NOTÍCIA
Físico e divulgador científico defende uma estética que valorize as assimetrias da natureza como mola propulsora da nossa existência, do conhecimento científico e do ensino de ciências
A noção de que a natureza é perfeita não é nada nova e está enraizada nas mais diversas expressões de nossa cultura. Do mito de criação bíblico, passando pela concepção de que o corpo humano é uma máquina perfeita, até teorias físicas que pretendem compreender o universo como um todo, a ideia de perfeição e simetria ocultas no mundo inspira e conforta.
Em sua nova obra de divulgação, Criação imperfeita: cosmo, vida e o código oculto da natureza (Editora Record, 2010), o físico brasileiro Marcelo Gleiser ataca as versões científicas dessas visões tradicionais, argumentando contra a esperança de um universo completamente compreensível pelo ser humano. Nesta entrevista concedida, via Skype, ao repórter Danilo Albergaria, o professor do Dartmouth College, nos Estados Unidos, defende um ensino de ciências fora da sala de aula, que leve os alunos para ver o mundo, abandonando o apelo a uma natureza perfeita: "é o imperfeito que cria as estruturas que observamos no universo, de células a galáxias".
Em Criação imperfeita, o senhor deixa transparecer que a escola não teve um papel importante em sua formação científica. Por quê?
Não foi através da escola que descobri a ciência. Essencialmente, mesmo tendo frequentado uma boa escola, minha educação científica foi bastante tradicional: aquela coisa chata no quadro-negro, com pouquíssimas experiências. Não consigo lembrar, exceção feita ao "feijãozinho no algodão", de nada que realmente remeta a experiências científicas até a 8ª série. Meu interesse pela ciência não veio na escola ou pela escola, mas fora da escola. Quando eu tinha dez anos de idade, tive a sorte de ter sido presenteado com uma edição norte-americana de um livro sobre história natural. O livro era muito bonito, muito bem ilustrado, começava pelo Big Bang, passando pela formação de estrelas, de planetas e da própria Terra, até chegar à existência do homem. Fiquei absolutamente fascinado. Foi só então que comecei a pensar na ciência como uma alternativa de visão de mundo, pois ainda não havia tido esse contato. Somente no ensino médio tive excelentes professores de física que ajudaram a direcionar meu interesse científico. Só então que o aprendizado científico passou a ficar interessante.
Um dos maiores desafios dos educadores é tornar a ciência algo atraente e excitante para crianças e adolescentes, objetivo frequentemente não alcançado. Do seu ponto de vista de cientista e divulgador, como atacar esse problema?
Estou fazendo divulgação científica há mais ou menos 14 anos e percebo que as crianças têm um interesse enorme em ciência. Dou palestras em escolas para várias idades. Há um interesse muito grande com relação ao universo. Me deparo com uma porção de perguntas fascinantes: como o universo começou? Por que as estrelas brilham? Por que o céu é azul? Por que a Lua não cai na Terra? Não há incentivo a esse tipo de questões no modelo tradicional do quadro-negro, da sala de aula, de definições de fenômenos sendo meramente transmitidas aos alunos. Esse tipo de ensino de ciência não dá certo. Antes de começar a ensinar a ciência na sala de aula, é preciso levar as crianças para fora, para o mundo, para a natureza.
Que tipo de aparato é necesssário para isso?
Não precisa ser nada muito sofisticado. Qualquer parque de diversão com gangorra e escorregador pode ser transformado num laboratório de física onde é possível ensinar conceitos fundamentais. O ensino de biologia pode partir da observação de árvores e animais: a natureza é o próprio laboratório. Para ensinar astronomia, as escolas levam as crianças para planetários. Mas poderia haver um trabalho noturno em que as crianças fossem levadas para lugares distantes da poluição luminosa, tornando possível a observação de planetas e estrelas. Deve-se começar a motivação para o estudo da ciência mostrando a natureza para as crianças. De outro lado, é também fundamental que seja contada a história da ciência, mostrar que os grandes nomes da ciência eram homens e mulheres como todos nós. Revolucionários, é verdade, mas humanos. Humanizar o ensino de ciência é algo raramente feito. Se juntássemos esses dois elementos [a atenção ao mundo natural e a humanização da ciência], haveria uma grande explosão do interesse por ciência nas escolas brasileiras.
No ensino de ciências, é muito frequente o apelo à imagem de uma natureza perfeita, ordenada e simétrica para cativar a imaginação de crianças e adolescentes. Como fascinar os alunos sem apelar a isso?
