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Políticas Públicas

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Publicado em 10/09/2011

A exposição do diferente

Campanha contra homofobia traz à tona a questão do preconceito e como lidar com ele na escola; MEC posterga o lançamento

A cena começa com uma jovem assistindo a uma partida de futebol na escola. Ela conta que o sonho do pai é que ela fosse jogadora de futebol, mas que não levava jeito para a coisa. Lembra da primeira vez que foi à escola com as unhas pintadas de vermelho e ressalta que prefere ser chamada de Bianca em vez de José Ricardo, nome que recebeu quando nasceu.  A estudante lamenta que ainda precisa usar o banheiro masculino e diz que ir ao colégio às vezes é um castigo, apesar de gostar de estudar. Bianca afirma que não sabe se conseguirá terminar a escola, mas conta com o apoio de alguns para terminar os estudos e um dia ser professora.

Essa é a história de um dos filmes de curta-metragem que fazem parte do projeto “Escola sem homofobia”, produzido e idealizado por entidades da sociedade civil que representam a população LGBT e organizações de defesa dos direitos humanos. A ideia do Ministério da Educação (MEC),  a partir do diagnóstico de que os professores não sabem como tratar o assunto em sala de aula, era distribuir às escolas públicas de ensino médio kits com cartilhas e vídeos que estimulassem o debate no ambiente escolar e servissem de suporte aos educadores. Mas, antes mesmo de o material ser divulgado setores da sociedade, principalmente dentro do Congresso Nacional, protestaram e ainda tentam impedir que o chamado “kit homofobia” chegue às salas de aula. O material foi concluído ainda no ano passado e, apesar de toda a produção ter sido acompanhada pela Secretaria de Alfabetização Continuada e Diversidade (Secad), ainda continua “sob análise”, segundo informação do próprio MEC. A pasta sinaliza que ele chegará às escolas no segundo semestre de 2011.

As reações a respeito do material já eram esperadas, conta Maria Helena Franco, da Ecos – Comunicação em Sexualidade, coordenadora do projeto dentro da organização especializada em trabalhar os temas dos direitos humanos e sexualidade com o público jovem. Segundo ela, alguns setores da sociedade, como a bancada religiosa do Congresso Nacional, se sentem “ameaçados” porque não querem que a escola trabalhe a temática. O deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ) – sim, ele mesmo – personificou a polêmica ao subir à tribuna da Casa para atacar o projeto que, segundo ele, é uma “apologia ao homossexualismo”.

“Esse tipo de posição demonstra total ignorância sobre o assunto porque ninguém se torna gay ou lésbica porque leu um folhetim. O que se está em questão no material é o respeito ao direito do outro de ser diferente. A questão da homofobia e a problemática toda já estão na escola”, afirma Maria Helena. A Ecos foi a responsável pela elaboração do material, em parceria com a rede internacional Global Alliance for LGBT Education (GALE), a ONG Pathfinder do Brasil e a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT). O projeto incluiu seminários regionais e capacitação para docentes da rede pública. O kit acompanha cartas de apresentação aos diretores, três peças audiovisuais e um caderno para o professor com informações sobre o que é a homossexualidade e sugestões de atividades para abordar o assunto em sala de aula. A previsão inicial era que fossem distribuídos 6 mil kits.

Exclusão e evasão
Pesquisa da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP) de 2009 apontou que nas escolas públicas brasileiras, 87% da comunidade – sejam alunos, pais, professores ou servidores – têm algum grau de preconceito contra homossexuais. O levantamento foi realizado com base em entrevistas feitas com 18,5 mil alunos, pais, professores, diretores e funcionários, de 501 unidades de ensino de todo o país. Outros estudos mostram um cenário semelhante: a socióloga Miriam Abromoway também investigou o tema entre alunos do Distrito Federal. Entre os 10 mil entrevistados, quase 30% não queriam homossexuais como colegas de classe – e o índice era maior entre alunos menores de 11 anos.

Para Toni Reis, presidente da ABGLT, todos esses diagnósticos reforçam a necessidade urgente de trabalhar a temática nas salas de aula. “A grande consequência desse problema – e a mais grave – é a evasão escolar. Eles acabam desistindo de estudar porque quando você é rejeitado pela sala de aula, não tem incentivo. O material vem ajudar para que as pessoas não fiquem inseguras, trabalhar a autoestima dos adolescentes LGBT para que possam viver bem no ambiente escolar”, defende.  A entidade foi buscar apoio de outras organizações e obteve o parecer favorável ao kit da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), do Conselho Federal de Psicologia e do Programa das Nações Unidas para HIV/Aids (Unaids). Mesmo com essas sinalizações positivas, o MEC mantém silêncio sobre a aprovação do material e a futura distribuição.

