NOTÍCIA
A agressão física e psicológica praticada por professores é um fenômeno que exige mais atenção por parte dos currículos de formação
“E quando é a professora que comete bullying?” Esse é o título de um post no blog pessoal da jornalista Leonor Macedo, no qual ela narra o dia em que o filho de 9 anos chegou em casa contando que a professora havia chamado, diante de toda a sala, um colega de “menininha”. O motivo? O garoto estava escrevendo “cartas de amor”. “Ih, fulano! Tá escrevendo essas coisinhas é? Tá virando menininha?”, teriam sido as palavras da professora. Dias depois, a jornalista foi à escola do filho questionar a professora sobre o assunto. Ela negou ter dito isso, mas a desconfiança permaneceu e rendeu a história que está contada no blog eneaotil.wordpress.com.
Afinal, quão grave é uma professora chamar um aluno de 9 anos de “menininha”? Será que se expressar dessa maneira é tolerável dentro de um contexto que reproduz – ou até amplifica – os conflitos do cotidiano? Para muitos pais, isso poderia passar despercebido, mas para pesquisadores do tema, uma ofensa do tipo – em uma escola particular de um bairro de classe média da capital paulista – mostra que a violência psicológica ou simbólica (e em alguns casos, física) é muito mais presente do que se imagina no dia a dia da escola.
Na Universidade Estadual de São Paulo (Unesp) de Araraquara, a professora Marilda da Silva conduz uma pesquisa que traz à tona novos elementos sobre a questão da violência em ambiente escolar. Desde 2004, como um exercício de aula, ela recolhe histórias de escolarização de seus alunos do curso de pedagogia. São relatos de toda a memória que eles têm desde o primeiro dia de aula na educação infantil até o ingresso na faculdade. A intenção é fazer com que os futuros professores percebam como a didática foi vivida enquanto eram alunos e como poderá ser quando chegarem ao mercado de trabalho. Em geral, são de 80 a 90 histórias por ano. Os autores têm em torno de 20 anos e, em sua maioria, são de classe média e oriundos de escolas públicas. Um traço comum a todos os textos, no entanto, chamou a atenção da pesquisadora: o relato de violência cometida pelo professor contra o próprio aluno ou, pelo menos, cometida contra colegas e presenciada em sala de aula. “A violência (por parte dos professores) está presente em 100% dos relatos. E mesmo que tenha acontecido com um colega, foi forte a ponto de o aluno se lembrar disso e relatar”, diz.
Marilda cita casos de violência física (jogar apagador no aluno, esfregar a cabeça na carteira), mas a maior parte das ocorrências é de violência psicológica, em que o professor se vale do poder simbólico para xingar e humilhar alunos. Isso envolve preconceito de classe, de etnia, de gênero e de orientação sexual. “Geralmente acontece numa relação em que o aluno não sabe o conteúdo”, conta. Com os relatos de violência em mãos, o passo seguinte foi mapear a produção bibliográfica sobre o tema em teses e dissertações. A pesquisadora, com a ajuda de duas orientandas, levantou 219 pesquisas sobre violência escolar produzidas no Brasil no período entre 2001 a 2009. Desse total, apenas 11 (ou cerca de 5% da produção) tratavam da violência por parte do professor. “A produção de conhecimento está priorizando o agente aluno como responsável pela violência escolar”, ressalta.
De casa
A alta incidência de relatos de violência por parte de professores não surpreende Marcia Oliveira, coordenadora da campanha “Não Bata, Eduque”, rede criada em 2005 e que envolve diversas entidades em prol dos direitos das crianças e contra os castigos físicos e humilhantes. “É muito mais fácil colocar o foco no aluno, mas a escola é um ambiente historicamente violento e repressor”, diz. Além disso, o comportamento em ambiente escolar seria uma reprodução do comportamento que esses mesmos professores têm em casa. “Provavelmente muitos professores repetem o que fazem com os próprios filhos. Como bater para educar é muito natural, eles acabam reproduzindo, principalmente na educação infantil”, observa.
O uso da violência para disciplinar ou repreender o aluno é cada vez menos tolerado na sociedade. Embora a rede “Não Bata, Eduque” defenda que haja instrumentos legais específicos para esses casos, a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990, foi um passo importante para reduzir a possibilidade de castigo físico na escola. Apenas para ilustrar essa mudança, hoje há um consenso de que usar a palmatória ou fazer a criança ajoelhar no milho como castigo não são mais práticas aceitáveis – diferente do que acontecia há 40 anos. Sandra Machado Lunardi Marques, do grupo Formação de Professores e Cotidiano Escolar, da PUC-SP, explica que a violência “autorizada” passou a não ser mais tolerada dentro de um contexto histórico que começou no movimento da Escola Nova, na primeira metade do século passado, e atingiu seu auge na década de 1960 com a tese da “pedagogia não repressiva” (uma das bandeiras dos movimentos populares de maio de 1968).
