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Tem pataqueira, tem patcholi. O famoso bulgari. Baunilha cheirosa, a famosa priprioca. Banzeiro de pororoca. Tomar banho de cheiro e se jogar no banzeiro. Ainda tem o tremor do jambu para conhecer o que a jamburana faz. Esses chamados, bem como a afirmação que a […]
Publicado em 24/04/2023
Tem pataqueira, tem patcholi. O famoso bulgari. Baunilha cheirosa, a famosa priprioca. Banzeiro de pororoca. Tomar banho de cheiro e se jogar no banzeiro. Ainda tem o tremor do jambu para conhecer o que a jamburana faz. Esses chamados, bem como a afirmação que a canarama é viçosa e o tapete é mururé, são todos da cantora e compositora dona Onete, a paraense que transmite o seu modo de vida intimamente relacionado às raízes culturais locais por meio de suas letras, consideradas uma enciclopédia regional e também um grito de alerta sobre as riquezas vivas e resistentes que o país pouco conhece do estado banhado pela Floresta Amazônica.
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Aos 83 anos, ela canta o Pará das manifestações culturais amazônicas em shows pelo Brasil e mundo – é a rainha do carimbó chamegado –, mas por 25 anos o seu palco foi o chão da escola e o público, seus alunos. A trajetória profissional enquanto cantora só aconteceu após os 62 anos e de maneira espontânea, quando se aposentou como professora e passou a morar na capital do estado.
Ionete da Silveira Gama (o nome artístico é dona Onete) nasceu em 18 de junho de 1939, na cidade de Cachoeira do Arari, Ilha de Marajó, se mudou para Belém ainda criança, e casada morou e garantiu sua trajetória como educadora em Igarapé-Miri (tida como a capital do açaí), localizado no Baixo Tocantins, Pará, local em que também foi secretária de Cultura.
Conhecida na educação como a professora Ionete, iniciou dando alfabetização aos 16 anos, na década de 50, e após conquistar mais formações, como o magistério e o técnico em comércio, para desagrado do marido que não gostava que ela se dedicasse aos estudos, passou a lecionar história e geografia para o hoje chamado ensino fundamental 2. “’Mais um curso de ‘burridade’,’ reclamava, não sabendo ele que estava me munindo, me alimentando para ser uma melhor professora.”
Nos tempos de escola do interior, Ionete já buscava trazer os alunos para perto de si e os incentivava a serem investigadores do conhecimento, ou seja, suas aulas não eram apenas expositivas, tendo unicamente a professora no centro e os alunos quietos ouvindo.
“Quando dava aula sobre os indígenas falava para as crianças sentarem e sentirem o chão. Eu arredava as cadeiras. As professoras viam e questionavam a diretora: ‘o que a Nete tá fazendo com aqueles alunos todos no chão?’ A diretora apoiava o que eu fazia em sala, mesmo sendo período da ditadura e ela do lado de lá.”
Os livros de Paulo Freire reforçaram nela a importância de trabalhar no aluno a realidade local e implantar aulas com atividades recreativas. Para Ionete, não tem aula mais difícil de lecionar que as de segunda-feira. Os alunos costumam chegar agitados e falantes, querendo compartilhar os acontecimentos do fim de semana. Diante dessa escuta ativa da professora com seus alunos, criou um jornal feito por eles. Levava revistas como O Cruzeiro para servir de referência. “A aluna com a letra mais bonita escrevia o jornal, era a redatora e fazia à mão. Isso trazia sentimento de que ela era importante.” Outro menino era o repórter e relatava o acontecimento do bairro. “Montei uma espécie de microfone. Eles ficavam maravilhados.”
Com ou sem jornal, afirma que sempre conversou de igual para igual com seus alunos no início da aula para só depois, quando se aquietavam, dar início à aula.
A trajetória da professora ensina a importância de o professor buscar se aproximar de sua turma e compreender o que a estimula, inclusive conversar sobre futebol ou cantar. Professor distante, que quer apenas passar o conteúdo sem se importar em como atrair o aluno, possivelmente pouco resultado verá.
Em suas aulas de história trabalhou na prática o conhecimento do território. Para isso, lançou um passeio de Igarapé-Miri até Belém – atividade nada comum na época – para as crianças aprenderem as histórias da região ao conhecerem os locais marcantes, como a fundação da capital. Ionete unia os saberes culturais locais, com as histórias em suas aulas. Novamente inspirada em Paulo Freire, em uma dessas atividades em Belém, deu aula para os alunos da 8ª série embaixo de uma mangueira. “Sempre busquei recriar para o aluno interagir e trazer elementos à sala de aula. Professor precisa incentivar isso”, defende.
