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A lei 10.639 de janeiro de 2003 estabelece a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira dentro das grades curriculares dos ensinos fundamental e médio de escolas públicas e privadas do Brasil. Segundo dados oficiais do IBGE, a população afrodescendente no Brasil ultrapassa 51% […]
Publicado em 09/06/2023
A lei 10.639 de janeiro de 2003 estabelece a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira dentro das grades curriculares dos ensinos fundamental e médio de escolas públicas e privadas do Brasil. Segundo dados oficiais do IBGE, a população afrodescendente no Brasil ultrapassa 51% — maioria populacional que não encontra representatividade política e cultural nas áreas importantes do país. “Há quase uma ausência de discussões nas escolas sobre as temáticas literárias ligadas à população negra, o que é contraditório, pois nosso maior escritor em língua nacional, Machado de Assis, é um escritor afrodescendente, dado desconsiderado na análise da sua obra”, explica Edimilson de Almeida Pereira, poeta, ensaísta e autor de diversas obras premiadas de literatura infantojuvenil.
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Embora existam escolas com projetos antirracistas consistentes ainda há resistência das equipes gestoras de escolas municipais, estaduais e particulares, em trabalhar a literatura de autoria negra em sala de aula. Madu Costa, escritora de literatura infantil e de cordel, pedagoga e arte-educadora, conta que em 2002, numa escola particular católica, a coordenadora que também era negra, convidou-a para um bate-papo com os alunos que estavam trabalhando seus livros, que a própria coordenadora havia comprado para desenvolver um projeto antirracista. O bate-papo não aconteceu, pois a direção da escola boicotou a presença da escritora com alegações injustificáveis.
“É importante que todas as escolas trabalhem com a formação dos profissionais docentes, pedagogos, auxiliares, faxineiros, cantineiros, porque toda a escola é educadora. Que ninguém fique de fora desse processo, para que a educação antirracista possa funcionar”, orienta Madu.
Atribuir um sentido pedagógico e ensinar a literatura negra nas escolas é determinante contra o racismo, por meio da inclusão de novos conteúdos, do estímulo da escrita de autorias negras que mostrem diferentes pontos de vista, do incentivo à formação de bibliotecas onde essas obras sejam incluídas e estudadas por professores e alunos a fim de enxergar uma nação multicultural e não mais eurocêntrica.
Rosana Macarroni, professora de português, redação e literatura, há 28 anos no colégio Carlos Drummond de Andrade, da rede particular de São Paulo, lembra de um jovem negro, seu aluno nos anos do ensino médio, e que desde o 1º ano não se relacionava bem com os colegas da classe. O aluno não conseguia se enturmar, o que o prejudicava na execução dos trabalhos, apresentações e saídas pedagógicas que eram feitas em grupo. A professora afirma que não há dúvida de que o fato de o garoto ser negro era o motivo de ser deixado de lado, além da situação econômica de sua família. Aluno bolsista, sua mãe não podia pagar uma escola particular, e o fato de ser pobre não permitia que ele participasse dos passeios com os alunos nos finais de semana, tampouco visitá-los ou convidá-los para conhecer a sua casa.
Rosana acrescenta que no início deste ano foi surpreendida pela visita do ex-aluno negro, e lembrou dos vários pedidos da mãe, nas reuniões da escola, para que seu filho tivesse as mesmas oportunidades dos alunos brancos e para que o ajudassem nas relações em sala de aula. O aluno persistiu e contou feliz e orgulhoso, em sua visita, que está cursando a faculdade na área de tecnologia na Unidrummond, que faz parte do mesmo grupo educacional da escola onde fez o ensino médio. “Trabalhamos o racismo em sala de aula e vencemos o preconceito; de alguma forma ele se afeiçoou ao grupo Drummond e seguiu sua vida acadêmica”, emociona-se.
A criança negra permanece fora do protagonismo literário, ocupando papéis subalternos ou marginais. “A escola tem o dever de mostrar aos alunos a presença da criança negra, indígena e asiática, como protagonista das suas histórias, pois não é um privilégio da branquitude”, declara Madu, autora de livros premiados que circulam por Portugal, Áustria, Alemanha, Itália, Estados Unidos, Moçambique, Angola, entre outros países. A escritora negra defende que são os negros que devem escrever e ilustrar suas obras, pois conhecem a história de sua ancestralidade. “O ilustrador negro tem a sensibilidade para ilustrar as crianças negras sem estereotipia, sem exageros, respeitando os traços de beleza étnicos do nosso povo; não se trata de preciosismo e sim de um entendimento legítimo, pois quem vai contar a minha história sou eu”, afirma.
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A educação antirracista pressupõe cuidados, como a remodelação do vocabulário que contém palavras e expressões racistas: denegrir, ‘a coisa tá preta’, ‘fome negra’, mulata, entre outras. Mudar a expressão escravo, para escravizado, ensinar sobre as questões estéticas: o cabelo crespo, nariz redondo com as narinas abertas, boca carnuda, a melatonina na pele, que são adaptações do ser humano às condições do ambiente africano. “São fagulhas do que deve ser feito, é preciso criar uma fogueira de informações para uma educação antirracista que pressupõe todos esses cuidados”, pontua Madu.
Habituada a levar seus alunos de 14 a 17 anos, para assistir à peça teatral O cortiço, baseada no romance do escritor brasileiro Aluísio Azevedo, que denuncia a exploração e as péssimas condições de vida dos moradores dos cortiços cariocas, Rosana diz que vê com frequência alunas chorando durante a peça, pois emocionam-se com o que veem. “Elas não sentem a dor na pele, pois estão ali, sentadas no teatro e são de uma classe social privilegiada, mas é quando se colocam no lugar do outro, possibilidade que a obra literária nos dá“, explica a professora.
Na literatura brasileira há uma tradição de autores não negros que escreveram sobre negros reforçando estereótipos de exclusão, como as personagens negras do romantismo, retratadas em condição de subordinação. Em contrapartida, a reação de indivíduos negros contra esse discurso discriminatório mapeia até os dias de hoje as nossas relações sociais.
Atualmente há um repertório expressivo de escritores e ilustradores não negros que ilustram temáticas negras com obras premiadas. Mauricio Negro, autor-ilustrador, designer gráfico, gestor cultural com diversos livros publicados sobre os povos originários e afrodescendentes, vê a necessidade de remar junto e não acha que há conflito em valorizar tanto os projetos de autoria negra quanto aqueles que são de temática negra, mas produzidos por autores não negros.
“Não podemos criar barreiras, isso não ajuda em nada; mas ainda assim, sou muito cuidadoso na produção dos livros e projetos para que haja o protagonismo das pessoas que têm o seu lugar de fala”, esclarece Mauricio, que é um ilustrador não negro de livros de temática negra.
Há uma grande abertura e um interesse crescente das editoras em contemplar a literatura afro no Brasil, explica o ilustrador. “Eu gostaria que as editoras tivessem ainda mais apuro não só na produção dos projetos, mas na interlocução com as instituições privadas e públicas, para que esses projetos ganhem asas.”
É possível falar de literatura brasileira num país multicultural que se diversifica na articulação dos discursos. Nas escolas, debates e discussões das equipes gestoras devem acontecer com regularidade para levar esses discursos numa linguagem acessível aos jovens estudantes. “Educar hoje é mais do que nunca lidar com situações que não tenham uma conclusão, um fechamento absoluto. Essa é a ideia de um país aberto, que se constitui no conflito, nas arestas, mas que não impede a articulação de diálogos e a criação de consensos mínimos”, conclui Edimilson.