Não há dúvidas de que existem muitas simetrias na natureza: basta olhar para uma flor ou para um floco de neve. E podemos, claro, extrair beleza do mundo. Porém, essa beleza não precisa estar ligada à noção de que a perfeição é bela e a imperfeição, feia. Proponho repensarmos essa estética da natureza e mostrar que o imperfeito é bonito. É o imperfeito que leva à criação de todas as estruturas que observamos no universo, de células a galáxias, passando por seres vivos e estrelas. Tudo isso é produto de imperfeições. Devemos mostrar que a perfeição é sempre aproximada. Não existe nada exatamente perfeito no universo. Tenho certeza de que as crianças, interessadas no motivo de as estrelas brilharem, os buracos-negros existirem e a vida ter surgido, não se importam nem um pouco com essa noção de perfeição. Não vejo a mínima necessidade de justificar que o mundo mereça ser estudado porque é perfeito. A natureza é imperfeita e, por isso mesmo, continuará sendo bela e instigante.
Como foi a sua experiência pessoal de perder a fé no "código oculto da natureza", a unificação das teorias físicas, um objetivo que você buscou por muitos anos?
Foi um processo complicado. Afinal, construímos visões de mundo e expectativas para a nossa vida e tentamos seguir esse caminho. No caso da busca por uma teoria unificada, estive convencido, desde garoto, de que este era o caminho a ser seguido. Mas, aos poucos, comecei a olhar para essas questões de forma diferente. Vi que, infelizmente, as especulações sobre a unificação estavam muito afastadas da razão de ser da física: construir teorias de acordo com dados experimentais. Então, comecei a questionar: será que realmente a natureza tem simetrias ocultas? Será que é esse o caminho ou os experimentos dos últimos 50 anos estão apontando numa outra direção? Em física, o conceito de simetria é extremamente importante, uma ferramenta fundamental. O problema é quando, de uma mera ferramenta descritiva, transformamos a simetria em dogma e passamos a buscá-la oculta em todas as coisas.
E como essa ideia foi posta em xeque?
As expectativas de grandes simetrias foram rompidas na medida em que conhecemos cada vez mais sobre a interação entre as partículas elementares. E as assimetrias que apareceram são muito importantes na determinação do motivo de existência da matéria. É uma questão fundamental: sem matéria não estaríamos aqui. Somos o resultado da assimetria. Talvez estejamos cortejando a musa errada: a questão não seria buscar o Eldorado da simetria perfeita, mas, ao contrário, mostrar como as assimetrias criam as estruturas que enxergamos no mundo.
O senhor argumenta contra teorias que não podem ser refutadas por meio de experimentos. Mas escolher uma "estética cósmica", seja ela perfeita/simétrica ou imperfeita/assimétrica, não significa incorrer no mesmo problema?
É importante esclarecer que não me oponho, essencialmente, à ideia de unificação. Sou contrário à noção de uma teoria final por trás de todas as coisas e à ideia de que podemos construir uma teoria que explique todas as propriedades da matéria e a maneira como todas as partículas interagem. Qualquer unificação que se consiga obter será sempre parcial, nunca uma unificação total das forças da natureza. Há um motivo: o que conhecemos sobre o mundo depende dos instrumentos com que medimos a realidade. Uma estrela ou uma galáxia que estejam a uma distância maior do que é possível enxergar a olho nu podem ser vistas por telescópios. Não enxergamos os elétrons, mas nos aceleradores de partículas podemos detectá-los. Nossos instrumentos abrem janelas para mundos invisíveis. Por meio deles, construímos nossa realidade física. Mesmo que sejam extremamente poderosos, jamais será possível medir tudo o que existe. Nunca conseguiremos obter dados sobre a totalidade da natureza. Portanto, mesmo que se consiga uma unificação das quatro forças naturais que conhecemos hoje, não significa que não possa haver uma outra força, da qual não temos a menor ideia, simplesmente por ela estar além do alcance dos nossos instrumentos.
Seu livro é dedicado ao astrônomo Carl Sagan (1934-1996), que tinha uma crença muito forte na validade universal das leis físicas e na abundância de vida inteligente no cosmos, ideias que o senhor ataca. No final do romance Contato, Sagan chega a cogitar uma inteligência matemática oculta no universo. Como vê essa questão?
Estava esperando um jornalista me fazer essa pergunta. Dei muitas entrevistas e ninguém havia tocado nesse assunto. Fico feliz que tenha sido colocada essa questão, especialmente comentando o final do livro Contato, que me chocou. É a pior parte do livro, completamente dispensável: Sagan cogita que Deus é um matemático através da sequência infinita do número Pi. Para mim, isso ia contra tudo o que ele havia escrito. Por outro lado, a grande maioria do que Sagan escreveu é absolutamente brilhante. Sem a menor dúvida, ele tinha uma grande fé na existência de vida extraterrestre inteligente: a grande cruzada de sua vida foi tentar justificar essa crença. No fundo, era profundamente religioso e, se não acreditava num deus judaico-cristão, via na inteligência extraterrestre uma espécie de divindade. Carl Sagan é, para mim, uma grande influência. Ele tinha uma visão profundamente espiritual da natureza e da ciência. Compartilho dessa espiritualidade, mesmo que discorde das conclusões dele com relação à existência de vida inteligente extraterrestre – que não podemos descartar (seria epistemologicamente errado), mas duvido que seja algo muito comum: se existe, é extremamente rara.