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Entrevistas

Autor

Redação revista Educação

Publicado em 10/09/2011

É preciso pensar

Presidente das versões mundial e latino-americana da Campanha pelo Direito à Educação alerta para o teor mecanicista embutido na proposta educacional do Banco Mundial


Em abril deste ano, o Banco Mundial lançou a estratégia que pautará suas ações para a área de educação até 2020. Intitulado “Aprendizagem para todos: Investimento no conhecimento e nas habilidades das pessoas para promover o desenvolvimento”, o documento representa uma mudança de paradigma, já que a estratégia anterior, batizada de “Educação para todos”, buscava a universalização do ensino. Agora, as diretrizes do Banco Mundial, que já investiu US$ 69 bilhões em educação no mundo desde 1962, envolvem o que os indivíduos aprendem, dentro e fora da escola, da etapa pré-escolar até a chegada ao mercado de trabalho. As novas propostas foram recebidas com preocupação por Camilla Croso, atual coordenadora-geral da Campanha Latino-americana pelo Direito à Educação (Clade) e recém-eleita presidente da Campanha Global pela Educação (CGE). Mestre em Políticas Sociais e Planejamento de Países em Desenvolvimento pela London School of Economics, Camilla afirma que não é possível separar o conceito antigo de “Educação para todos” do novo “Aprendizagem para todos”. “É uma falsa dicotomia. Defendemos a educação como um direito humano e estamos preocupados com a plena realização do direito à educação”, defende. Em entrevista concedida a Rubem Barros e Beatriz Rey, ela aponta, a partir do que se depreende do documento, uma visão mecanicista das práticas docentes e da aprendizagem dos alunos. Para a ativista, é fundamental resgatar o diálogo, o pensamento crítico e a imaginação no âmbito da educação.

Quais os aspectos positivos e negativos do documento apresentado pelo Banco Mundial?
O que vale a pena ressaltar são os elementos preponderantes dessa estratégia, que valerá até 2020. O Banco centra o foco no que chama de “aprendizagem para todos”. Explicitamente, está deslocando o foco de “educação para todos”, da proposta anterior, para “aprendizagem para todos”. Há muitas implicações e muitos subtextos em torno disso. Com esse deslocamento, todo o documento passa a centrar-se em resultados, ou no que eles chamam de outputs . O argumento é que, por muito tempo, o foco dos Estados foi no que entrava em termos de insumos (ou inputs ) e ninguém se preocupava com o que saía, com os resultados.

Quais são as implicações do foco em resultados?
Há várias. Uma delas é que, atrelados a essa concepção, estão os sistemas de monitoramento e de avaliação (principalmente de alunos e de professores), para que se possam aferir resultados. Somos críticos à nova proposta porque, primeiro, consideramos uma falsa dicotomia separar o conceito de “educação para todos” do de “aprendizagem”. Como defendemos a educação como um direito humano, estamos preocupados com a plena realização do direito à educação que, segundo a ONU e os marcos referenciais de direitos humanos, inclui quatro grandes dimensões: disponibilidade, acessibilidade, aceitabilidade e adaptabilidade. O último conceito implica a escola responder a seus alunos e não vice-versa. Significa você reconhecer a pluralidade e não ser uma escola homogeneizada. O direito à educação se realiza quando se atingem essas quatro dimensões.  Há uma ausência de enfoque em direitos humanos nesse documento. Quem defende o direito à educação está preo­cupado com a aprendizagem e com os resultados, mas tem um enfoque muito mais holístico.

O documento fala em apoiar políticas embasadas em evidências científicas, mas não é possível dizer que essas evidências estão sujeitas a usos e vieses variados?
Cada vez mais, o Banco Mundial, instituições financeiras multilaterais e a cooperação internacional falam em políticas baseadas em evidências científicas. O Banco Mundial é um grande líder, puxa muitos conceitos e paradigmas. A história das evidências já tem quase um nome ( evidence-based ), já é um conceito. Há uma necessidade de problematizar essa questão porque, de fato, esses atores tendem a capturar a “ciência”. Falo entre aspas porque quando se prova o que se quer, quando tudo é passível de prova, isso é pseudociência. O Banco Mundial “tecnifica” e neutraliza o argumento porque diz que a ciência é neutra, mas não há nada de neutro – nem por trás da ciência e nem por trás do Banco. Ele se quer e se apresenta como neutro, mas é tudo menos isso, já que tem proposta, aposta e incidência política. Participamos de um seminário no Equador, no qual discutimos sistemas de monitoramento e avaliação, e avançamos um pouco na ideia de formas de conhecimento mais coletivas, produtos de reflexões e interpretações coletivas. Quando veio recentemente ao Brasil, Peter Moss, especialista em educação infantil, disse exatamente isso: o que temos são pontos de vista e interpretações na área de humanas. Por trás dessa suposta neutralidade, há grandes paradigmas.

