NOTÍCIA
Kremaiti Kaiapó nasceu em uma das aldeias afetadas pela hidrelétrica de Belo Monte, no Pará. Aos quatro anos teve que mudar de aldeia. Hoje, com filhos e casado com a segunda cacica da aldeia Baú, em Altamira, mesmo com invasões de garimpeiros, pescadores e madeireiros, […]
Publicado em 22/08/2023
Kremaiti Kaiapó nasceu em uma das aldeias afetadas pela hidrelétrica de Belo Monte, no Pará. Aos quatro anos teve que mudar de aldeia. Hoje, com filhos e casado com a segunda cacica da aldeia Baú, em Altamira, mesmo com invasões de garimpeiros, pescadores e madeireiros, se dedica à proteção do território de seu povo e na preservação da sabedoria ancestral. O povo Kayapó se autodenomina Mẽbêngôkre (aqueles que vieram do buraco/lugar d’água), e também vive na floresta amazônica do norte do Mato Grosso. A sede de aprender é maior que os obstáculos que chegam a Kremaiti, tanto que percorreu mais de 24 horas até chegar à aldeia Piaraçu, localizada na Terra Indígena Capoto/Jarina, às margens do rio Xingu, em Peixoto de Azevedo, MT, e que cedeu espaço para a realização de uma oficina de elaboração de material paradidático na língua tradicional Mẽbêngôkre.
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Kremaiti foi um dos 30 participantes indígenas. “Fiquei muito contente com essa atividade. Para nós é importante porque se não fizermos [o livro], nossos filhos, netos, e crianças que ainda vão nascer não vão mais falar a língua Kayapó, vão esquecer a dança tradicional, a pintura corporal”, diz.
Professores de quatro terras indígenas: Baú, Kayapó (localizadas no Pará), Mẽkrãgnotire (uma parte no Pará e outra MT) e Capoto/Jarina (MT) passaram cerca de 10 dias na oficina realizada pelo Tradição e Futuro na Amazônia, projeto patrocinado pelo Programa Petrobras Socioambiental, gerido pelo Funbio (Fundo Brasileiro para a Biodiversidade) e tendo como parceiros o Instituto Raoni, Instituto Kabu e a Associação Floresta Protegida. O material será distribuído para as escolas indígenas atendidas pelo projeto.
“A produção dessa cartilha na língua Kayapó materializa o objetivo do projeto de reunir tradição e futuro e deixar um legado para as próximas gerações para além dos saberes passados oralmente”, pontua Dante Novaes, gerente do projeto Tradição e Futuro na Amazônia, no Funbio.
Um livro educativo elaborado por indígenas e escrito na língua tradicional não é exclusivo para o professor e o estudante. É valorizado por toda a aldeia, das crianças aos anciões, pois fortalece a preservação da cultura e identidade indígena. A exaltação de um material como esse pela comunidade também ocorre por um descaso dos órgãos públicos de todas as regiões do país: as 304 etnias brasileiras não possuem políticas públicas ativas que financiem e organizem a construção de materiais didáticos feitos por indígenas e na língua tradicional — no Brasil são mais de 200 línguas —, além disso, formação de magistério e continuada também estão fragilizadas. São direitos colocados em leis como a Constituição de 1988, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) e a resolução CNE/CEB n° 5, de 22 de junho de 2012, mas ainda negados.
Durante a oficina, coincidiu que representantes da Secretaria de Educação do MT estivessem na aldeia Piaraçu para a atualização do Projeto Político-Pedagógico (PPP). Na reunião a qual a repórter acompanhou, lideranças reivindicaram material na língua tradicional. A Secretaria alegou que tal pedido deve passar pelo Ministério da Educação.
A atividade na aldeia Piaraçu também foi momento de formação continuada dos professores indígenas. Por exemplo, os participantes aproveitaram para definir regras da grafia da língua materna, já que pela dimensão dos territórios é comum encontrar diferenças no uso da língua, refletiram sobre os impactos ambientais e sociais em seus territórios e relembraram atividades que podem fazer com seus estudantes, como cruzadinhas e caça-palavras.
“É muito bom ter escrita na nossa língua porque conta a nossa história, dos antigos, de grandes líderes e caciques, do rio, floresta, demarcação de terra, como demarcou, por que demarcou a terra. Essas oficinas têm que continuar, tem que ter mais. Porque ainda há muita coisa para os professores escreverem na língua”, afirma Megaron Txucarramãe, liderança Mẽbêngôkre reconhecida internacionalmente e que participou da atividade como representante técnico.
