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Educar sobre política, democracia, direitos e deveres é mais do que passar uma série de conceitos para os estudantes decorarem. Afinal, de pouco adianta um adolescente saber a função do Ministério Público se não souber ouvir um colega que discorda de suas ideias. A escola […]
Publicado em 12/10/2023
Educar sobre política, democracia, direitos e deveres é mais do que passar uma série de conceitos para os estudantes decorarem. Afinal, de pouco adianta um adolescente saber a função do Ministério Público se não souber ouvir um colega que discorda de suas ideias. A escola precisa permitir que os conceitos sejam colocados em prática, porque é somente no diálogo, no respeito à opinião dos outros e na construção coletiva que os estudantes podem aprender e praticar a cidadania.
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Foi justamente ao perceber uma indisposição em aceitar a opinião alheia que a professora Karina Letícia Pinto, da Escola Estadual José Ferreira Maia, em Timóteo, Minas Gerais, decidiu criar em 2019 um projeto para tratar de política para sua turma de 5º ano.
“A gente estava com o clima tenso na sala por questões de política partidária. Crianças de 10 e 11 anos que viam as reações e ouviam palavras dos adultos levavam o mesmo comportamento para dentro da escola”, lembra ela.
Em vez de se amedrontar frente à intolerância presenciada e tentar apenas mudar o foco, Karina decidiu enfrentar o problema. Para isso, sentiu a necessidade de buscar novas abordagens.
“Vi necessidade de trabalhar a tolerância. Tive apoio do Plenarinho para trabalhar sobre o funcionamento dos poderes e a democracia de uma forma diferente”, conta. Plenarinho é uma iniciativa da Câmara dos Deputados com jogos, vídeos e desafios voltados à educação política de crianças.
As lições da ‘tia Karina’ chegaram até os adultos também, pois a professora passava como tarefa de casa às crianças conversar com os familiares sobre política. Claro que, inicialmente, alguns familiares se assustaram, mas logo ela e os estudantes explicaram que não se tratava de política partidária, mas sim de como agir em sociedade.
Durante o ano letivo, as crianças elegeram um líder de sala, foram à Câmara Municipal, redigiram um projeto de lei e, no final, conseguiram apoio de toda a comunidade para levantar recursos e viajar até Brasília, onde conheceram as sedes dos Três Poderes e participaram de uma simulação de sessão. Pelo projeto, Karina recebeu em 2021 da Bett Brasil e do Instituto Significare o prêmio de Professor Transformador.
Mesmo após 2019, as lições de democracia de Karina continuaram com as próximas turmas, embora com outras proporções e atividades. As discussões estão presentes sempre nas aulas de geografia e história, mas também em textos de português que tratam das fake news, em gráficos com pesquisas de opinião na matemática, cita a docente. A professora defende o poder das crianças para melhorar a política brasileira. “A democracia tem que reinar — e os meninos vão ensinando para as famílias”, diz.
Para Érica Catalani, coordenadora de projetos do Cenpec, ONG referência e que trabalha pela equidade na educação, o aprendizado sobre o respeito às diferenças não tem uma idade certa, assim como não há um componente curricular único para tratar da democracia: todo momento é oportuno.
“Sou professora de matemática e até na hora de analisar as formas de resolver uma adição, posso colocar como discussão na sala o fato de estudantes encontrarem caminhos diferentes, mostrar que todos os pontos de vista e formas de pensamento devem ser respeitados”, exemplifica.
O exercício da cidadania deve começar próximo da realidade das crianças. Um grupo de pessoas reunidas para decidir algo em conjunto, por mais simples que pareça, já é uma forma de viver a política. “A gente pode discutir na mais tenra idade sobre limpar o espaço onde me alimentei. Reunir-se para discutir qual história vai ser lida. As crianças decidindo é um ato político”, afirma.
Mas a vivência precisa sempre ser orientada pelos professores, com a intencionalidade pedagógica de promover o respeito e a tolerância. Érica conta que muitas vezes as crianças querem definir regras autoritárias, pedem em assembleias a expulsão de colegas indisciplinados, por exemplo. “Cabe, nesses casos, discutir o que essa regra pode infringir no direito do outro, como ficariam as relações coletivas”, recomenda.
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Também é importante que a escola vá além do discurso, que dê espaços, tempos e acolha realmente as propostas dos estudantes — coisas que, infelizmente, ainda são raras de encontrar. “É fácil falar, mas como se vive isso no cotidiano, com crianças e adolescentes? Na minha pesquisa vi que a educação infantil tem espaço para escuta e escolha, mas isso vai diminuindo com o passar dos anos, o que é incoerente. Como vão ter autonomia sem a gente permitir que façam escolhas?”, questiona Thaís Fazenda Coelho, professora da consultoria Trocando Ideias.
Dá, sim, muito trabalho promover o debate e acolher decisões coletivas, reconhece Thaís, mas é preciso que essas variáveis sejam sempre consideradas, ou as atividades acabarão sendo inócuas.
“Muitas escolas têm a prática de líder de sala. Mas quantas oferecem momentos para ele escutar o grupo? Se a escola não dá espaço para conversarem, o líder vai representar quem? Democracia é representar um grupo e não decidir coisas da cabeça dele”, ressalta Thaís.
Na cidade de São Paulo, na particular Escola Nossa Senhora das Graças, o Gracinha, a política está no currículo desde os primeiros anos. As questões vão crescendo em complexidade até que os estudantes do ensino médio visitam Brasília, assistem sessões no legislativo e judiciário. Mas a política não está apenas no currículo: ela se faz no dia a dia da gestão da escola, explica Wagner Borja, diretor da instituição.
“Temos grêmio estudantil, vários coletivos, fazemos assembleias. Embora a gente tenha uma hierarquia, há o cuidado de ouvir as pessoas e encaminhar as propostas”, garante.
Entre as decisões tomadas graças a negociações com a comunidade escolar estão o código de vestimenta dos estudantes, a criação de espaços temáticos na biblioteca para o protagonismo feminino, negro e LGBTQIA+, assim como regras para uso dos espaços. “Em 2015 a quadra não podia ser usada nos intervalos para o futebol. Foi por causa de uma negociação com o grêmio que os estudantes recuperaram esse direito”, lembra Borja.
A relação entre escola e democracia é intrincada e se manifesta de diversas maneiras. Para o ex-senador e ex-ministro da Educação (2003-2004) Cristovam Buarque, a democracia é um ponto de partida para toda a instituição de ensino.
“Sem democracia, a escola não consegue ensinar democracia, nem qualquer outra disciplina plenamente. A democracia faz parte da pedagogia ou não ensina, se limita a adestrar, sem o enriquecimento intelectual e moral”, diz.
Ele lembra ainda que a verdadeira democracia nacional depende de que a educação com qualidade chegue democraticamente a todos. “Antes de discutir como ensinar sobre democracia na escola é preciso sugerir como a democracia deve influir para que o Brasil tenha escolas todas com qualidade e a mesma qualidade para todos, independentemente da renda e do endereço da criança”, afirma. O Brasil ainda tem um longo dever de casa para entregar.
Em 9 de agosto deste ano, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 1108/15, que estabelece como componente curricular obrigatório a educação política e os direitos do cidadão, desde o infantil até o ensino médio. Seria um acréscimo ao artigo 26, que determina o que se deve ensinar nas escolas. Estão neste artigo o português, a matemática, conhecimento do mundo físico, natural e social, o inglês a partir do 6º ano, as artes, a educação física, a história e a cultura afro-brasileira e indígena. O texto seguiu para o Senado, onde aguarda análise.