NOTÍCIA

Entrevistas

Autor

Redação revista Educação

Publicado em 10/09/2011

O professor faz a diferença

Mais do que qualquer outra coisa, a boa educação se traduz por meio de docentes cujo conhecimento possa servir como um elemento de sedução dos estudantes, defende psicanalista italiano radicado no Brasil

Colunista do jornal Folha de S.Paulo desde 1999, no qual escreve todas as quintas-feiras na Ilustrada , o psicanalista e doutor em psicologia clínica Contardo Calligaris nasceu na Itália e vive hoje entre São Paulo e Nova York. Foi professor de estudos culturais da New School, em Nova York, e professor convidado de antropologia médica na Universidade da Califórnia em Berkeley.

Atento aos fenômenos relativos à cultura e com uma formação universalista, Calligaris faz um contraponto a idéias correntes no mundo educacional, como a cultuada parceria escola-família e a valorização da tecnologia. Leia, a seguir, na entrevista concedida ao editor Rubem Barros, como o autor de Adolescência (Publifolha, 1999) e Cartas a um jovem terapeuta (Campus, 2007) analisa algumas das questões centrais da educação e das relações entre a sociedade e os jovens.


Em coluna recente sobre as restrições aos viajantes mundo afora, o senhor diz que "a mentira, num mundo opressivo, é uma forma aceitável de resistência". Isso vale para a educação?


Não necessariamente a mentira, mas a possibilidade de manter áreas de segredo é crucial para qualquer jovem, adolescente ou criança. Não significa que isso tenha de ser criado ou facilitado pelos pais, mas essa possibilidade é crucial. Às vezes, implica também mentiras. Isso se afasta muito de ideais, em especial norte-americanos, em que a questão da transparência e da sinceridade é um valor central há mais de dois séculos, e mentir é um pecado capital.


O senhor concorda com isso?


Salvo nas situações em que a mentira obedece a um julgamento moral, no foro íntimo de um sujeito, com o qual podemos ou não concordar. Esse julgamento moral é mais importante do que as regras estabelecidas. Há uma série de situações em que faz parte da nossa autonomia poder achar que algo pode ser ilegal e justo, ou ilegal e injusto. Normalmente se presume que o que nos parece justo é mais importante do que aquilo que é legal. Isso faz com que, numa série de situações, condutas que podem parecer imorais sejam perfeitamente morais.


Da metade do século passado para cá, a escola deixou de ser tão controladora, ou apenas desenvolveu novos meios de controle?


Uma das coisas opressivas, e hoje mais valorizadas em pedagogia, é a aliança constante entre pais e mestres que, em princípio, e no melhor dos casos, estariam numa espécie de aliança constante, com troca de orientações, encontros regulares, criando uma espécie de time que se ocupa global e coletivamente do devir da criança e do adolescente. Isso é bastante opressivo. Uma separação mais clara entre a casa e a escola deixava margens maiores de liberdade a esses sujeitos.


Por quê?


A possibilidade de poder ser uma pessoa diferente em casa e na escola, de poder estar deprimido em casa e ótimo na escola, ou vice-versa, é suprimida com isso. Acaba sendo uma preocupação que surge em casa e chega aos ouvidos da escola, ou vice-versa. Em um monte de casos essa comunicação é ótima, mas cria a sensação para o adolescente de que ele está vivendo num só mundo. E os adultos não vivem num mundo só. Nossos filhos não são chamados ao nosso trabalho para conversar com nosso chefe. São dois mundos.


Congelado em sua moratória – a adolescência, como o senhor a classifica -, o jovem enfrenta no ensino médio um período conturbado de sua vida escolar e pessoal. Para muitos, o que se estuda não faz sentido. Como se enfrenta esse problema?

Há um lado relativo ao programa, sobre o qual não tenho muito a dizer, pois não conheço bem o programa escolar brasileiro. Mas não me convenço de que essa seja a questão central, nem mesmo a adaptação do programa escolar às mudanças [do mundo contemporâneo], que é de uma lentidão extraordinária. Mas tenho uma opinião quanto ao interesse dos alunos: sempre achei que a única coisa que realmente importa na sala de aula é a qualidade do professor. O resto é balela. Que tenha computador, vídeo, que esteja chovendo, que tenha ar-condicionado, 20 alunos ou 35… Quando penso na minha história escolar, os lugares e os momentos em que aprendi são momentos em que encontrei como professores pessoas fora do comum.


A idéia do mestre…


Não do mestre como alguém que vai me administrar a verdade em partículas, mas de uma figura que seduz, que leva consigo, esse é o sentido etimológico de seduzir. Eu não tinha nenhuma disposição especial para as exatas, fiz maturidade clássica na Itália. No colegial, tive um professor de física muito bom. Quando fui fazer o exame oral de física da maturidade clássica – um exame pesadíssimo, que avalia o programa integral de três anos em todas as disciplinas – o examinador, que nunca tinha me visto, pediu que eu descrevesse uma máquina para medir a transformação de pressão e volume com gases. Não me lembrava do que ele estava falando, e era algo que existia. Tive a cara de pau, graças àquele professor, de falar para o examinador: "Não me lembro, mas, se você ajudar, tento inventar essa máquina". Ficamos meia hora, e inventei algo que "funcionava". Tive nota máxima. E sorte, porque o cara poderia ter dito "dane-se". Mas tive essa cara de pau graças àquele professor, porque era o estado de espírito com o qual a gente falava de física.


Como outros campos, o educacional também tem assistido a uma supervalorização das habilidades e competências, muitas vezes em detrimento do conhecimento, confundido com "conteudismo".


