NOTÍCIA
“Meu pai não tinha vocação para o ensino, mas quis meter-me o alfabeto na cabeça. Resisti, ele teimou — e o resultado foi um desastre. Cedo revelou impaciência e assustou-me. Atirava rápido meia dúzia de palavras e ia jogar solo.” Assim o escritor alagoano Graciliano […]
“Meu pai não tinha vocação para o ensino, mas quis meter-me o alfabeto na cabeça. Resisti, ele teimou — e o resultado foi um desastre. Cedo revelou impaciência e assustou-me. Atirava rápido meia dúzia de palavras e ia jogar solo.”
Assim o escritor alagoano Graciliano Ramos relata a tentativa do pai para que ele se tornasse ‘um sujeito sabido’, como descreve em suas memórias no livro Infância, de 1945. Mestre Graça, mais do que documentar seus primeiros anos de vida, tenta, já maduro, reconstruir com as tintas da imaginação um pouco do que havia se passado ali: a transformação de um mundo que se abre por meio da oralidade para fixar-se no aprendizado do registro escrito, o que permite descortinar outros novos mundos.
Leia também
“Vida cotidiana é o espinho central da educação infantil”, defende Paulo Fochi
Linguagens infantis, um olhar para a criança
Se em partes de Infância o tom é dado por um pai violento e as restrições do sertão e da pequena cidade que começa a se desenvolver, surgem também a professora compreensiva e os livros do caixeiro-viajante Jerônimo Barreto, muito mais divertidos que as cartilhas, eternas fontes de desânimo. Ensinamentos tortos que, mesmo com esforço, não destruíram a curiosidade de quem já havia se encantado pelo conhecimento.
Assim como Graciliano, diversos outros escritores e memorialistas deram novas cores a suas experiências antigas, pintando-as com os pincéis dos sentimentos marinados pelo tempo. Hoje, entretanto, a realidade do ingresso das crianças na escola é bem outra, apesar de ainda deixar a desejar não só quando comparada a outros países, mas também às metas estabelecidas pelo Plano Nacional de Educação (PNE) 2014-2024.
Em sua Meta 1, o PNE estabeleceu que, até 2016, todas as crianças que completassem quatro anos no exercício letivo corrente deveriam estar matriculadas na pré-escola. Em 2019, último ano antes da pandemia de covid-19, 94,1% das crianças de quatro e cinco anos estavam matriculadas, um total de 5 milhões e 91 mil crianças. Por melhor que seja a evolução, principalmente se contabilizarmos o aumento do acesso a partir de 2001, quando 66,4% das crianças nessa faixa etária estavam na escola, ou mesmo em 2014, quando já havíamos chegado a um total de 89,1%, ainda restavam 330 mil crianças esperando por uma vaga em 2019. E, pior do que isso, a pandemia fez com que o número de matrículas em 2021 tivesse queda de outras 270 mil.
“Temos de afirmar o direito à educação infantil. Ela deve ser ofertada pelo Estado de forma gratuita, para que as crianças tenham acesso a um desenvolvimento integral, tenham a plenitude de sua infância”, enfatiza Beatriz Abuchaim, pesquisadora e gerente de conhecimento aplicado da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal (FMCSV), entidade que tem liderado grande parte dos projetos relacionados à educação infantil em nível nacional.
A garantia ao acesso é um dos principais instrumentos para que se minimizem as desigualdades sociais. Atender os mais vulneráveis dessa faixa etária é prioritário, não só porque eles são os que correm maiores riscos de não frequentar creches e pré-escolas, como também porque isso amplia a possibilidade de essas crianças darem continuidade à sua vida escolar. Quem frequenta a pré-escola têm 88% mais chances de terminar o ensino fundamental e 73% mais probabilidades de concluir também o ensino médio, segundo a pesquisa Desigualdades na garantia do direito à pré-escola, estudo encomendado pela FMCSV, em parceria com o Unicef e a Undime, e publicado em 2022.
Além desses indicadores, pesquisas nacionais e internacionais apontam que frequentar a pré-escola — principalmente aquela de qualidade — permite que os futuros adultos tenham maiores taxas de empregabilidade, alcancem índices mais altos de escolarização e tenham mais cuidados com a própria saúde e a dos filhos e cônjuges. A pesquisa da Fundação indicou, ainda, as maiores e menores taxas de frequência na etapa: a maior é no Nordeste, com 96,7%, e a menor no Norte, com 88,5%.