O autoritarismo escolar foi retratado no cinema em ambas as épocas. Em 1933, Jean Vigo filmou Zero em comportamento, que abordava a revolta de garotos de um colégio interno contra a disciplina severa da instituição. Vinte e seis anos depois, François Truffaut produziu Os incompreendidos, cuja tônica era a mesma: a rebeldia infantil contra a opressão adulta. “O termo ”pedagogia não repressiva” adquiriu um sentido amplo que envolveu desde o repúdio aos castigos físicos, às cátedras universitárias, aos currículos tradicionais, aos métodos de ensino e sistemas de avaliação, até aos novos temas que mobilizavam a juventude. Criou-se um consenso contra os castigos físicos e a violência em geral, o que não significa que seja fácil coibi-la na prática”, explica.
A pesquisadora afirma que o dever da escola não é reproduzir a violência, mas oferecer segurança e proteção para que o trabalho educativo se desenvolva. “Esta condição não é garantida com muros altos, instalação de câmeras internas e externas ou colocando um policial em cada entrada”, continua. Para ela, a escola hoje é um cenário de enfrentamentos, e a polarização entre professor e aluno é mais um entre outros conflitos que permeiam esse ambiente. “Existe uma violência institucional que flagela alunos e professores”, diz, citando, por exemplo, as condições inadequadas de trabalho, a rigidez das normas internas ou as problemáticas relações hierárquicas.
Questão aberta
Os incompreendidos, de François Truffaut: retrato do autoritarismo escolar |
Saber como lidar com a violência praticada pelos professores está longe de ser um tema pacífico. Cenas de agressão contra docentes, depredação do patrimônio, brigas entre alunos e o bullying, tema da moda, estão presentes nos noticiários e é comum encontrar quem defenda rigidez ainda maior dentro da escola. Por isso, observa Marilda da Silva, nem sempre está claro para o próprio professor quais são seus limites. “Chamar um aluno de ”menininha” é uma humilhação. Jamais um professor poderia fazer isso, ainda mais nessa situação de contato com a leitura e escrita”, diz. O mesmo vale para xingamentos como “burro” ou dizer que o estudante “nunca vai ser nada na vida”. Para Marcia, do “Não Bata, Eduque”, há uma regra básica para definir o que deve e o que não deve ser aceito na relação professor-aluno: “a premissa é não tratar o outro como você não gostaria de ser tratado”.
Marilda acredita que agora é preciso desdobrar a questão da violência docente e tentar examinar as causas desse fenômeno, inclusive para saber em que medida o aluno violento não seria um produto dos próprios conflitos vividos dentro da escola. “Os dados da pesquisa não são para ”incriminar” o professor, mas para mostrar como a profissão docente é tensa e desgastante. Todos sabem o que precisa ser feito: melhores salários, melhores condições de trabalho, mas acho importante olhar para além do aluno como problema”, afirma a professora.
O currículo dos cursos de pedagogia e formação de professores também deve estar preparado para abordar essa questão de maneira mais abrangente. “A complexidade e gravidade da violência escolar está exigindo dos pesquisadores um novo paradigma para a formação dos professores que os prepare para a discussão e enfrentamento dos problemas educacionais conjuntamente”, ressalta Sandra Marques, da PUC-SP. Para ela, a questão da violência deve fazer parte dos estudos dos futuros professores, assim como discussões mais próximas da sociedade atual e da vida de crianças e adolescentes nas grandes cidades. Também a abordagem em relação à violência não deveria ser tratada como algo pontual, mas sim como um fenômeno presente nas relações entre alunos, professores e funcionários.
De acordo com Marcia, também é um erro acreditar que os professores violentos estejam nas escolas de regiões mais violentas, e isto deve ser levado em conta ao se elaborar estratégias para combater o problema. “A violência é bem democrática nesse sentido, não escolhe classe social. Se há uma diferença, é que as famílias pobres buscam mais a polícia ou o posto de saúde (caso o filho seja agredido na escola), enquanto os mais ricos procuram um psicólogo e mudam o filho de escola”, observa. Ela afirma que soluções pacíficas de resolução de problemas, como a mediação de conflitos (abordada na edição 173 de Educação), têm dado muito mais resultados para abordar questões disciplinares. “Mesmo pais agressores usam a desculpa de que bateram para educar, mas temos certeza de que há mil outras maneiras de educar”, conclui.