NOTÍCIA
Em meio ao burburinho político da transição de governo e turbinado pela invasão golpista de Brasília, em janeiro, um aniversário importante para a educação brasileira passou quase despercebido: em 22 de dezembro de 2017, o Conselho Nacional de Educação (CNE) promulgava a resolução que instituía […]
Publicado em 23/05/2023
Em meio ao burburinho político da transição de governo e turbinado pela invasão golpista de Brasília, em janeiro, um aniversário importante para a educação brasileira passou quase despercebido: em 22 de dezembro de 2017, o Conselho Nacional de Educação (CNE) promulgava a resolução que instituía a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) da Educação Infantil e do Ensino Fundamental e orientava a sua implementação, em todas as escolas brasileiras. Desde então, uma das mais ambiciosas políticas públicas da educação começou uma corrida de obstáculos, que passou por um Ministério da Educação (MEC) ausente, ministros pouco interessados no tema e uma pandemia avassaladora, que provocou a suspensão das aulas. É com esse passado complicado que a primeira parte da BNCC completa cinco anos, por isso mesmo com muitos desafios.
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Para olhar o copo meio cheio, é preciso reconhecer que a BNCC sobreviveu, em meio a um cenário tão pouco favorável à implantação de políticas públicas desse porte. Durante esse período, os educadores de praticamente 100% das redes públicas e privadas se debruçaram sobre o novo documento para estudá-lo, entendê-lo e iniciar seu processo de implantação – que traz, entre outras mudanças estruturais, o foco no desenvolvimento de competências e habilidades.
Publicado no segundo semestre do ano passado e ouvindo 2 mil escolas, o último Relatório de avaliação e monitoramento da BNCC, executado pelo Caed/Universidade de Juiz de Fora, mostrou que sete em cada 10 professores e técnicos das secretarias de Educação têm uma percepção positiva dos efeitos da Base sobre o currículo, e que o processo vem avançando. É o caso da Escola Estadual Alceu Amoroso Lima Espaço de Vida, que oferta ensino fundamental, em Natal, RN.
“A implantação sofreu uma grande lentidão em função da pandemia. Nossa escola começou a trabalhar em 2019, com formações e planejamento, mas o processo precisou esperar a aprovação e publicação do Documento Curricular do Rio Grande do Norte. Depois, recriamos o documento pedagógico da nossa própria escola. Hoje estamos a 70% da implementação”, conta o coordenador-geral Andrey Oliveira.
Para olhar o copo meio vazio, é preciso lembrar que a BNCC está longe de ser implantada. É preciso avançar na compreensão do processo para que se verifique as transformações reais trazidas pela Base. “Como sempre na educação brasileira, é preciso estudar o que acontece de fato em sala de aula, como isso impacta o que o aluno está fazendo. Senão, o risco é que tudo fique no plano do discurso”, alerta a pesquisadora Filomena Siqueira, doutora em administração pública e gerente pedagógica no Instituto Reúna. Assim como ela, os estudiosos da área vêm alertando que sua implementação não ocorre da maneira esperada e que mais pesquisas são necessárias. “Nós não temos muitas evidências, em geral, de que há um contexto favorável para isso acontecer na educação brasileira”, diz a pesquisadora.
Até porque não é um processo automático: entre o texto legal que sai dos gabinetes de Brasília e o chão da escola há um longo caminho, que requer prioridade, recursos, formação de professores, recursos didáticos, avaliação e tempo para que as escolas se apropriem, de fato, das novas normativas. Para começar, vale a pena retomar o próprio conceito da BNCC e sua confusão mais comum: a Base não é o currículo, ainda que muitas redes tenham feito, na prática, um copy-paste dos textos oficiais. Trata-se de um documento de referência sobre as aprendizagens essenciais que compõem os direitos de crianças e adolescentes de todo o país. Ou seja, é o documento a partir do qual escolas e redes devem construir sua proposta pedagógica — e fazer com que aconteça de verdade, mudando práticas educativas arraigadas, como a avaliação.