Lacuna
A dificuldade da escola em lidar com a homofobia  – e com todos os assuntos que envolvam a diversidade  – é um espelho daquilo que a sociedade pensa. A psicóloga e especialista em sexualidade Claudiene Santos, da Universidade Federal de Sergipe (UFS), já ministrou capacitações a professores da rede pública sobre homofobia e direitos humanos. Ela lembra que alguns docentes abandonaram o treinamento logo após o primeiro dia pela incapacidade de aceitar o tema. Outros não sabiam que estavam prejudicando um aluno quando faziam vista grossa diante de uma manifestação homofóbica.

“Há uma invisibilidade dentro das escolas por causa do preconceito e o primeiro erro é não reconhecer essa diversidade. A escola está enfrentando diversas formas de violência e perdida, sem saber o que fazer, quando ela é na verdade um espaço privilegiado de promoção dos direitos”, afirma. Claudiene diz que a fala recorrente dos professores é de que não sabem como tratar o tema, seja porque não receberam formação adequada ou mesmo por falta de informação sobre o assunto.

A professora de geografia Bruna Lourenço saiu há pouco da universidade e começa a perceber as lacunas de sua formação em relação a esse e outros assuntos práticos do dia a dia da escola. Licenciada pela Universidade de Brasília (UnB) encara agora turmas dos últimos anos do ensino fundamental de uma escola pública do Distrito Federal e diz que não se sente preparada para agir da forma correta quando o problema aparecer.

“Esse é um assunto um pouco velado porque na idade em que eles estão ainda estão definindo a sexualidade. Quando um aluno chama o outro de `veadinho`, isso ainda é visto como brincadeira. Volta e meia essa piadinha acontece e em geral o agredido se defende de forma bem pejorativa. As relações vão se deteriorando”, conclui a professora.

“Tudo ainda é muito novo para mim. Não sei como agir, o jeito de falar, de interferir em uma situação e amparar o aluno. Na faculdade nunca discutimos isso, são coisas que a gente só descobre na hora”, completa.

A família em livros
Nos livros didáticos, a temática também fica esquecida. Pesquisa do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis) avaliou 67 das 99 obras mais distribuídas pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), responsável por fornecer os materiais a todos os estudantes da Educação Básica da rede pública. O estudo identificou que as comissões formadas pelo MEC para selecionar as obras conseguem impedir que conceitos discriminatórios cheguem até aos alunos, uma vez que a análise não constatou a presença de injúria à população LGBT. Mas a diversidade sexual é esquecida: uma família é retratada, por exemplo, sempre por um pai, uma mãe e um filho. Praticamente não há mães solteiras
, muito menos um núcleo familiar comandado por
dois pais.

Para Maria Helena, da Ecos, a função do  chamado kit homofobia é justamente dar apoio aos professores e indicar os caminhos para essa abordagem. “Muitas vezes a gente vê que a escola poderia ter uma atitude simples de discutir o assunto, conversar sobre o que é isso. As pessoas precisam de conteúdo e informação e o caderno do professor no kit vem para suprir isso”, defende.

Ex-professor de ensino médio e hoje vice-diretor de uma escola localizada na periferia de Brasília, Luiz  Eugênio de Brito acha que a maioria dos educadores sabe sim intervir em uma situação de conflito, mas avalia que qualquer material de apoio é bem-vindo para ajudar a trabalhar a temática.

“Tenho uma preocupação apenas com a obrigatoriedade. O material de apoio deve ser utilizado nas situações em que o preconceito se manifesta, se você não tem o problema instalado, o melhor seria não ser utilizado”, acredita.

Segundo Brito, a escola dele já realiza um trabalho sobre direitos humanos em que a temática é abordada. “Esse assunto dos direitos humanos e da aceitação das diferenças já é tratado; nas escolas públicas  só o que a gente tem é a diferença, ela é a grande matéria-prima do nosso trabalho”, afirma.

Seja de qual lado estejam as posições, todos concordam que o assunto já está posto no dia a dia dos estudantes. “Sou professor de biologia e toda vez que vamos trabalhar aparelho reprodutor esse assunto aparece. É impossível não falar. O importante é que se fale de uma forma em que se consiga desenvolver atitudes de aceitação e acolhimento”, diz Brito.

Fica a questão sobre como e quando a escola vai tirar os preconceitos de debaixo do tapete. “O assunto ainda é sim um tabu, mas penso que com  as ações da sociedade civil e até mesmo do governo temos visto mudanças. Está mudando, mas a passos lentos. A escola pode ser um espaço de mudança cultural, mas também de legitimação e reprodução dessas assimetrias que existem em relação à diversidade”, aponta Claudiene.

Resta saber se, para que o professor aja diante das situações que surgirem em seu dia a dia, precisará sempre de cartilhas que queiram, de antemão, definir as situações que podem acontecer na escola e as reações “adequadas”. Se usado dessa forma, o material compartilhará o pressuposto de vários outros, que veem no docente um reprodutor de ideias preestabelecidas. Bastaria que ele mudasse a fonte de sua “inspiração”.


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