Por J.S.Faro*: O SinproSp – entidade sindical que representa professoras e professores da rede privada de ensino em todos os níveis – saiu na frente ao relançar a revista GIZ. De periodicidade semestral, a publicação é um projeto que já tem duas décadas de história, […]
Publicado em 23/11/2023
Por J.S.Faro*: O SinproSp – entidade sindical que representa professoras e professores da rede privada de ensino em todos os níveis – saiu na frente ao relançar a revista GIZ. De periodicidade semestral, a publicação é um projeto que já tem duas décadas de história, mas que passa agora por um processo de revisão editorial cujo objetivo é tornar-se uma plataforma de discussão que mantenha a categoria sintonizada com demandas profissionais, pedagógicas e culturais que cercam suas atividades.
O tema central que ilustra esse primeiro número é o dossiê que toma como ponto de partida o livro recém-lançado pela Boitempo, Colonialismo Digital, de autoria dos professores Deivison Faustino e Walter Lippolo, e prefaciado pelo pesquisador e também docente Sergio Amadeu.
A obra faz uma interessante e polêmica abordagem das inovações tecnológicas, mas não sob o viés costumeiro do deslumbramento que o universo digital desperta com suas funcionalidades nas percepções menos exigentes dos gestores do negócio da escola particular. O que o livro faz é investigar as bases políticas e ideológicas que dão sustentação a uma nova natureza do poder: o colonialismo digital referido no título do trabalho.
Na verdade, embora aqui sob uma perspectiva que decorre do amadurecimento que o estudo desse processo adquiriu nos anos recentes, o livro de Faustino e Lippolo elabora uma investigação conceitual sobre a relação entre as tecnologias digitais, sua estrutura econômica e institucional, e os processos coloniais de domínio que se mantém através do mito da modernização – fenômeno sob o qual o Brasil é um verdadeiro modelo de análise.
A rigor, portanto, o dossiê, cuja discussão está registrada no seminário que festejou o relançamento da Giz (acesse aqui), recupera uma das teses essenciais da sociologia contemporânea sobre a técnica como ideologia do capitalismo tardio. Pensadores como Adorno, Marcuse, Foucault, Deleuze, Habermas, cada um deles a partir de referenciais teóricos específicos, desvendou aquele que seria o mantra a partir do qual tornou-se mais claro o entendimento da técnica como instituto simbólico de conformação de estruturas sociais colonizadas.
No Brasil, essa discussão foi trazida para o campo da Educação através do professor Rubem Alves num ensaio publicado em 1968 na revista Paz & Terra intitulado Tecnologia e Humanização. Ali, Alves percorre as etapas nas quais o mito da técnica como Deus Ex Machina acabou se incorporando a uma própria fragilidade do sujeito na sua percepção do mundo, fato que o tornou um acessório de um processo que sua razão instrumental já não explica pois que se transferiu na sua essência para a Cibernética, espaço desideologizado e distópico.
Tudo indica que essa inovação, talvez a mais disruptiva surgida até agora – a Inteligência Artificial – é a expressão mais visível e mais amadurecida de um ser humano como acessório e refém da tecnologia… desumanizado, portanto.
Todas as atividades humanas serão atingidas por isso, dizem os profetas de uma sociedade tecnocrática já instalada no mundo, mas nada que seja tão incisivo como o que está ocorrendo com as atividades do ensino. É a professora e o professor que gravitam em torno da racionalidade do ChatGPT e não o contrário, como aconteceu até agora com as ‘antigas’ inovações.
É a partir de um fluxo de informações externo ao sujeito, fluxo esse que se organiza como narrativa e sobre a qual esse mesmo sujeito não tem poder algum, que o conhecimento passa a ser construído, mas não mais como síntese, que é cultura, mas como quantidades armazenadas nos bancos de dados.
Professoras e professores deste final de 2023 já estão experimentando essa nova realidade pedagógica nas salas de aula – das séries iniciais dos ciclos fundamental e médio até os auditórios das universidades. E mesmo no ambiente de companheirismo que se forma nas escolas, cada uma com seus diferentes graus de idiossincrasia, surgem correntes de opinião mais próximas ou mais distantes da sentença: estamos todos condenados a conviver com “isso aí”.
Pois se um secretário de Educação, que deveria ser uma liderança intelectual capaz de compreender os novos tempos e de oferecer estratégias para que ele próprio superasse sua condição de neandertal da cultura, se um sujeito desses propõe substituir livros por power points, como é que professoras e professores vão escapar da sanha de seus patrões.
A GIZ, claro, não vai resolver tudo isso, mas o debate que ela está promovendo neste primeiro número da nova fase, já é alguma coisa… já é uma grande coisa. O espaço da centralidade de professoras e professores no processo pedagógico está em disputa (não só política, mas epistêmica, isto é, uma disputa que diz respeito à natureza das nossas atividades) e sabemos quase tudo sobre o arsenal com que um dos lados comparece nessa queda de braço: big techs, bancos, ministros e secretários… Do nosso lado, temos a força dos argumentos.
Vale transcrever aqui o desfecho da análise feita por Rubem Alves no artigo mencionado acima: uma previsão distópica do final dos anos 60 assinada por Karl Manheim em Ideologia e Utopia sob a suposição de que os vencedores dessa guerra sejam os algoritmos:
É possível que no futuro, num mundo em que nunca haja nada de novo, em que tudo esteja terminado e cada momento seja uma repetição do passado – isto é, o mundo cibernético descrito por Lefebvre -, possa existir uma condição em que o pensamento seja completamente desprovido de elementos ideológicos e utópicos. Mas esta eliminação completa dos elementos transcendentes à realidade em nosso mundo, conduz a uma ‘objetivismo’ que em última análise significaria a decomposição da vontade humana. A desaparição da utopia traz consigo uma estagnação em que o próprio homem se transforma em coisa. Teríamos que enfrentar o maior paradoxo imaginável, ou seja, o de que o homem tendo atingido o mais alto grau de domínio racional da existência, vê-se abandonado por todo o ideal, tornando-se simples joguete do impulso. Assim, ao cabo de um desenvolvimento longo e tortuoso, mas heroico, exatamente no apogeu da consciência, quando a história deixa de ser destino cego e vai se tornando cada vez mais uma criação humana, com o abandono das utopias, o homem perderia a vontade de plasmar a história e, com ela, a capacidade de compreende-la.
Kark Manhein, citado por Rubem Alves em Tecnologia e Humanização (Revista Paz & Terra, n. 8, setembro de 1968)
*J.S.Faro é coordenador editorial da GIZ – professor da PUC-SP
Educação, prática fundamentalmente humana