NOTÍCIA
No Brasil, 93% das crianças e adolescentes com idades entre nove e 17 anos são usuários de internet, o que corresponde a 22,3 milhões de usuários conectados. Os dados são da respeitada TIC Kids Online Brasil. A lista de consequências pelo uso excessivo de tela […]
Publicado em 24/08/2023
No Brasil, 93% das crianças e adolescentes com idades entre nove e 17 anos são usuários de internet, o que corresponde a 22,3 milhões de usuários conectados. Os dados são da respeitada TIC Kids Online Brasil. A lista de consequências pelo uso excessivo de tela é grande. Além dos problemas já alertados pelos pediatras, como alterações no sono, aumento no risco de obesidade e sedentarismo, pesquisas mostram que a superexposição a eletrônicos pode causar déficit de atenção, atrasos cognitivos, distúrbios de aprendizado, aumento da impulsividade, diminuição da habilidade de regular emoções, provocando ansiedade, depressão e agressividade. Também pode gerar dependência digital, transtornos de alimentação e de imagem corporal, cyberbullying, além de ampliar o risco de abusos sexuais e pedofilia, problemas visuais, miopia, problemas auditivos e de postura.
Leia também
Cultura digital, a competência mais desafiadora da BNCC
Educação midiática desde a educação infantil
Hugo Monteiro Ferreira, que é pós-doutor em estudos da criança pela Universidade do Minho, em Portugal, e doutor em educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), esclarece que há uma relação entre o uso abusivo de telas e a ansiedade, causada pelo aumento do cortisol, hormônio do estresse, que repercute na ansiedade e impacta a convivência social. “O uso excessivo das telas, seja num jogo, numa conversa, assistindo vídeos ou navegando pelas redes sociais, causa sensação de bem-estar e prazer, por isso cria dependência. Deixa-se de conviver no coletivo, de ter interlocução e isola-se porque é mais prazeroso viver a experiência das telas.”
O uso excessivo de telas por crianças muitas vezes é empregado como uma distração passiva que apazigua as demandas de atenção e tempo das crianças junto a seus cuidadores. Para Sheylli Caleffi, professora de comunicação e oratória e ativista pela erradicação da violência sexual e online, a sociedade brasileira enxerga a criança como propriedade da família, e não como um sujeito de direito. Sheylli aponta a extrema pobreza e a desigualdade do país como os principais fatores que estimulam o uso excessivo de telas.
“Sem rede de apoio, uma mãe solo, por exemplo, para poder cozinhar e realizar suas tarefas em casa, deixa a criança na tela. Seja a tela da TV ou do celular. Essa mesma mãe sai cedo para trabalhar, leva horas para ir e voltar do trabalho, além das horas de expediente, e quando chega a casa, deixar a criança na tela é uma forma de conseguir executar as demandas, como fazer o jantar e o almoço do dia seguinte.”
Hugo Monteiro acredita que a saída está na educação socioemocional, deixada em segundo plano, pois a prioridade sempre foi a cognição. “A escola precisa respeitar a criança e o adolescente de forma integral, dar atenção às questões emocionais, sentimentais e ao seu processo pedagógico”, explica.
Autor do livro A geração do quarto – quando crianças e adolescentes nos ensinam a amar (ed. Record), Hugo defende que a escola construa núcleos de escuta qualificada e acolhedora, sem sentenciamento. É o que ele chama de escuta sensível. A comunicação não violenta é outro braço a ser trabalhado. O autor conta que as escolas da Finlândia apresentaram os melhores resultados em termos cognitivos por meio de um trabalho com perspectivas transdisciplinares. Já no Japão e na Coreia do Sul, relata que, apesar dos resultados positivos pelo Pisa, há muitos jovens que não saem de seus quartos, adoecidos, cuja situação de isolamento já é tida como uma doença. “Investir exclusivamente no aparato cognitivo não funciona para uma vida saudável”, ilustra.
Embora as regras para limites no uso das telas e bloqueios de conteúdos inapropriados na internet venham, em geral, de casa, dos pais e mães, da obrigação de exercer o pátrio poder, previsto em lei, a escola é responsável pelos estudantes quando estão dentro do seu espaço. “Toda vez que visito uma escola estimulo que tenha regras de uso dos eletrônicos, tanto dos celulares privados, quanto dos equipamentos da própria escola (tablets e notebooks). Que estabeleçam os momentos permitidos, para que os alunos não se isolem e deixem de interagir com os colegas”, orienta Kelli Angelini, mestra em direito civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e advogada atuante na área de direito digital e educação digital. Kelli ressalta a importância do uso de filtros, pois os dispositivos também são usados para acessar conteúdos além das atividades educativas.
