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São 16h30 de uma terça-feira de agosto. Virene Alves de Souza, responsável pela direção escolar da Emeif Tancredo de Almeida Neves, em Canaã dos Carajás, município paraense a 780 km da capital Belém, pede que o repórter aguarde mais um pouco, pois ela está esperando […]
Publicado em 03/10/2023
São 16h30 de uma terça-feira de agosto. Virene Alves de Souza, responsável pela direção escolar da Emeif Tancredo de Almeida Neves, em Canaã dos Carajás, município paraense a 780 km da capital Belém, pede que o repórter aguarde mais um pouco, pois ela está esperando um caminhão-pipa que, a duras penas, conseguiu junto à Secretaria de Educação. A escola que dirige há dois anos e meio está em reforma há um ano e meio e, em casos mais críticos, ela tem de intervir diretamente.
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Direção escolar impacta a aprendizagem do estudante
A Tancredo de Almeida Neves é a escola mais antiga do município de 77 mil habitantes e estava defasada em termos de instalações e infraestrutura. Um tempo depois de assumir, Virene de Souza ouviu de famílias, professores, funcionários e estudantes, reunidos em uma roda de conversa, que o desejo comum era de que a escola se modernizasse. Espaço não faltava.
Depois de cerca de sete anos na direção de outras escolas, Virene assumiu querendo “estruturar a escola em termos de bens permanentes, estrutura física”. Com o tempo, percebeu que seria mais fácil inverter a ordem de prioridades: se antes estruturasse a equipe de trabalho, conseguisse a adesão e a participação de todos, o trabalho seria menos heroico e mais fácil.
A Tancredo tem 1.632 alunos do 1º ao 5º ano do fundamental 1. São 176 funcionários, 48 professores regentes, três professores de educação física, cinco coordenadores pedagógicos. Segundo a diretora, desde o início do ano, a unidade atende estudantes de uma invasão vizinha à escola, uma comunidade pobre e sem saneamento básico. Em sua maioria, são migrantes que vêm procurar trabalho na extração de minérios.
O problema é que muitos desses estudantes chegam à escola com 12, 13, 14 anos e conhecimentos precários de leitura mesmo no 5º ano, o que exige um grande trabalho de recomposição da aprendizagem para tentar nivelar as turmas. Segundo Virene, a pandemia fez a escola perder pontos no Saeb, e agora o trabalho é para recuperar a defasagem.
“Mapeamos os meninos com dificuldade de aprendizagem, organizamos grupos com os diferentes níveis e resgatamos professores readaptados que estão colaborando na alfabetização desses grupos”, resume a diretora, mostrando algumas das frentes em que está atuando e enfatizando a cooperação obtida com a integração de toda a comunidade escolar.
Assim como a diretora da pequena Canaã dos Carajás, a maioria dos 188.161 gestores registrados no Censo da Educação Básica de 2020 não conta com formação específica para o exercício da direção escolar. Segundo dados do mesmo Censo e do Saeb 2019 recolhidos pela pesquisadora Lara Simielli, professora do Departamento de Gestão Pública da Fundação Getulio Vargas, apenas 11% desses diretores fizeram formações continuadas específicas para gestão escolar (cursos de pelo menos 80 horas).
Outros dados relevantes mostram que 88% têm curso superior, 80% dirigem uma única escola, mas 10,8% são responsáveis por quatro ou mais escolas, principalmente na região Norte do país. No Nordeste, 20% dos que exercem cargos de gestão têm nível médio ou inferior. A direção é majoritariamente exercida por mulheres brancas com mais de 40 anos e 86% dos gestores em geral têm mais de cinco anos de experiência docente.
“As escolas que enfrentam mais dificuldades para ter um gestor próprio acabam tendo formatos simplificados. Não só às vezes os critérios de seleção são mais baixos ou flexíveis. Nem toda escola tem um gestor exclusivo. Na zona rural, às vezes o mesmo gestor atua em quatro escolas”, analisa Lara Simielli.
Se o país tem dificuldade de designar um diretor para cada escola, talvez isso seja um índice que ajude a explicar por que a Base Nacional Comum de Competências do Diretor Escolar, documento aprovado em maio de 2021 pelo Conselho Nacional de Educação, esteja até hoje aguardando homologação pelo Ministério da Educação.
O documento lista 10 competências gerais do diretor escolar (ler box no final), além de outras 25 competências específicas, distribuídas em quatro áreas: político-institucional; pedagógico; administrativo-financeira e pessoal e relacional (clique aqui para acessar o documento).
Instado a se pronunciar sobre a homologação do documento e a listar as atividades formativas oferecidas ou apoiadas em seu âmbito de atuação, o Ministério da Educação limitou-se a dar prosseguimento ao modus operandi de comunicação vigente desde o governo Bolsonaro: absteve-se de informar qualquer coisa. A resposta da assessoria de imprensa, via e-mail de 22 agosto, foi: “por ora não temos nenhuma informação a respeito”. O site do próprio MEC traz dois programas: Escola de Gestores (concebido em 2010) e Mentoria de diretores escolares (autoinstrucional, via web).