Mas o trabalho pela primeira infância também contempla outras parcerias. Ao lado do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Economia Social (Lepes, da USP de Ribeirão Preto), a FMCSV finalizou, também em 2022, o estudo nacional sobre Qualidade da educação infantil, em que foi avaliado o bom funcionamento dos ambientes de aprendizagem em mais de 3,5 mil turmas de 12 municípios brasileiros das cinco regiões.
Esse levantamento nasceu da adaptação de um instrumento internacional de pesquisa, o Melqo (Medição da Qualidade e Resultados da Aprendizagem Precoce, em português), oferecido pela Unesco que analisa os ambientes e as interações entre crianças e seus pares e com o professor ou outros adultos, com os materiais e espaços disponíveis e a infraestrutura como um todo.
Leia também
Segundo Beatriz Abuchaim, houve alta adesão das redes estaduais e municipais à Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para a educação infantil e os primeiros anos do ensino fundamental, documento sobre o qual se assentam os parâmetros para a avaliação. Mas, a despeito disso, dois fatores chamaram a atenção dos investigadores externos.
“Nos surpreendemos com o fato de não vermos com a frequência que gostaríamos os momentos de brincadeiras mais livres. E também registramos uma baixa taxa de leitura”, revela Abuchaim.
Na pesquisa da FMCSV divulgada ano passado, ausência de brincadeiras foi registrada em 46% da pré-escola e 38% de creches. Beatriz Abuchaim também relata que os professores têm dificuldade de interpretar o que está na BNCC, ainda que os currículos locais estejam alinhados a ela. O problema de origem é aquele que sempre é mencionado e raríssimas vezes é atacado como política pública central para melhorar a educação em todos os níveis: as formações docentes inicial e continuada. Uma alternativa para minimizar essa deficiência, principalmente para os educadores que já estão na ativa, é o acompanhamento próximo e frequente de coordenadores pedagógicos bem instrumentados para orientar e explicar as práticas. “Essa figura é central para a implementação curricular”, diz.
O pediatra Fábio Ancona Lopes, com 60 anos de janela profissional, alerta que brincar é fundamental, na escola e em casa. “Há escolas que exigem demais, esperando coisas que as crianças ainda não conseguem fazer. Querem corresponder a um excesso de expectativas de pais e mães, de acelerar o desenvolvimento da criança.”
Ele alerta que as crianças têm o seu tempo. Até os três anos, mais ou menos, ainda estão muito voltadas a si próprias. Por isso é normal brincarem sozinhas. A partir de quatro anos, avalia Ancona, já se pode incentivar maior interação com o meio. O médico aconselha que a escola possibilite o convívio com pequenos animais, como tartarugas, para a criança ir percebendo o outro. E que possam mexer com terra e plantar numa horta, acompanhando o crescimento dos vegetais.
“O contato com a natureza e o fato de saber de onde vem as coisas que ela come ajudam a diminuir a rejeição a alimentos, comum por volta dos quatro anos”, diz o professor aposentado da Escola Paulista de Medicina, que também é nutrólogo.
Leia também
Avaliação: diferentes instrumentos para seres humanos diversos
Se a obrigatoriedade da frequência escolar pela Constituição Brasileira se dá a partir dos quatro anos, a vivência das crianças menores em creche pode representar um ganho em termos de alimentação, cuidados, proteção e educação, principalmente para aquelas que vivem em situação de vulnerabilidade social.
O psicólogo e neurocientista Fernando Louzada, coordenador do Laboratório de Cronobiologia Humana da Universidade Federal do Paraná (UFPR), lembra que quanto mais pobre é o ambiente do ponto de vista cultural, mais o desenvolvimento pode ser comprometido. “Isso ocorre em ambientes com menos conversas, menos histórias, menos livros e estímulos.” Mas, ainda mais importante é a frequência escolar para tirar a criança de situações de violência, negligência, abuso, fome e abandono crônicos, experiências que afetam a regulação emocional. Na escola, esses problemas são perceptíveis e permitem que o Conselho Tutelar seja acionado para proteger as vítimas.
