NOTÍCIA
Isabel Lopes Coelho, editora de infantojuvenis da Cosac Naify e recém-premiada em Bolonha, ressalta a importância do diálogo entre inovação e mergulho em referências...
A literatura infantojuvenil vem passando por um grande processo de transformação, com a incorporação de novos conceitos que dão às imagens e ao suporte o mesmo peso do texto. Às vezes, até mesmo maior, pois são cada vez mais frequentes os livros que contam histórias apenas com imagens, e não só para crianças pequenas. Representante de ponta desse processo no Brasil, a editora Cosac Naify recebeu, no mês de fevereiro, o prêmio Novos Horizontes da Feira Internacional do Livro Infantil de Bolonha, Itália – láurea máxima para obras produzidas fora da Europa e Estados Unidos – pelo título Mil folhas, texto de Lucrecia Zappi e pesquisa visual de Maria Carolina Sampaio. O livro traça uma história dos doces mundo afora, fazendo relações entre os intercâmbios culturais e econômicos que influenciaram os caminhos do paladar. Ganhou também menção honrosa por A janela de esquina do meu primo, de Ernest Hoffmann, com ilustrações de Daniel Bueno, prêmios que se somam a duas menções honrosas de anos anteriores para Tchibum!, de Daniel Kondo e Gustavo Borges, e Lampião e Lancelote, com texto e ilustração de Fernando Vilela. Jornalista e mestre em literatura francesa pela USP, Isabel Lopes Coelho, há seis anos à frente da editoria infantojuvenil da Cosac Naify, tem sido parte importante desse processo. Na entrevista a seguir, concedida a Rubem Barros, ela destaca as novas tendências da produção do gênero e a importância do trabalho feito a partir de uma leitura coletiva das obras que tem publicado.
O que significa ser premiado na Feira Internacional de Bolonha?
É um prêmio internacional que traz a sensação de sermos os melhores do mundo. Trata-se de uma feira específica de literatura infantojuvenil, sem equivalência em termos de importância hoje no mundo. Seu júri é muito qualificado, estuda esse gênero literário há muitos anos, tem contato com diversos tipos de livro. Então, a avaliação é a mais honesta possível. Receber o prêmio em Bolonha – e o livro Mil Folhas recebeu “o prêmio”, e não uma menção honrosa – é um orgulho, em especial por podermos proporcionar isso aos autores. Temos uma literatura de muito boa qualidade, que deu um salto qualitativo nas últimas duas décadas, com os ilustradores se envolvendo mais com a narrativa. Começamos a ter uma literatura infantil com muita personalidade e a nos destacarmos em relação a Europa e Estados Unidos, que até então dominavam o nosso próprio mercado. Acredito que a Cosac seja uma das editoras que lideram esse processo, com novos autores e ilustradores, que se unem à nossa expertise de fazer livros de arte. Tudo isso foi reconhecido.
A Cosac teve diversos livros premiados em Bolonha nos últimos anos. Você identifica traços comuns nessas obras? Quais?
São projetos ousados, feitos sem saber qual seria a reação do mercado. Foi um estudo e um trabalho coletivo, um diálogo constante com os autores. Os projetos foram quase que totalmente desenvolvidos aqui dentro, envolvendo editores, designers, produtores gráficos e autores compartilhando as ideias que surgem desse processo. É o que chamamos de projeto experimental. Tanto Lampião e Lancelote (de Fernando Vilela) quanto Tchibum! (Daniel Kondo e Gustavo Borges) tinham essa carga, pois eram muito diferentes do que o mercado estava acostumado a ver. O Mil folhas é fruto desse processo que passamos, de crescer no mercado, com o qual ganhamos experiência como profissionais e no trabalho em equipe. É um projeto casado com a proposta da autora. Envolveu uma pesquisa de imagem muito grande, com cada capítulo sendo personalizado por seu tema.
Pela sua descrição, parece um pouco o processo de trabalho de uma equipe de cinema…
O autor continua sendo a pessoa que tem a palavra final, mas proporcionamos ideias pensadas coletivamente que podem potencializar a sua proposta. Transformamos o que ele intuiu em um objeto real, e damos a ele essa gama de propostas. Temos um departamento de design gráfico, que pensa os projetos com o editor, que conceitua os textos em uma leitura coletiva. Cada pessoa envolvida traz a sua expertise ao projeto a partir desse conceito comum. A produção gráfica traz as ideias de papel e acabamento, o designer traz fontes, formatos, tintas etc., e tudo vai sendo moldado.
Do sucesso inicial do livro infantojuvenil dos anos 70 aos dias de hoje, quais foram as grandes transformações do gênero, principalmente do ponto de vista da linguagem?
Mudou principalmente a relação do ilustrador com o autor, e o papel da editora nessa mediação. Os livros produzidos nas décadas de 60, 70 têm textos muito fortes, autores muito destacados como Ana Maria Machado, Lígia Bojunga, Bartolomeu Campos de Queiroz. Mas nem sempre as ilustrações estão à altura do texto ou trazem algo novo. O texto acaba ficando como ponto de partida para a leitura e a domina. Quando o ilustrador começou a ganhar status de autor, os projetos passaram a ficar mais coesos. Desde a capa, há uma unidade que compõe as partes do livro. E a editora passa a ser uma mediadora e realizadora desse processo.
E em termos de linguagem?