Escute nosso episódio de podcast:
Na visão de Lara Simielli, a base é apenas um primeiro passo para constituir um modelo que inclua o desenho de uma carreira para os diretores. “Os países com bom sistema de gestão têm um marco, um framework composto por todos os aspectos relacionados ao exercício dessa função”, diz. O segundo passo seria pensar em uma formação integrada em três etapas ao longo da carreira (inicial, de indução para o começo do exercício e continuada), para se chegar à efetiva delineação da carreira, estruturando inclusive o tamanho das equipes de gestão.
“Acho que tem pouca gente advogando a favor dos diretores. É um tema que não tem a centralidade que mereceria na agenda pública”, conclui. A pouca importância dada ao tema se reflete na sua presença em pesquisas acadêmicas num intervalo de 30 anos, entre 1989 e 2019. O artigo Revisão sistemática da literatura brasileira sobre diretores escolares, publicado pelos Cadernos de Pesquisa da Fundação Carlos Chagas em 2022 (volume 52), da mesma autora, mostra que apenas 6% de 691 artigos analisados dedicavam-se ao tema da direção.
Reconhecer a importância da função diretiva passa por alguns pontos nem sempre conhecidos. Um deles é o fato de o diretor escolar ser o segundo fator de influência para a aprendizagem dos estudantes, atrás apenas dos professores. É o que indica o documento Activating Policy Levers for Education 2030 (Como alavancar as políticas educacionais para 2030), publicado pela Unesco em 2018. Apesar da publicação relativamente recente, o achado é bem anterior: em 2004, o pesquisador canadense Kenneth Leitwood publicou o estudo How leadership influences student learning (Como a liderança influencia a aprendizagem dos estudantes), atualizado e reeditado pelo menos duas vezes desde então.
Ou seja, mesmo que com modelos variados, a função já mostrou sua relevância na aprendizagem há muito tempo. Alguns fatores utilizados na importação dessas pesquisas, no entanto, acabam gerando confusão e rejeição. Um deles é o uso de termos como leader ou leadership (líder, liderança), corrente nos países de língua inglesa, mas mal digerido no Brasil, como relata a pesquisadora Filomena Siqueira, cujo pós-doutorado realizado pela Cátedra Sérgio Henrique Ferreira, do Instituto de Estudos Avançados da USP de Ribeirão Preto, trata do assunto.
Filomena, que já pesquisara a influência dos diretores em seu doutorado, entrevistou e acompanhou diretores de escola da Rede Municipal de Ribeirão Preto a partir de abril de 2022.
“Eles não se veem como lideranças, acham que liderar se confunde com autoritarismo. Reforçam o fato de que o diretor precisa ser colaborativo, democrático. Só depois de conceituar melhor o termo é que eles falaram de suas atividades, relacionamento com professores, desafios de aprendizagem e impossibilidades”, relata.
Também nesse caso, houve prevalência de diretoras mulheres, formadas em pedagogia. Nove de 31 fizeram especializações em gestão escolar, mas muitas vezes acerca de tópicos específicos, como inclusão, e não sobre a totalidade da função. Em geral, a visão é de que “estão diretores, numa visão transitória”.
Nas entrevistas, muitos disseram que, apesar de querer contribuir mais para melhoria da aprendizagem, se veem presos a questões de ordem administrativa, disciplinar ou logísticas (como a merenda, por exemplo). Fatores também impeditivos apontados pelos diretores são a falta de estrutura que favoreça a interlocução pedagógica com docentes e a falta de repertório que sentem ter para levar a função a cabo.
A falta de equipes pedagógicas e administrativas bem formadas e estruturadas é corrente nas escolas. Tanto que, no caso de Ribeirão Preto, valeu uma menção nas recomendações feitas por Mozart Neves Ramos, diretor da Cátedra e orientador da pesquisa, para que a Secretaria de Educação local constitua equipes de apoio à gestão.
Para Filomena Siqueira, o trabalho dos gestores pode ser mais bem aproveitado. “É um quadro desafiador. Há pessoas com muita vontade, bastante envolvidas, que não estão dando vazão a seu potencial. É preciso alterar uma estrutura que funciona de modo inercial”, conclui.
A presença de um gestor mais qualificado, que traga competências de gestão e pedagógica é fator essencial para a constituição de equipes voltadas a resoluções dos problemas da escola, defende Tereza Perez, diretora da Comunidade Educativa Cedac, entidade que há 25 anos atua junto a escolas e redes para melhorar as práticas educativas.
“Há exemplo de escolas com gestão compartilhada, muito comprometidas com a aprendizagem. Esse compartilhamento gera mudança de postura diante dos problemas da escola, com sensíveis mudanças”, relata. A educadora identifica quatro tipos mais frequentes de gestores: os autoritários, que decidem tudo; os meritocráticos, que costumam ter pesos e medidas diferentes, de acordo com os relacionamentos; os ausentes, onde cada um faz o que bem entende, e a compartilhada, com busca de autonomia, resoluções conjuntas, instâncias institucionais e participação de famílias e estudantes.