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Em Igarapé-Miri foi uma das fundadoras do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras em Educação Pública do Pará (Sintepp). Ela e colegas chegaram a ficar três meses sem salário – uma das causas da criação do sindicato. “Naquela época [final dos anos 80], a luta era pelo aumento do salário, pelo básico: as escolas estavam deterioradas, como agora estão, porque Belém é uma cidade chuvosa, você faz uma escola bonita e daqui a uns quatro a cinco anos ela já está ruim porque a chuva é muito forte, o sol vem e fica estalando aquelas telhas.”
“Contava esses dias para a minha neta que em uma greve perto do Ver-o-Peso [mercado municipal de Belém] jogaram água de peixe com tomate e cheiro verde na gente. Na minha calça jeans branca e na minha blusa branca toda bordada caíam as tripas de peixe. Estávamos cantando: ‘você aí parado também é explorado’, mas éramos tachados como vagabundos que faziam greve para poder ficar em casa. Tive que comprar outra roupa.”
Ao ser questionada sobre quem jogou a água de peixe, diz gargalhando: “esse pessoal que hoje me adora, do Ver-o-Peso pitiú”. (Leia o trecho da música no box abaixo).
A professora Ionete também lecionou para adultos e tomou uma atitude que ela entende como de rebeldia. Para ela, as aulas eram muito fracas, não preparavam a passagem para o próximo ano de pessoas que estavam buscando uma melhor qualificação. “Trouxe a matéria do ginásio para eles e conversei com outras professoras para fazerem o mesmo. Chegaram a me denunciar, não aceitaram.” Sua rebeldia rendeu frutos: alguns alunos passaram no concurso da Receita Federal.
“Engraçado. Algumas coisas o meu marido brigava, mas ele era folclorista, fazia boi bumbá, carnaval, [festejo de] Estrela Dalva e eu costurava.” E por falar em música, lista que, além do carimbó, no Pará tem guitarrada, boi bumbá, brega, tecnobrega, sirimbó, siriá, tambor de crioula, marujada e muito mais.
Ela se recorda que, tempos atrás, nas escolas de Belém, não se dançava o carimbó. Havia sanfoneiro, mas sempre de fora. Hoje o carimbó está em todo canto, inclusive fora do Brasil.
Sua força é tamanha que até nas festas das crianças está tendo influência, fruto também da luta de diferentes grupos culturais da região.
“A princesa dos aniversários das crianças era a Branca de Neve [não era a cultura local]. Hoje em dia é o pitiú, o urubu e a garça [ver box]. Falam que não sabem o que eu fiz, porque agora as crianças querem roupinha de carimbó. Até o bolo já vem em formato de navio, barco, e a garça namoradeira e o urubu namorador estão lá.”
Dona Onete está sendo homenageada pelo Itaú Cultural, na Av. Paulista, 149, SP, por meio de uma ocupação gratuita exposta até 18 de junho. Destaque para a sua biografia e representação da cultura paraense.
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(No meio do pitiú)
“A garça namoradeira
Namora o malandro urubu
Eles passam a tarde inteira
Causando o maior rebu
Na doca do Ver-o-Peso
No meio do Pitiú”
(Boto namorador)
“Nas águas do Anapu
Nas águas do Pindobal
Tem um boto dentro da rede
Fazendo fuá, fuá
Tem boto cercando a gente
Fazendo fuá fuá
Mas é boto namorador
Das águas do Maiuatá”
(Tipiti)
“Arranca a mandioca
Coloca no aturá
Prepara a sororoca
Tem mandioca pra ralar
Oh, prepara a peneira
Joga na masseira
Pega no tipiti
Pra tirar o tucupi”
“Carimbó é vida, é poesia, é meio ambiente na vida de quem compõe, canta e dança essa expressão máxima da cultura paraense. E o carimbó chamegado tem uma batida mais lenta e sensual. É o carimbó que só a dona Onete sabe cantar. As letras dela são longas e trabalhadas – pesquisadas a fundo -, e ela entra com o seu jeitinho manhoso que dá toda a graça e sensualidade que só ela tem ao cantar o nosso carimbó”, conta a belenense Neire Prestes, que atuou no comitê de salvaguarda do carimbó como patrimônio cultural e imaterial brasileiro, é produtora cultural, colaboradora do grupo de carimbó Sancari e coordenadora da Campanha do Carimbó desde 2005.
“Dona Onete disseminou o termo carimbó chamegado. Ela diz que se dança mais devagar, tem mais sedução para dançar com o parceiro. Tem guitarra, baixo, bateria, e não só o curimbó, maracá e banjo, que são os instrumentos tradicionais”, acrescenta Priscila Tapajowara, indígena nascida no Baixo Tapajós, PA, e produtora audiovisual.
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