Como um de seus pilares, o documento traz, por exemplo, a centralidade para o tema do desenvolvimento de competências – ou seja, o conhecimento mobilizado, em ação, em que saber é, também, saber fazer. Assim, pela primeira vez na educação brasileira, foi estabelecido um conjunto de 10 competências gerais que devem orientar o currículo (veja no final).
“Não é uma mudança trivial”, diz Filomena. Afinal, mudar a lógica de aulas sobre conteúdos para o foco na formação de crianças e jovens capazes de pensar criticamente, comunicar-se, argumentar, planejar, agir em função do que aprendeu, não é mesmo algo simples. Até porque não significa abandonar os chamados conteúdos disciplinares. Discutir o balanço curricular adequado entre conteúdos e competências é uma preocupação que acontece em muitos países que fizeram reformas curriculares recentes.
“A lógica mais natural para as escolas é partir dos conteúdos, e o exercício tem sido fazer essa inversão, identificar os conteúdos relacionados às competências que se quer desenvolver”, concorda a diretora Esther Carvalho, do Colégio Rio Branco, em São Paulo. “Quando se muda a metodologia, a rotina da sala de aula, e se desenvolve uma estrutura que permite ir além do que se estava habituado, sim, conseguimos trazer as competências para o dia, mas não é nada fácil, estamos no início do processo”, diz a educadora.
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Mas, quais seriam as competências mais desafiadoras para os educadores? A revista Educação fez uma enquete virtual com educadores e confirmou a percepção dos especialistas da área e de outros levantamentos.
Em geral, os professores ouvidos por esta publicação acreditam na direção apontada na BNCC: quase 70% dizem que foi um avanço para o ensino brasileiro. Mas apenas metade se sente segura sobre os conhecimentos das 10 competências e um quarto ainda se ressente de poucas oportunidades de formação. O maior desafio se encontra no campo da competência número 5 – a competência digital.
Ouvindo gestores e professores, o estudo Consensos e dissensos sobre alinhamento à BNCC, publicado pelo Instituto Reúna, ainda durante a pandemia, mostrou que, de forma geral, incorporar as competências no cotidiano é uma pedra no sapato dos docentes. Entre as competências, aquela julgada como maior dificuldade para os docentes é a que diz respeito à cultura digital, seguida pelo desenvolvimento do pensamento científico, crítico e criativo, e argumentação.
No caso da educação infantil, é preciso fazer uma distinção importante, lembra a pesquisadora Bruna Ribeiro, da Universidade São Paulo e uma das consultoras do MEC, no tempo da construção da proposta. Nessa etapa, a ideia de competências é representada pelos direitos de aprendizagem; em vez das áreas de conhecimento, surgem os campos de experiência. “É uma forma diferente de se pensar o arranjo curricular, com outro paradigma. Nesse sentido, a implementação da Base passa pela desconstrução do modo de se pensar e fazer educação, que ainda é muito centrado na organização curricular por área do conhecimento”, explica Bruna.
“A BNCC propõe um arranjo centrado nas experiências de aprendizagem das crianças. É uma distinção importante para não cair em uma armadilha comum de encaixar os campos de experiência na mesma lógica fragmentada das áreas. Vi alguns municípios e escolas tratando os campos de experiência como se fossem uma lista de disciplinas, como se fosse um check list”, conta.
Nesse contexto, é óbvio que o investimento contínuo em formação de professores é um passo imprescindível, mas também aqui há questionamentos. Não apenas a oferta de formação precisa ser aprofundada, mas os educadores pedem foco nas 10 competências gerais e buscar o que se chama homologia dos processos — ou seja, sair do velho “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”, passando do discurso sobre a teoria para o exercício da prática, em um modelo que posteriormente possa transformar de fato as práticas dos professores.
