NOTÍCIA
Uma ameaça de massacre pichada na parede do banheiro dos meninos, com a indicação da data planejada para o crime, foi relatada ao professor Carlos (nome real preservado), da rede privada do Rio de Janeiro, no início deste ano letivo. O episódio remontou a outro, […]
Publicado em 18/05/2023
Uma ameaça de massacre pichada na parede do banheiro dos meninos, com a indicação da data planejada para o crime, foi relatada ao professor Carlos (nome real preservado), da rede privada do Rio de Janeiro, no início deste ano letivo. O episódio remontou a outro, ocorrido há cerca de três anos e que ficou na memória do docente. Um aluno liberado para sair da sala durante a aula retornou de supetão, abrindo a porta com um solavanco vestindo uma balaclava — um tipo de touca que deixa apenas os olhos à mostra. Era apenas uma ‘brincadeira’, mas assustou os alunos e o professor, que temeu estar prestes a ser vítima de um ataque como os que têm sido noticiados recentemente. “Na hora, eu realmente achei que algo muito ruim iria acontecer. Foi um momento rápido, mas que me marcou muito, foi apavorante”, revela Carlos.
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O temor do professor, infelizmente, se efetivou 25 vezes em escolas brasileiras desde 2002, de acordo com a nota técnica Extremismo violento em ambiente escolar, de Michele Prado do ‘Monitor do debate político no meio digital’, projeto de pesquisa realizado pelo Grupo de Políticas Públicas para o Acesso à Informação da USP. O aumento da tensão é justificado: 14 dos ataques ocorreram nos últimos 24 meses. Este ano já soma cinco vítimas fatais: a professora Elisabete Tenreiro, de 71 anos, na Escola Estadual Thomázia Montoro, na Vila Sônia, zona oeste da capital paulista, e os alunos da creche Cantinho Bom Pastor, em Blumenau, SC, Bernardo Cunha Machado, de cinco anos, Bernardo Pabst da Cunha, de quatro anos, Larissa Maia Toldo, de sete anos e Enzo Marchesin Barbosa, de quatro anos.
Por este tipo de crime carecer de uma sistematização maior, o número de ameaças e suspeitas de ataques no país é impreciso. A partir das últimas semanas, forças de segurança de todas as instâncias têm empreendido esforços em mapear e agir preventivamente para evitar novas ocorrências. No estado da Bahia, segundo em número de ataques, atrás apenas de São Paulo, nove adolescentes suspeitos de envolvimento e propagação de ameaças de ataques contra escolas foram apreendidos em apenas dois dias, em abril. Na escola do professor Carlos, no Rio de Janeiro, o caso da ameaça pichada na parede do banheiro está em investigação.
As autoridades educacionais também estão mobilizadas para mitigar os danos já causados por essa realidade. As Secretaria de Educação de Blumenau e dos estados de São Paulo e Espírito Santo, locais onde ocorreram os últimos ataques com vítimas fatais, passaram à revista Educação posicionamentos sobre o que tem sido feito. “Contratação de psicólogos e segurança particular, botão de acionamento prioritário e reforço no policiamento e na Ronda Escolar estão entre as medidas” previstas pelo governo de São Paulo. Há também um projeto de lei a tramitar “que vai colocar de forma permanente um policial em cada escola”.
“A intensificação da atuação da Patrulha Escolar e a abordagem quanto à temática da violência nas unidades de ensino, por meio dos Temas Integradores do Currículo do ES, com o desenvolvimento de ações pedagógicas multidisciplinares, visando a conscientização sobre a cultura da paz” são as ações planejadas pelo governo do Espírito Santo. Em novembro de 2022, um ataque a duas escolas na cidade de Aracruz deixou quatro mortos e 12 feridos.
“Contratação de vigilância armada, implantação de câmeras de segurança em todas as unidades de ensino municipais, revisão de muros e cercas, controle de acesso de pessoas nas escolas, plano de contingência da Secretaria de Defesa Civil e Secretaria de Educação, ampliação de equipes multiprofissionais, com psicólogos e assistentes sociais” são iniciativas da prefeitura de Blumenau.
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Reflexo de um conjunto complexo de fatores, a escalada deste tipo de violência no Brasil não terá uma solução simples. Olhar para o país com mais registros de ataques contra escolas, os Estados Unidos, pode ser um caminho na busca por direcionamentos. “Dados levantados pelo Washington Post de 1999 até maio de 2022 indicam 185 mortos e 369 feridos em ataques violentos a escolas; 331 escolas atacadas e 2021 como o ano com o maior número de eventos, com 34 incidentes nos EUA”, informa o relatório O extremismo de direita entre adolescentes e jovens no Brasil: ataques às escolas e alternativas para a ação governamental. O documento, elaborado por 11 pesquisadoras e ativistas dedicadas à educação pública e à prevenção do extremismo, sob a coordenação de Daniel Cara, dirigente da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, foi produzido no contexto da transição governamental da presidência do Brasil.
Dos 25 casos registrados no Brasil, as armas de fogo estiveram presentes em 12 dos ataques. Em comum com os EUA, nos últimos anos, a legislação mais flexível para aquisição de armas aumentou em sete vezes o número de civis armados por aqui. A quantidade de CACs (grupo formado por caçadores, atiradores e colecionadores) subiu de 117.467, em 2018, para 813.188, em 2022, conforme dados obtidos pelo G1 via Lei de Acesso à Informação junto ao Exército Brasileiro. Para além do risco que a efetiva maior circulação de armas impõe a toda sociedade, a realidade ainda fomenta uma cultura armamentista que, sob o rótulo de ‘autodefesa’, estimula uma resolução individual de conflitos, à margem da lei.
