NOTÍCIA
Grau intenso da linguagem, ela sugere reflexões sempre que a relemos. Por isso a relemos
Publicado em 10/09/2011
Primeiro: é uma forma de criação literária, algo feito com palavras. Dizemos muitas vezes que “esse filme é muito poético”, “este quadro tem uma poesia muito grande” etc. A poesia a que nos referimos nesse caso não é a poesia literária. É uma espécie de emoção estética que pode ser proporcionada por outras artes. Dizemos que algo é poético para dizer que aquilo nos toca a sensibilidade e não o intelecto. O vínculo que estabeleceu conosco não foi por meio do entendimento, e sim da afetividade. Nada de errado com esse uso, contanto que a gente não perca de vista que poesia, mesmo, se faz com palavras.
Porque a poesia não quer ser uma vidraça transparente que quanto menos for vista melhor, para que possamos ver algo que existe além dela. Nada disso. A poesia é uma linguagem que quer ser vista, quer ser saboreada, degustada, apalpada, usufruída. Não por exibicionismo, mas porque a poesia é o grau mais intenso da linguagem. Ela exige do poeta uma consciência muito aguda do que escreve, e exige o mesmo do leitor que lê. “Poiesis“, em grego, quer dizer isto: coisa feita com capricho, criação que é fruto da habilidade técnica. A interferência transformadora da ação humana sobre a massa informe da realidade.
Tudo se dá numa escala que vai do mínimo ao máximo. Nossa linguagem cotidiana, de mera troca de informações e redundâncias, é o estágio mais diluído da linguagem. A prosa literária está bem acima dela; e a poesia está por cima de tudo.
Claro que isso varia de autor para autor, de obra para obra, e até de trecho para trecho dentro de uma mesma obra. Há prosadores (Guimarães Rosa, James Joyce) cuja prosa atinge com freqüência um grau de concentração equivalente à da maioria dos poemas.
A poesia precisa, também, de “mais nuances de interpretação”. É uma linguagem alusiva (que se refere a muitas coisas de maneira indireta) e elusiva (que nos escapa por entre os dedos quando pensamos que conseguimos agarrá-la). Daí o desconforto que ela produz em leitores muito apegados à clareza, à precisão, ao sentido único. Ela é o contrário disso. Não porque seja feita de obscuridade, desleixo, falta de sentido, mas por ser feita de zonas entrelaçadas de luz e sombra, e da presença simultânea de noções que se contradizem e se enriquecem. Um poema nos sugere interpretações diferentes sempre que o relemos. E é por isto que o relemos.
Qual a importância de “ritmo” e “repetições” (como rima, repetição organizada de sons) para a poesia?
Primeiro, isso nos lembra a origem oral da poesia. É feita de sons, e temos prazer em manipulá-los como se fossem música. É bom combinar cadências, explorar as sonoridades de vogais e consoantes, fazer com que palavras se associem por som, criando sentidos inesperados. Ritmo é uma simetria auditiva que produz tanto prazer quanto a harmonia visual.
As palavras podem criar imagens vívidas, surpreendentes, marcantes, imagens que valem pelo que têm de imagem. Nada explicam, e parecem nunca parar de nos dizer algo. Por outro lado, o próprio aspecto visual do poema é importante. Quando abrimos a página, a primeira coisa que vemos, antes de ler, é o formato do poema, a mancha gráfica estendendo-se diante dos olhos, antes de decifrarmos a primeira sílaba. Sentimos a presença visual do poema, no espaço da página, antes de saboreá-lo no tempo.
*Braulio Tavares é compositor e autor de livros como Contando Histórias em Versos – Poesia e Romanceiro Popular no Brasil (Editora 34, 2005) e ABC de Ariano Suassuna (José Olympio, 2007)