Talvez os temas ou as intenções continuem sendo um pouco repetidos. Ainda existe uma intenção muito grande de que o livro seja uma ferramenta no processo pedagógico, escolar. A partir de 2000, começamos a ver autores que ousam um pouco mais para tentar fazer uma literatura mais autoral, com intenções literárias próprias. Por outro lado, o mercado cresceu muito, tem muita variedade. Surgiram autores novos – e eles às vezes se consagram em quatro ou cinco anos, com muitas obras publicadas. Vivemos hoje um florescimento do mercado, porém, a criatividade e os projetos experimentais acabam ficando setorizados, concentrados em algumas editoras ou em autores específicos.
A literatura infantojuvenil é vista como um gênero específico?
Sem dúvida. Há uma série de sinais que mostram isso. O primeiro e mais óbvio é a setorização nas livrarias. Praticamente todas elas hoje têm uma ala infantojuvenil, normalmente dividida entre infantil e juvenil, e tentam organizar dentro desse nicho o que seriam as suas subcategorias. Outro indício é o surgimento de cursos de pós-graduação sobre literatura infantil. As discussões mais interessantes têm surgido nas universidades, porque antes a literatura infantil vinha sendo tratada ou nos departamentos de teoria literária, de literatura brasileira, ou em literatura comparada. Agora, começamos a ter cadeiras específicas de literatura infantil, o que demonstra uma maior especialização de pesquisadores e professores universitários. Isso também estimula a produção de uma bibliografia especializada.
Ainda há dificuldade, por parte dos professores, de aceitar como literatura as histórias contadas apenas com imagens?
É um conceito vigente e que os próprios livros estão modificando. A complexidade das histórias e das ilustrações tem forçado os professores a entender melhor a imagem, sua relação com o texto. A produção atual, os tipos de livro que têm surgido estão fazendo com que as pessoas se eduquem sobre eles. É um processo recente, as pessoas ainda estão tateando essa nova realidade. No Brasil, isso surgiu há três ou quatro anos, ou pelo menos a consciência de que existe um tipo de livro específico com imagens, que tem de ser tratado de forma diferente.
Como vocês têm trabalhado isso com o público de maneira geral?
A tentativa da editora é
de contribuir para esse processo, e isso foi um ponto de partida para que começássemos a produzir uma bibliografia especializada sobre esse assunto. O primeiro que lançamos foi o Era uma vez uma capa, do historiador e designer inglês Alan Powers, que estuda a literatura infantil inglesa a partir da observação do design das capas, o que já coloca o designer e o ilustrador em um patamar diferente. Já o Crítica, teoria e literatura infantil (2010), de Peter Hunt, tenta desfazer os mitos sobre a literatura infantil, como se ela fosse destinada a um público específico. A discussão da ilustração passa muito por isso, pois ela foi vista durante muito tempo como uma muleta do texto. Os livros mais ilustrados e coloridos eram associados a crianças de faixa etária pequena, em processo de alfabetização, que poderiam associar pela imagem o que o texto estava dizendo. Com os próprios ilustradores começando a criar narrativas com as imagens, essa relação também mudou. Hoje, artistas considerados referências – entre os brasileiros podemos citar Odilon Moraes, Nelson Cruz – têm criado uma relação não redundante entre imagem e texto, e sim narrativas paralelas, ou que expandem a ideia do texto, colocando objetos em cena e situações na imagem que não estão presentes na parte escrita.
Esses livros que começam a constituir um novo campo, o da crítica de literatura infantojuvenil, são de autores estrangeiros. E a produção nacional?
Nossa ideia é de que os pesquisadores universitários, público principal a que se destinam essas obras, as avaliem e vejam como isso é feito fora e como seria uma pesquisa do gênero no Brasil. Certamente, iremos publicar autores nacionais. Essas publicações são um pontapé inicial para que esse tema seja discutido nas nossas universidades e que o próprio objeto de pesquisa seja a literatura brasileira, pois os livros estrangeiros trazem exemplos de seus países. Então, trata-se de um estímulo para esse tipo de produção bibliográfica e também é uma forma de contribuirmos para uma bibliografia que está em construção no exterior e para que o pesquisador brasileiro não fique alienado desse processo, para que entre em contato com as diversas correntes que tratam do tema.
Mil folhas e Lampião e Lancelote, de modos diferentes, juntam o que não está próximo, o que está geográfica e culturalmente distante. Esse tipo de estranhamento instiga o conhecimento?
Sem dúvida. Parece uma coisa muito inusitada, e talvez por isso funcione. Uma das intenções da formação do nosso catálogo é sempre trazer o clássico e aproximá-lo do contemporâneo. Esse diálogo está presente no nosso dia a dia como produção, como processo criativo. Esses dois livros, em especial o Mil folhas, fazem parte de uma coleção que se chama Prismas, que traz temas como os de Tatuagem, piercing e mensagens do corpo, que faz um histórico da tatuagem por um viés sociológico, mostrando desde as primeiras tatuagens e as suas intenções e como isso foi se desdobrando até chegar aos nossos dias. Tem também o livro Mães da rua, que recupera as brincadeiras de rua de uma São Paulo da década de 50. A nossa preocupação é sempre a de resgatar uma cultura, a história, mas em diálogo com o leitor contemporâneo. Em Lampião, história criada pelo Fernando Vilela, colocamos uma parte em cordel e outra que se aproxima duma novela de cavalaria. Isso para identificar os dois personagens. É uma tentativa de alargar o horizonte cultural do leitor, trazendo dois registros literários muito diferentes. –