Outra questão que a ampla experiência estadunidense com casos de violência contra escolas aponta é que a presença de policiais em escolas não aumenta a segurança e nem previne ataques desta natureza. Colégios com policiais baseados registraram tiroteios com alguns dos maiores números de vítimas, como os casos de Parkland e Santa Fe, ambos em 2018, com 17 e 10 mortos, respectivamente. Os dados são do relatório do Instituto Nacional de Justiça, a agência de pesquisa do Departamento de Justiça dos EUA.
Ir a fundo no entendimento da origem desta violência também pode elucidar parte das dúvidas do porquê da frequência dos ataques escalou. “A internet talvez tenha facilitado uma coisa que sempre existiu na sociedade. O cultivo do ódio não é, infelizmente, uma matéria nova nas nossas vidas por causa da internet”, relembra a psicóloga Ana Maria Zampieri, psicóloga e coordenadora do Programa de Ajuda Humanitária Psicológica (PAHP), em entrevista ao podcast desta revista Educação, o Brasil Educação. O que parece ser ‘novo’, então, são os locais para onde a violência tem sido direcionada: as escolas, e os agentes de efetivação dessa violência, jovens que guardam, em geral, alguma relação com o espaço que decidem atacar.
De 22 casos avaliados na nota técnica Extremismo violento em ambiente escolar, citada anteriormente, 14 desses criminosos tiveram sinais de radicalização online comprovados na investigação dos crimes. Isso significa que antes de chegar o dia em que decidiram efetivar um ataque violento a uma escola, a maioria dos autores dos crimes se abasteceu de discursos de ódio voltados a grupos específicos — mulheres, negros, pessoas LGBTQIA+, professoras, etc. — em chats de jogos, fóruns da deep web (zona da internet que não pode ser detectada facilmente pelos tradicionais motores de busca, garantindo maior privacidade e anonimato para os seus navegantes) e também em publicações de redes sociais.
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Este último espaço, por estar acessível a todo usuário sem requerer nenhum conhecimento específico, tem sido alvo de pressão por parte do governo brasileiro para elevar os níveis de moderação de conteúdo dada a gravidade da situação. Uma das medidas emergenciais tomadas para coibir a circulação de postagens potencialmente nocivas foi a criação do Canal de Denúncias Escola Segura pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, em parceria com a ONG SaferNet Brasil, para recebimento de informações de ameaças e ataques contra as escolas.
“A criação de canal específico para gestão desta crise foi importante porque a plataforma é operada diretamente por agentes designados pelo Ministério da Justiça destacados para avaliar os conteúdos”, explica Guilherme Alves, gerente de projetos na SaferNet Brasil e mestre em tecnologia e sociedade.
Segundo ele, que trabalha no braço de educação da ONG, com formação de professores e jovens em cidadania digital, há muito a ser feito quanto ao uso mais consciente das tecnologias. “Existe uma diferença muito grande entre ‘saber mexer’ e ter capacidade reflexiva. A gente ouve muito os pais dizendo que os filhos sabem muito mais do que eles sobre internet e que não sabem como intervir. Mas ao contrário do que ainda se diz, não existe um mundo virtual em oposição a um mundo real, e sim apenas um mundo”, comenta Guilherme, defendendo que uma educação crítica é fundamental para que os usuários façam melhores escolhas no ambiente online.
Com o objetivo de apoiar escolas neste caminho, a SaferNet lançou este ano a disciplina Cidadania Digital, voltada ao ensino médio e que pode ser ministrada por professores de qualquer matéria. Gestores interessados em viabilizar a disciplina em seus colégios podem entrar em contato pelo site www.safernet.org.br.
Em meio à tensão provocada pelos boatos com ameaças de novos ataques, a professora de sociologia da rede privada do Rio de Janeiro e mestre em educação Nathálya Souza ressalta a ansiedade que toma conta dos ambientes escolares somada a uma necessidade aumentada de atenção aos alunos. “Ainda não temos protocolo, diretriz de como agir caso um ataque ocorra no nosso trabalho. Então, ficamos nos perguntando como acalmar os alunos se também estamos todos preocupados?”, questiona a professora.
“Precisamos cuidar mais dos professores e educadores, atendê-los de múltiplas formas, inclusive com reconhecimento salarial e revisão de carga-horária. Como reflexo da nossa sociedade, os professores convivem muitas vezes com agressões psicológicas e até físicas. Será que não está faltando à escola falar sobre valores e o sentido da vida? O sentido de estar neste país, nesta cidade, estudando”, sugere a psicóloga Ana Maria Zampieri.
Não há mais espaço para pensar a escola, e nem a casa, como um corpo à parte da sociedade. A professora Nathálya defende que acolhimento e diversidade sejam valores tanto dentro da escola quanto do núcleo familiar para que se possa caminhar para uma sociedade livre de discursos de ódio. “É preciso construir momentos de identificação com o espaço escolar. Escola não é só lugar para educação formal, é lugar de afeto. A saúde mental de quem está lá dentro, alunos, professores e trabalhadores no geral, precisa ser prioridade”, argumenta Nathálya.