Essa separação entre conhecimento e pensamento é artificial. É verdade que talvez não seja essencial saber quantos ingleses e quantos franceses morreram na Batalha de Azincourt, mas a significação da Batalha de Azincourt é importante. Se você acha que a Batalha de Azincourt aconteceu na Rússia durante a Revolução de Outubro, vai ser complicado pensar na sua significação. Por outro lado, o esforço de memória para se lembrar de quando foi Azincourt é facilitado caso você se apaixone pelo que aconteceu naquele momento. Essas duas coisas andam juntas. O conhecimento é muito mais facilmente assimilado quando está ligado à sua significação o tempo inteiro. E também a significação sem conhecimento, o que seria?


Em alguns países, o ensino superior tem passado a oferecer uma formação mais aberta, com disciplinas de diversas áreas nos primeiros anos, e especializações mais à frente. A universidade está absorvendo as funções que antes eram do ensino médio?


Sim, é o modelo americano que está se difundindo. É a idéia de que, no fundo, você vai para a universidade e faz no mínimo dois anos que são uma continua­ção do colegial, só que num contexto diferente. No caso brasileiro, isso seria bem-vindo, pois o colegial é muito curto em duração e em número de horas, se comparado com o resto do mundo. Um aluno muito bom pode entrar na faculdade aos 17 anos. Além de ser meio absurdo que alguém nessa idade faça uma escolha profissional – tudo bem, pode-se mudar de faculdade depois, o que não é nenhuma perda de tempo -, a idéia de que primeiro você faz o college e depois entra em medicina ou direito é interessante. Mas também poderíamos aumentar o tempo do colegial e o tempo de permanência na escola, que é curto no Brasil. Costumo pensar que, na universidade, os alunos de 1os e 2os anos poderiam ser ensinados pelos de 3os e 4os anos, e que a grande concentração de doutores deveria estar no colegial, com salários adequados.


Como seria isso para os alunos que têm necessidade de entrar logo no mercado de trabalho? Não iria afastá-los do ensino médio?

Mas você produz pessoas mais qualificadas. Quarenta anos atrás, quando me formei, ter terminado o ensino médio era um valor, até no mercado de trabalho. Hoje não é mais, não só porque se multiplicou o número de pessoas que terminam, mas também porque não tem mais a mesma qualidade. Um bom ensino médio melhora a qualidade de experiência de uma vida inteira. Que a pessoa possa ir para a universidade ou que se dedique a uma carreira técnica de qualquer tipo, tanto faz. É uma bagagem que fica com ela. Também é uma grande injustiça social ter um ensino que dura cinco horas. O que isso significa? Que os alunos de classe média e alta à tarde vão para o inglês, à natação, ao balé, à pintura japonesa, carregados para cima e para baixo por avós e motoristas. Os outros estão em casa, com a tia, esperando que a mãe volte do trabalho. Seria muito diferente se o ensino durasse até as 15h30, 16h. A aula de inglês e a de pintura têm de estar dentro do ensino, isso seria muito mais igualitário. Esse igualitário não significa um valor em si, mas sim dar essa possibilidade a todos.


Os casos de depressão e suicídio juvenis hoje são mais visíveis e falados. Por quê?


Segundo os dados, o suicídio de jovens e adolescentes aumentou relativamente pouco, 2%, o que pode ser acidental.


Mas começaram a pipocar casos em colégios de classe média. Isso está relacionado a esse congelamento a que constrangemos os jovens, impedindo-os de assumir sua vida adulta?


É verdade. Mas há um problema importante que tem de ser dito: começamos a medicar os jovens por depressão. Os antidepressivos apresentam um risco de condutas impulsivas, inclusive suicidas, que é real. É pequeno, mas quando acontece com você é muito grande. O manuseio desses remédios é complicado, a interrupção pode ser extremamente problemática, e isso, por certo, entra nessas estatísticas. Essa não é uma medicação com a qual se pode brincar. O uso da medicação na infância e na adolescência deveria ser muito cauteloso, limitado. É óbvio que é preciso saber se a criança poderia ser ajudada de outras maneiras antes de receitá-la. Mas, sobretudo, deve-se saber se a medicação não responde mais à intolerância dos pais em relação à eventual infelicidade ou fracasso dos filhos do que a uma real necessidade deles. O filho pode ser infeliz por muitas razões. Porque não gosta de ser adolescente, o que é compreensível, porque ninguém gosta. Ou porque está gordo e tem vergonha de tirar a camisa, ou porque tem camaradas que o estão tratando mal ou uma menina mandou-o se enxergar. Isso faz parte da vida.


As regras e convenções – lingüísticas, pedagógicas ou históricas – vêm sendo cada vez mais relativizadas. Como a escola, uma instituição que, em princípio, deveria tornar comuns os valores de uma sociedade, pode aliar a existência da norma à necessidade de uma pluralização do olhar?


É possível construir uma vida inteira contra as normas, mas para isso é preciso que haja normas. Caso contrário, não há contra o que se opor. O texto de iletrados, sem conhecimentos da ortografia, não vai ser nunca um Finnegans wake [de James Joyce]. Para escrever Finnegans wake, é preciso conhecer a ortografia e a língua perfeitamente. A partir disso, você faz um texto de vanguarda e tortura a ortografia, a gramática e a sintaxe inglesa. A relação com a norma é absolutamente constitutiva. Isso vale para tudo, para criar, para o conhecimento normativo, para as normas de conduta. A experiência contrária foi feita no fim dos anos 60 e nos anos 70 e se viu que crescer num ambiente totalmente permissivo curiosamente não cria sujeitos dotados de um espírito crítico muito vivo. Só cria sujeitos perdidos.


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