Mega, inclusive, foi o primeiro indígena a assumir o cargo de diretor indígena do Parque Indígena do Xingu, em 1984. Também esteve à frente de conquistas para o seu povo, como a construção de escola e formação de professor.
Entre os destaques do livro produzido na oficina está a importância do território indígena e tudo o que ele propicia. Desenhos e textos na língua foram produzidos à mão pelos participantes.
A coordenação da oficina e do material ficou por conta de Maria Cristina Troncarelli, conhecida como Bimba, e Maria Eliza Leite, que atuam com educação indígena desde os anos 80, tanto que são fluentes na língua Mẽbêngôkre. “A gente percebe que são poucas as oportunidades de elaborar o material didático, de conseguir sua impressão e de que os alunos recebam esse material. Então esse material é prioritário, uma vez que a escola indígena deve ser diferenciada e específica; ela deve trabalhar com a língua materna do aluno”, defende Bimba.
Paulista, quando Maria Eliza chegou às aldeias Mẽbêngôkre, poucos falavam português. “Megaron e Raoni lutaram na ditadura pela demarcação. Exigiram que a educação chegasse às aldeias, de início, para aprenderem português e o funcionamento da política brasileira.”
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Ainda hoje, o mais comum é ouvir de indígenas de diferentes povos que o objetivo da qualificação educacional é o de adquirir conhecimento para fortalecer a luta de seu povo. Morador na Piaraçu, Kokokroriti Metuktire também participou da oficina. Ele faz graduação intercultural indígena na Universidade de Goiás, cuja modalidade é modular, sendo a maior parte do tempo na aldeia.
“Nós, indígenas, precisamos nos preparar, ensinar sobre os dois mundos. Trazer conhecimento vai facilitar para o meu povo conhecer a lei. Quero me formar para intermediar e apoiar o meu povo.”
Na aldeia Piaraçu, a escola indígena estadual tem indígena em todos os cargos, de diretor, coordenador/articulador a professor — uma ‘vitória’ ao comparar com outros estados. “A escola indígena foi uma conquista. Tem que ter professor indígena para atuar pela comunidade”, afirma Tàkàktum Metyktire, docente na escola estadual da Piaraçu e formado em ciências sociais pela Universidade do Estado do Mato Grosso (Unemat).
Por falta de apoio, as formações para professor Mẽbêngôkre nas quais Bimba e Eliza atuam não ocorrem como antes. Ao longo do tempo, foram produzidos na língua materna e no português materiais, por exemplo, de alfabetização, português, matemática, ciências e saúde e um atlas das terras indígenas. Mas os impressos são poucos e se esgotam.
Patkore Metuktire tem magistério e é diretor da Escola Municipal Roikore. Foi escolhido pela comunidade e seu cargo será encerrado ano que vem. “Queremos mais formação. Queremos estudar mais para fortalecer a nossa cultura.”
Com sete filhos, Ngreiku-Eti é uma das poucas mulheres professoras indígenas da região, contudo, não leciona mais, mas esteve na oficina. Desenhou alguns grafismos tradicionais, sendo que um deles foi escolhido pelos participantes para ser uma das quatro capas do livro. Fez formação nos anos 2000. “Quis ser professora para falar português. Eu gosto de estudar e ensinar.”
Há 24 anos na educação, o professor Bepnhi Mekragnoti, da Terra Indígena Mẽkrãgnotire, chamou atenção na oficina por conta de uma de suas habilidades, é um artista. “Gosto de combinar desenho com a escrita e de colocar a cultura do meu povo no papel. Já fiz três livros com desenho e tradução: sobre lixo, doenças transmissoras e história do território.”
Vitória que vira e mexe tentam tirar é o Departamento Indígena da Secretaria de Educação e Cultura Municipal de Peixoto de Azevedo, MT, e cujo atual coordenador é o Kremoro Metuktire, escolhido em 2021 pela comunidade.
“O aluno tem que aprender a cultura. Tem que saber o mês em que se limpa a roça e acompanhar. Em nossas festas as crianças também aprendem, só que ainda temos dificuldade de aceitaram a nossa escola diferenciada”, alerta Kremoro, formado em ciências sociais pela Universidade Intercultural Indígena.
*A repórter viajou à aldeia Piaraçu, MT, a convite do Funbio