De acordo com a legislação brasileira, a escola é responsável por zelar pela integridade e pela vida dos estudantes enquanto estiverem em suas dependências. Ou seja, deve agir, por exemplo, quando um aluno passa a sofrer bullying dentro da escola, intimidações repetitivas que causam dor e sofrimento, como empurrões e xingamentos, agressões físicas e verbais, o que leva o bullying para além do muro da escola, para a internet, chamado de cyberbullying, em que as agressões continuam por mensagens, WhatsApp, redes sociais, atingindo um número maior de apoiadores.
“Quando a escola é omissa e não trata um caso de bullying, se torna responsável também. De acordo com a legislação do nosso país, quando a escola deixa algo acontecer, por ação ou omissão, se torna responsável, sendo enquadrada pelos tribunais de justiça como serviço defeituoso, quando deveria ter agido na proteção de uma criança ou adolescente”, explica Kelli, membra da Comissão dos Direitos das Crianças e Adolescentes da OAB/SP.
Leia também
A geração dependente de tecnologia digital
Hoje, tudo se faz pela internet. Governos cada vez mais prestam serviços online, sendo alguns apenas neste formato. Há países em que o acesso à internet já é considerado um direito fundamental, garantido na constituição.
“Creio que muito mais do que ter a tecnologia física à disposição, é ter a tecnologia na mente dos professores, que eles não apenas saibam usar, mas que reflitam sobre a tecnologia e preparem os alunos para lidar com ela e utilizá-la para viver em um mundo onde tudo isso é a realidade”, reflete Gustavo Cardial, professor de computação para alunos do ensino médio e da graduação no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Acre (IFAC).
Gustavo, que é especialista em segurança na internet e segurança digital, completa: “a internet não é algo paralelo, algo à parte. Isso implica os mesmos direitos, mesmos deveres, as mesmas diversões e os mesmos perigos. Tudo o que existe na vida real, existe na internet”.
A escola que não está inserida nesse mundo tecnológico mostra uma realidade diferente da que a criança e o jovem vivem. No ensino fundamental 1 da Camino School, escola trilíngue, integral e tecnológica, em São Paulo, cada estudante recebe um tablet, que é utilizado diariamente, mais de uma vez ao dia, porém, com o uso controlado pela professora. Já no ensino fundamental 2, cada aluno tem, já incluso na taxa de material, seu próprio laptop, que fica o tempo todo com o aluno, inclusive, podendo levá-lo para casa. Valentino Ruy, coordenador da área de humanidades da escola, enxerga que o desafio que a Camino Shool enfrenta no controle do uso das telas pelos estudantes é igual ao de todas as escolas, desde aquelas com controle mais rígido até aquelas cujos alunos possuem os dispositivos em tempo integral.
“Uma comparação que faço com outras instituições onde trabalhei, muito mais coercitivas e punitivas, é que o professor ficava o tempo todo de olho para ver se o aluno usava o celular e se via algo na internet, para daí vir uma possível punição. Já na Camino School, com a tecnologia à disposição, o objetivo do professor passa a ser outro, o de formar o estudante para diferenciar o momento em que o computador é útil e o momento em que não deve ser utilizado. A tela está presente no momento extraescola, o tempo todo. É papel das famílias e da escola educar e formar os estudantes para distinguir esses momentos. Todo o nosso trabalho vai nesse caminho”, discorre.
Existem softwares de controle parental para auxiliar famílias a verificar a navegação dos filhos pela internet, como o Google Family Link. Mas é necessário estabelecer regras de utilização da internet e fiscalizá-las. Em inglês, o termo usado é enforce, que significa forçar tais regras, aplicá-las e monitorá-las, ensina Gustavo.
Soluções que reprimem não dão certo. Muitos fatos tornam isso evidente, como o uso das drogas e o sexo entre jovens. O caminho é a educação e a moderação.
“As pessoas complicam a tecnologia e se desesperam frente ao desafio de controlar a internet dos filhos. Mesmo levando em conta suas particularidades, em geral, as bases são as mesmas e os princípios também. Basta olhar para como se controlam tantas outras coisas na vida das crianças e jovens, como diversão, relacionamento, alimentação, amizade, etc. Por que com a tecnologia seria diferente?”, conclui Gustavo.