É o que tem procurado fazer a diretora Maria Cecília Ani Cury, da Escola Criança & Cia, do Rio de Janeiro, trazendo para a formação dos professores os mesmos princípios definidos na BNCC da Educação Infantil. “A BNCC inovou em muitos aspectos, fez diferença e oxigenou procedimentos já existentes. Os professores tiveram que modificar métodos enraizados”, lembra Cecília. “O tempo todo é preciso investir na formação docente, especialmente em momentos de mudanças que exigem uma nova postura. Professores são movidos a sonhos. São fortalecidos na relação com o aluno e sentem-se recompensados com a sua evolução”, finaliza.
Mas, é um esforço que não se esgota e não tem prazo para acabar. Para Mara Custódio, diretora da Escola Passo Seguro, em São Paulo, o desafio agora é tornar o foco nas competências uma ação cotidiana. “É difícil conseguir essa centralidade diária porque a tendência de retomar velhos hábitos a toda hora assola a instituição escolar. É preciso muita persistência no dia a dia”, finaliza.
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1. Conhecimento
Valorizar e utilizar os conhecimentos historicamente construídos sobre o mundo físico, social, cultural e digital para entender e explicar a realidade, continuar aprendendo e colaborar para a construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva;
2. Pensamento científico, crítico e criativo
Exercitar a curiosidade intelectual e recorrer à abordagem própria das ciências, incluindo a investigação, a reflexão, a análise crítica, a imaginação e a criatividade, para investigar causas, elaborar e testar hipóteses, formular e resolver problemas e criar soluções (inclusive tecnológicas) com base nos conhecimentos das diferentes áreas;
3. Repertório cultural
Valorizar e fruir as diversas manifestações artísticas e culturais, das locais às mundiais, e também participar de práticas diversificadas da produção artístico-cultural;
4. Comunicação
Utilizar diferentes linguagens – verbal (oral ou visual-motora, como Libras, e escrita), corporal, visual, sonora e digital –, bem como conhecimentos das linguagens artística, matemática e cientifica, para se expressar e partilhar informações, experiências, ideias e sentimentos em diferentes contextos e produzir sentidos que levem ao entendimento mútuo;
5. Cultura Digital
Compreender, utilizar e criar tecnologias digitais de informação e comunicação de forma crítica, significativa, reflexiva e ética nas diversas práticas sociais (incluindo as escolares) para se comunicar, acessar e disseminar informações, produzir conhecimentos, resolver problemas e exercer protagonismo e autoria na vida pessoal e coletiva;
6. Trabalho e Projeto de Vida
Valorizar a diversidade de saberes e vivências culturais e apropriar-se de conhecimentos e experiências que lhe possibilitem entender as relações próprias do mundo do trabalho e fazer escolhas alinhadas ao exercício da cidadania e ao seu projeto de vida, com liberdade, autonomia, consciência crítica e responsabilidade;
7. Argumentação
Argumentar com base em fatos, dados e informações confiáveis, para formular, negociar e defender ideias, pontos de vista e decisões comuns que respeitem e promovam os direitos humanos, a consciência socioambiental e o consumo responsável em âmbito local, regional e global, com posicionamento ético em relação ao cuidado de si mesmo, dos outros e do planeta;
8. Autoconhecimento e autocuidado
Conhecer-se, apreciar-se e cuidar de sua saúde física e emocional, compreendendo-se na diversidade humana e reconhecendo suas emoções e as dos outros, com autocritica e capacidade para lidar com elas;
9. Empatia e cooperação
Exercitar a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos e a cooperação, fazendo-se respeitar e promovendo o respeito ao outro e aos direitos humanos, com acolhimento e valorização da diversidade de indivíduos e de grupos sociais, seus saberes, identidades, culturas e potencialidades, sem preconceitos de qualquer natureza;
10. Responsabilidade e cidadania
Agir pessoal e coletivamente com autonomia, responsabilidade, flexibilidade, resiliência e determinação, tomando decisões com base em princípios éticos, democráticos, inclusivos, sustentáveis e solidários.