Será que cabe falar em soluções universais voltadas a diferentes rea­lidades, como aponta a estratégia do Banco?
O Banco Mundial vem com esse estilo há muito tempo. Nesse documento, categoriza os países em três grandes blocos: os “muito pouco” desenvolvidos, os “médio” desenvolvidos e os “pouco mais” desenvolvidos. Ele trata do que chama de mundo de desenvolvimento e propõe soluções padronizadas para cada um dos blocos. Tudo, não só educação, acontece em um determinado tempo e espaço. Nós, da Clade, falamos cada vez mais em georreferenciar os debates e contextualizá-los historicamente. Quando discutimos educação, temos de tomá-la em seu contexto. A adaptabilidade, a quarta dimensão que mencionei anteriormente, contrapõe-se a esse sistema homogêneo. Ela diz o contrário: é preciso reconhecer os sujeitos, estudantes e professores, e a escola deve responder a eles. A escola os reconhece como sujeitos e, portanto, adapta-se.

Mas não é necessário ter um mínimo comum dentro dos sistemas educacionais?

Acredito que há um mínimo comum que deveríamos abraçar. Apostamos em discussões públicas, de maneira que, a partir de um debate com a sociedade, possamos chegar ao que achamos, coletivamente, que devam ser os parâmetros referenciais aos quais a educação deveria responder.

No que diz respeito ao currículo, a ausência de um mínimo comum causa algumas complicações. Uma delas é a elaboração de manuais prescritivos para os conteúdos que devem ser ensinados, já que não há referencial para os docentes.
Temos de partir da premissa do professor como um pesquisador também. Gosto muito da ideia existente na universidade pública, que é a tríade pesquisa, ensino, extensão. Isso se aplica a todos os docentes. O professor é absolutamente investigador, ele problematiza, responde ao que está acontecendo na sala de aula. A prescrição impede o pensamento. Vi uma matéria do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) que questionava a necessidade de ter o professor. Eles lançaram a notícia de que os alunos aprendem mesmo sem o professor, só com a tecnologia. Por trás disso, há uma mensagem enorme. No limite, ou você tem um professor que é um robô ou você quase não precisa do docente. Nós nos opomos completamente a isso.

Isso exclui a dimensão social da educação…
É uma coisa mecânica e não pensante. Resgatar o pensamento crítico como um tema central na educação é absolutamente fundamental. A nossa principal crítica à maneira com a qual o Banco vem discutindo educação é o ponto de partida deles. Educação para quê? Eles di
zem que a educação é um investimento es
tratégico de desenvolvimento. Ela prepara para o mercado de trabalho e ajuda as pessoas a se adaptarem às novas tecnologias. Serve para que os jovens adquiram as habilidades para o mercado. Enfim, para eles a educação é utilitarista e serve para responder a um mercado de trabalho. Todo modelo de escola e de avaliação orbita a partir dessa premissa. No modelo de avaliação deles, o suprassumo de indicador de impacto é a porcentagem de países com ganhos em níveis de competência da sua força de trabalho. A educação responde a isso, mas extrapola essa questão. É um tema para a paz, para a democracia, para o desenvolvimento pleno do ser humano. O pensamento crítico, o pensar, é central dentro da educação. Toda essa questão homogeneizante impede o pensamento. É o paradigma da escola como fábrica. Você tem os inputs, os outputs e os testes de qualidade. O que eles esperam como resultados? Pessoas que se adaptem a esse mercado de trabalho. Eis o parâmetro dessa medição. A perversão desse sistema é que, como eles articulam os resultados ao acréscimo de salário ou a um investimento maior do Estado dependendo das notas das escolas, gera-se um processo que faz com que todas as escolas e os professores se adaptem a isso. Esse modelo termina induzindo o currículo.

Esses sistemas não acentuam mais as desigualdades sociais?
O caso do Chile, que é tido pelo Banco Mundial como modelo, demonstra que quando se usa a lógica de prêmio e castigo, gera-se uma desigualdade. Tanto entre escolas quanto entre professores. Se uma escola se posiciona melhor do que outra em um ranking, recebe mais investimentos. Isso só aumenta a brecha. Ficamos surpresos ao saber que o Equador também está aplicando isso. Se o docente vai bem no teste padronizado, recebe um bônus de, por exemplo, R$ 1 mil a mais. Se apresenta desempenho mediano, ganha R$ 500 a mais. Se vai mal, a presidente do sindicato dos professores diz que eles são mandados embora. Acreditamos em sistemas de avaliação. Ninguém tem medo de avaliação como instrumento de aprendizagem, ou seja, avaliação que faça diagnósticos para que se aja em cima deles. É preciso encaminhar, e não castigar e premiar. Se o professor está tendo uma dificuldade, deve ser ajudado. A pessoa responsável pelo Ministério da Educação do Equador disse que eles estão fazendo os testes para ver como os docentes estão e aferir as necessidades deles. Eu perguntei a ela: mas vocês dialogam com os professores? Há canais de diálogo?

