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Entrevistas

O fator social

Sociólogo francês Bernard Lahire defende que só há uma maneira de fugir do fracasso escolar: instituir políticas que modifiquem o ambiente das crianças com estruturas familiares frágeis

Publicado em 30/04/2012

por Lúcia Müzell

Discípulo de Pierre Bourdieu, o sociólogo francês Bernard Lahire se dedicou, ao longo de sua trajetória, à análise das causas do sucesso ou do fracasso escolar, sobretudo nas classes populares. A pesquisa sobre o tema originou o livro Sucesso Escolar nos meios populares (Ática, 2004), uma de suas obras traduzidas no Brasil. Para ele, a chave de uma boa educação está no meio social que cerca a criança – um ambiente que extrapola a própria família. Em entrevista a seguir, Lahire defende dois caminhos para que alunos provenientes de classes populares fujam do fracasso escolar: encontrar ajuda eficaz da escola ou buscar apoio extrafamiliar, com vizinhos e amigos, por exemplo. O sociólogo é categórico: não há ponto de salvação para uma criança além de seu ambiente social. “Quem pensa que o aluno pode encontrar ‘em si mesmo’ as forças para sair do fracasso escolar, contra ventos e marés, está redondamente enganado”, afirma. Professor da Escola Normal Superior de Lyon, Lahire acredita que essa “solidão” à qual o aluno está submetido só será extinta com a instituição de políticas que modifiquem o ambiente das crianças com estruturas familiares mais frágeis.

© Emmanuelle Marchadour

O ambiente familiar pode explicar o fato de uma criança ter sucesso escolar e a outra não, quando ambas vêm de um mesmo bairro de classe média baixa, têm a mesma condição econômica e social de vida, frequentam a mesma escola e têm os mesmos amigos?
As causas do fracasso ou o sucesso escolar são eminentemente sociais e a família está no centro dos problemas. Mas o caráter social destes problemas faz com que eles não se reduzam às características do meio familiar. Sabe-se  que um aluno que vem de uma família na qual o capital cultural se destaca tem mais chances de ter um bom percurso escolar. Mas se entramos nos detalhes de experiências individuais, veremos que as crianças com bom desempenho são as que conseguiram encontrar apoios (escolares ou extraescolares) para dar um sentido à escola. Esse apoio é forte e evidente quando os pais têm capitais culturais consolidados e disponibilidade para passá-los aos seus filhos. Entretanto, pode acontecer de a criança conhecer outras pessoas em que essas características se fazem presentes – são as chamadas experiências extrafamiliares.  Isso explica o fato de que pais com forte capital cultural podem ter filhos com dificuldades escolares quando as condições não estão reunidas para transmitirem os capitais que portam, ao mesmo tempo que pais com fraco nível cultural podem ter filhos estudiosos.

O meio social extrafamiliar pode, então, mudar a trajetória de uma criança que cresce em uma família de baixo capital cultural?
Foi exatamente isso que pude observar em um trabalho sobre os sucessos escolares improváveis nas classes populares. Primeiro, a família não se resume jamais aos pais e aos filhos: às vezes há avós, tios e tias, primos e primas, irmãos e irmãs, que têm papéis importantes na escolarização das crianças. Por outro lado, a socialização infantil não se resume à socialização intrafamiliar: há amigos, babás, vizinhos, etc. Os depoimentos das pessoas que vêm de meios populares e que tiveram sucesso na escola mostram o papel de certos professores que atuam no papel de pigmaleão [quando uma influência positiva ajuda a mudar uma trajetória que evoluía de uma forma negativa]. Um exemplo famoso é o do escritor francês Albert Camus, que conta como o seu instrutor incentivou a sua família a inscrevê-lo em um liceu (escola de ensino médio na França) para que ele pudesse continuar os seus estudos.

O senhor diz que crianças provenientes de classes socioeconômicas mais baixas padecem do que chama de “solidão”. Por quê?
A criança com grandes dificuldades escolares vive uma espécie de dupla solidão. Por um lado, sente-se sozinha para enfrentar a escola, já que não conta com a ajuda “interiorizada” dos seus pais − que não puderam lhe apresentar as disposições e as competências necessárias para compreender a escola. Por outro, sente-se sozinha quando, uma vez de volta em casa, percebe que as atividades escolares que a forçaram a fazer ao longo do dia, não são compreendidas nem pelos seus pais, nem irmãos. Quando ela se encontra neste xadrez entre a escola e a família, somente as intervenções exteriores podem tirá-la das suas contradições. Sob este ponto de vista, podemos dizer que, realmente, algumas têm mais sorte do que outras, porque terão um apoio extrafamiliar que não é comum, ou um apoio escolar particularmente eficaz. 