Segundo Tereza Perez, nos casos bem-sucedidos, uma melhora evidente é do clima escolar, o que muito ajuda no trabalho pedagógico. Para isso é importante que a instituição tenha um regimento construído coletivamente, e não imposto de cima para baixo. Caso contrário vira um instrumento de culpabilização, quando seu objetivo é conseguir a adesão de todos. “Os gestores não podem ser preconceituosos no convívio público. Se ele for homofóbico ou racista na vida privada, na escola não pode ser”, ressalta.
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Tempo integral, sim, mas não de qualquer jeito
Outro ponto intrincado do processo de gestão é o modo de escolha do diretor. Normalmente, a direção é uma função, e não um cargo. Há exceções, como a rede estadual paulista, em que a entrada no cargo se dá por meio de concurso específico. No geral, é uma função exercida por profissionais docentes, ou seja, licenciados em pedagogia ou outras formações voltadas à educação básica, que tenha sido contratado através de concurso público.
Essa concepção está ligada ao fato de que a direção escolar não pode prescindir do conhecimento específico do universo pedagógico, seja no âmbito prático ou teórico. Um problema daí decorrente vem dos currículos de pedagogia, que destinam poucas disciplinas e poucas horas à gestão. Ou seja, os professores que se tornam gestores aprendem muito mais no cotidiano escolar, nas atividades com alunos, colegas e funcionários do que na sua formação.
Outro modo de escolha é a eleição, acompanhada de formação técnica obrigatória ou não. Formalmente, no entanto, não é eleição, é consulta pública, pois a eleição foi considerada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, após Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) impetrada por governadores.
Como se trata de cargos públicos de confiança, os diretores podem ser indicados por secretários, prefeitos e governadores. No âmbito das prefeituras, 54,9% dos diretores são escolhidos por essa via, normalmente sem estar tecnicamente preparados, muitas vezes sem pertencer à comunidade escolar. Por isso, muitos defendem que a direção deveria ser um cargo e constituir uma carreira em separado. Mas, como lembra Angelo Souza, professor de política e administração da Faculdade de Educação da UFPR, não há evidência de que o cargo (em tese mais estável) mostre resultado melhor do que a função (mais provisória). “O problema de ser função é a rotatividade maior. Nos primeiros governos Lula, 400 diretores se formaram na Escola de Gestores. Depois de algum tempo, muitos deles não eram mais diretores.”
Em média, os diretores se mantêm no cargo de três a quatro anos, segundo o Censo. Mas muitos dos entrevistados colocam em dúvida a visão de que longas permanências geram bons resultados. Em tempos de tantas mudanças em vários âmbitos, a estagnação pode ser deletéria. E, como no caso de governos, a sedimentação em um mesmo posto pode levar a acomodações e conveniências pessoais que desarticulem o propósito principal da gestão: educar os estudantes e fazer da escola um espaço de transformação positiva de suas vidas.
Em um espaço de tempo relativamente curto, de seis anos, Juliana Reis passou de assistente de direção de uma escola de educação infantil da prefeitura de São Paulo a coordenadora de polo do ensino superior no CEU Inácio Monteiro, na zona leste da cidade.
A rapidez da ascensão não significou a orfandade das escolas que dirigiu, principalmente nas Emefs Nelson Pimentel, no Jabaquara, José Maria Lisboa, na Saúde, e na Emef Jean Mermoz, na Chácara Inglesa. O período mais desafiador foi nesta última, que assumiu pouco antes da pandemia. Lá, encontrou uma comunidade atuante, mas professores desestimulados.
“A principal dificuldade era a abertura para o diálogo. Se as pessoas não se relacionam, todos os outros processos ficam difíceis”, diz Juliana.
Para mudar o cenário, passou a tomar café — e conversar, é claro — com professores, com o pessoal da limpeza, com os funcionários. “Era uma diretora de pátio, estava com os alunos, conversava com os pais na chegada e na saída da escola. Vivenciava todo o processo, via a situação das merendeiras, comia na escola”, lembra. Depois dessa chacoalhada inicial, a maior dificuldade foi manter o ânimo do grupo. Para que o trabalho não se perdesse, foi assumido por sua antiga assistente, em sintonia com a gestão.
Para Juliana Reis, o tempo ideal para a direção é de três anos para cima. “Dá pra colher o que você plantou, consolidar melhor. Mas muito tempo pode ser problemático. Vi caso de gestora há 25 anos numa Emei em que as coisas ficaram ultrapassadas, os processos administrativos não foram atualizados”, alerta.
A inquietude como gestora rendeu frutos. No final de 2022, após defender seu doutorado na Unifesp, como adiantado, passou em concurso para o cargo de coordenadora de polo no CEU. O tamanho dos desafios só aumenta.
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