Existe um modelo de avaliação docente menos perverso?
Não conheço. Acabamos prestando atenção no que está acontecendo no outro sentido, porque avaliação é “o” tema. É uma grande pauta latino-americana e mundial que está aparecendo com muita agressividade. O Banco Mundial vem com muita força e está em muitos países. Vem com o argumento da ciência, que é muito forte. O que me preocupa é que agora o Banco vai desenvolver os sistemas de avaliação (ou o que chama de tools).­ Esse documento é só o ponto de partida. A partir disso, começarão a desenvolver os testes.

Significa que há certa supressão do professor na educação…
No limite, o lugar do professor aqui é muito pequeno, tendendo à substituição. Eles não escrevem isso no documento mas o BID aponta para isso. Eles citam um especialista que fala: “um professor que a máquina pode substituir deve ser substituído”. Para mim, esses sistemas inibem o pensamento e tendem a conceber o ser humano como uma máquina. Eles desumanizam o ser humano.

Se o mercado de trabalho é cada vez mais mutante, esse modelo de escola não formará pessoas pouco capacitadas para o que se precisa?
A própria proposta não atende ao que ela supostamente quer atender. Essas escolas formam uma classe que, na verdade produz mão de obra simples. Quais são as capacidades que respondem a um mercado tão mutante? Em Retos de la educación en la modernidad liquida (Desafios da educação na modernidade líquida, ainda não traduzido para o português), Zygmunt Bauman diz que, cada vez mais, as pessoas vão a um supermercado e compram pequenos pacotes que correspondem a pequenas necessidades de um mercado flutuante. Fico preocupada com a imagem de escola que o Banco Mundial tem no longo prazo. Em 2020, eles talvez proponham outra coisa, como centros de competência, e não mais escolas. Nesse documento, já é apresentado um novo conceito de sistema educativo. Para eles, o sistema vai além da escola comum. É tudo e qualquer coisa, formal, informal e não formal, que aponte para responder a essas competências do mercado de trabalho. Essa visão de escola não favorece o pensamento crítico e a imaginação. É um modelo de robotizar e de amansar, de certa maneira. Nesse sentido, o abandono da escola que temos na América Latina, onde menos de 50% dos jovens concluem a etapa secundária, é um grito de resistência. Os jovens não querem se robotizar. No Uruguai e na Costa Rica, dois países em que a questão econômica não é tão gritante quanto em outros países do continente, o nível de abandono é alto. A evasão responde, do nosso ponto de vista, a uma escola que não dialoga com os alunos.

Como é a interação com o Banco Mundial?
Como presidente da Campanha Global pela Educação, vamos responder formalmente ao documento. Como Clade, não pensamos em fazer uma resposta. Temos de dialogar com o Banco Mundial, de apresentar nossas preocupações de forma embasada e olhar de igual para igual. É preciso questionar as tais evidências científicas e interagir com eles no sentido de pautar nossas preocupações. O Banco Mundial se atribui diversas funções e se diz neutro, quando, de fato, está tendo um papel gigantesco nas políticas públicas. É preciso achar um lugar para o Banco no mapa dos atores sociais. Como? Fortalecendo o papel e a autonomia dos Estados e da sociedade civil. A gestão democrática é um ponto-chave nisso porque cria a oportunidade de ter mecanismos de debates públicos para que aquelas políticas atendam e respondam a um bem comum. Assim, o jogo de poder se refaz. No momento, o Banco Mundial tem liderança e legitimidade, mas precisa encontrar outro lugar.

Qual o tamanho da presença da instituição hoje na educação mundial?
São líderes. A iniciativa “Educação para Todos”, que começou em 1990 e foi atualizada em 2000, é “a” iniciativa no âmbito internacional. É o paradigma que coordena as agências da ONU, a Unesco e o Unicef. Na minha opinião, a mudança de nomenclatura é também uma maneira de deslocar o “Educação para Todos” e de se tornarem solistas.  O “Educação para Todos” é multilateral, mas esse documento é deles. Os termos learning, results já viraram pauta de todas as agências. Isso permeia as agências de cooperação bilaterais, que incorporaram esse linguajar. Ele é sedutor. Você vai negar que quer que as pessoas aprendam? No Brasil, não acho que a estratégia paute, mas esse clima acaba chegando. E as estratégias do Banco estão ficando cada vez mais conservadoras. O documento menciona parcerias público-privadas. Está na fala de todo mundo.


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