alunos ainda sofrem outras consequências da violência em seus processos de aprendizado. Em anos letivos com conflitos, a ausência de professores aumenta em 5,8%. As escolas que vivenciam violência em dias contínuos têm chances 12% maiores de ter um diretor com menos de dois anos no cargo.
Os números são da Nota Técnica da Fundação Getulio Vargas (FGV) Tráfico de drogas e desempenho escolar no Rio de Janeiro, elaborada por Joana Monteiro e Rudi Rocha. A ausência de professores e a descontinuidade das gestões espelha a dificuldade de elaborar projetos de longo prazo para os estudantes em decorrência do ambiente violento em que a comunidade escolar está inserida.
Há seis anos como professor em Senador Camará, Lucas enxerga também outros efeitos indiretos que a brutalidade do bairro gera dentro do colégio. “Acredito que o entorno violento cria uma tendência à violência até nas práticas cotidianas, mas com verniz escolar. Castigos como deixar o aluno em pé por longos períodos, gritos para dar ordens e turmas em filas com as mãos para trás e a cabeça baixa são coisas que já vi”, comenta o docente.
Para além de todas as tensões e dificuldades, o efeito colateral da realidade vivida nessas escolas é uma rotina de suspensão de aulas. Em dias com conflitos intensos ou já previstos, diretores de colégios das diferentes áreas da cidade, reunidos em grupos, ganharam recentemente maior poder de pressionar as gerências regionais a conceder o fechamento das escolas, segundo os professores. A comunicação via aplicativo de mensagens tanto para os trabalhadores quanto para as famílias dos alunos aumentou, em algumas escolas, a previsibilidade do cancelamento de aulas.
“Foi um avanço minúsculo, mas diminuiu um pouco o risco de sermos surpreendidos com portões fechados em meio a um confronto ao chegar para dar aulas, como acontecia”, comenta o professor Lucas. “Foi um ganho da junção de diretores organizados. É muito difícil ter qualquer esperança, mas acredito nessa força do coletivo como forma de propor mudanças”, explica.
O fracasso da política de segurança pública brasileira, em especial no Rio de Janeiro, vai para muito além dos muros das escolas. É sistêmica, basilar. Mas antes de resolvê-la é impraticável vislumbrar melhorias substanciais no aprendizado desses alunos que, no meio da aula, a qualquer momento, podem ter que se abaixar e correr para os corredores para se proteger de bala.
“Não podemos naturalizar que essas instituições, e nem qualquer outro lugar, estejam sujeitas cotidianamente à violência armada. É preciso ter políticas públicas efetivas que preservem a segurança dos moradores e da comunidade escolar”, defende a pesquisadora Luana.
*A reportagem começa na primeira pessoa por conta de a lembrança ser da própria repórter.
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