“Esse tipo de episódio pode alterar o funcionamento cerebral da criança, provocar mudanças em suas redes neurais, deixando marcas estruturais na configuração do cérebro. Os circuitos de memória são consolidados pela experiência”, alerta Louzada. Por isso, a presença na escola e as atividades lúdicas estimulam o cérebro de maneira positiva. “O desenvolvimento cognitivo e emocional se dá por meio das interações sociais, em ambientes seguros”, completa.
Beatriz Abuchaim reforça essa defesa. Ela lembra que o brincar não só desenvolve, mas proporciona o aprendizado nas interações, na autorregulação da criança, estimula a criatividade, ajuda na percepção do tempo e do espaço e na construção da autonomia. “Na primeira infância, iniciamos esse processo de construção de identidade, o que acontece na relação com o outro. A escola proporciona um ambiente mais rico, com outras crianças e adultos. Nada substitui essa experiência em termos de socialização”, explica.
Para o neurocientista Louzada, os problemas são vários: os cursos de pedagogia são anacrônicos, desconsiderando aspectos biológicos e comportamentais; a etapa é desvalorizada e remunera mal; não se consegue multiplicar experiências bem-sucedidas de outros lugares, como as de Sobral, no Ceará.
É crucial, por exemplo, que os momentos de brincadeira livre, muito necessários, sejam acompanhados e mediados pelos professores. Deixando, porém, a iniciativa de escolher com quem, com o quê brincar e como iniciar a atividade a cargo da criança.
Um alerta feito pelos educadores e pela Sociedade Brasileira de Pediatria: o contato com telas (somando todas elas, TV, celulares, tablets etc.) deve se restringir a uma hora diária a partir dos dois e até os cinco anos. Até dois anos, a recomendação é para que o contato seja evitado.
O professor de literatura Cláudio Leitão, analisa no posfácio de Infância o que significa na obra de Graciliano Ramos a aquisição da leitura, após a imaginação ser atiçada pelas histórias orais. “Adquirir a capacidade de ler resulta na descoberta de um oceano. Resulta em desejar fazer navegar a imaginação livremente até ilhas, reinos e fantasmas, de quantidade e distância ilimitadas.”
Pais que projetam nos filhos suas expectativas e o receio de que as crianças vivam os mesmos problemas e traumas que viveram na infância. Esse é um desafio cotidiano na educação infantil de escolas particulares de classe média. Para tranquilizá-los e livrá-los de uma angústia que pode prejudicar as crianças, a melhor saída tem sido o diálogo e a informação.
É o que faz a coordenadora pedagógica do Centro Educacional Pioneiro, escola situada na Vila Clementino, zona sul de São Paulo, com classes da pré-escola ao ensino médio. Débora Martins se reúne com as famílias dos 159 estudantes a cada três meses. Muitos pais ainda têm uma visão da educação infantil descolada no tempo.
“Entendem que é um lugar só de cuidado, superproteção e tentam evitar que os filhos passem por episódios que eles próprios passaram na infância. Tentamos trazer as famílias para perto e explicar que conflitos e frustrações acontecem, mas que não necessariamente os filhos vão sentir da mesma forma que eles sentiram”, explica a coordenadora.
A ansiedade pela aprendizagem, vista não só no âmbito dessa escola, é relatada também em outros países, como a China. Ela se deve à angústia de dar condições aos filhos para que tenham uma carreira profissional bem-sucedida.
Mas nem tudo é ansiedade. As famílias ficam felizes com a liberdade de que os filhos desfrutam e com conceitos diferentes daqueles da sua infância. “Se surpreendem que as crianças têm mais momentos de brincadeiras, usam o tanque de areia todos os dias e lidam com elementos da natureza. E admiram o fato de também fazerem rodas de conversa para resolver conflitos, quando há escuta das crianças e dos professores”, diz Débora Martins.
Pela fala da coordenadora, comum à experiência de muitos educadores, além de educar as crianças, as escolas também precisam ajudar no aprendizado da paternidade.
Escute nosso episódio de podcast:
Democracia deve ser ensinada desde a primeira infância, diz ex-ministro da Educação