E quando não há condições sociais e pessoas ao redor da criança que favoreçam sua aprendizagem?
Vou dizer uma coisa desesperadora: não existe ponto de salvação para uma criança além de seu ambiente social. É do meio social que vêm os obstáculos ou os recursos. Quem pensa que o aluno pode encontrar “em si mesmo” as forças para sair do fracasso escolar, contra ventos e marés, está redondamente enganado. As forças que ele pode ter, ainda que fracas, são os recursos externos interiorizados. Ou seja: são provenientes de influências externas que ele interiorizou, como a influência de um colega que gosta de estudar, por exemplo. Isso significa que a responsabilidade política é arrasadora em termos de fracasso escolar. O poder público é culpado por não fazer de tudo para modificar o ambiente das crianças que vêm de estruturas familiares frágeis.

Os professores devem fazer algum tipo de interferência nesse sentido?
Eles não são obrigados. Os docentes não são psicólogos nem assistentes sociais. Mas eles o fazem com frequência porque não ficam insensíveis aos problemas que seus alunos têm. Infelizmente, os docentes estão seguidamente muito sozinhos para lidar com todas as dificuldades que aparecem em uma sala de aula. Até em um país como a França, as diversas assistências se reduziram consideravelmente. Os estabelecimentos escolares têm uma falta cruel de ajuda pedagógica, psicológica, médica, entre outras, que seriam capazes de dar um apoio muito mais adequado aos alunos do que o que o professor pode dar.                                    

Quais devem ser os moldes da relação ideal entre a família e a escola?
A sociologia não é normativa e não tem a função de dizer o que a família ou a escola devem fazer. Sabemos que os pais mais engajados nas associações de pais de alunos e que vêm às reuniões de classe de seus filhos vêm muito mais das classes média e alta do que das demais. Mas isso não quer dizer que os pais de classes baixas não se interessam pela escolaridade de seus filhos. Às vezes, eles têm medo de frequentar a escola. Ou podem simplesmente estar trabalhando nas horas em que a maior parte das pessoas já acabaram o expediente. O que podemos dizer é que muitas injustiças são cometidas em relação aos pais de alunos em dificuldades. Pressupõe-se muito rapidamente a “demissão” deles. A escola os deixa de lado de maneira rápida. O sociólogo existe para lembrar que certos pais são tomados por dificuldades sociais que os desviam das questões escolares dos seus filhos. Se quisermos que os pais participem mais da educação escolar, é preciso que a sociedade lhes dê os meios: empregos estáveis, salários suficientes, tempo e horários disponíveis com a escolarização dos seus filhos, etc.

Os seus livros mais recentes tratam da cultura. Um estudo publicado em março mostrou que 75% dos brasileiros nunca colocaram os pés em uma biblioteca. Que efeitos uma constatação como esta pode ter na formação de uma pessoa?
Não tenho o número equivalente na França, mas a porcentagem dos inscritos nas bibliotecas francesas, para uma população de 15 anos ou mais, é de apenas 20% nos dias atuais. Portanto, felizmente a cultura impressa circula fora das bibliotecas. Seria necessário completar essa informação que você me deu com uma série de outras informações sobre o acesso fora das bibliotecas, ou a outras formas de cultura, de informação e de saber escrito. Podemos perfeitamente ter uma ótima escolarização e nos desenvolver socialmente sem frequentar bibliotecas. Em primeiro lugar, essa marginalidade das bibliotecas é relativa. Se 25% dos brasileiros já tiveram acesso à cultura impressa graças a essas instituições que não têm nenhum caráter obrigatório, para mim, este dado é um sucesso. Em segundo lugar, a marginalidade deveria levar os formuladores de políticas públicas ao seguinte questionamento: não seria o caso de multiplicar as formas de acesso ao livro e à cultura impressa? As bibliotecas não têm, às vezes, um caráter um pouco aterrorizador e dissuasivo, enquanto templos da cultura livresca? Uma política de democratização cultural deve se pautar sempre por essas perguntas e tentar buscar vias das mais diversificadas para atrair os diferentes tipos de público, seja ele jovem ou não.

Autor

Lúcia Müzell


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