NOTÍCIA

Carreira

Autor

Débora Rubin

Publicado em 08/10/2012

Bem vindo à realidade

Apreensão, solidão, falta de experiência em lidar com os conflitos de uma sala de aula. Sem orientação e uma formação inicial que prepare para a prática docente, os professores iniciantes sentem os impactos do "divórcio" entre a faculdade e a prática escolar. Um alerta para as escolas olharem melhor para esses profissionais, muitas vezes alçados à condição de "sobreviva ou desista"

Ronaldo Guimarães
Sara Villas: “fui muito bem recebida e orientada”

Em seu primeiro dia como professora, Maria Fernanda teve de substituir o professor de química que tinha faltado. Especializada em português, ela não foi orientada sobre como fazer essa substituição e, à sua maneira, improvisou uma aula de química com o pouco que lembrava sobre a disciplina. O resultado, contra todas as expectativas, foi positivo. Sorte de principiante. “Só depois da aula é que eu fiquei sabendo que não precisava dar a matéria do professor que faltou, mas sim sobre atualidades”, conta a professora do ensino médio, dois anos após ter estreado na rede pública do Estado de São Paulo. Maria Fernanda, nome fictício da profissional da capital paulista, mal debutou na carreira e já está afastada por problemas de saúde. Uma depressão foi agravada após um bate-boca com uma aluna usuária de drogas. Prestes a voltar, Fernanda tem dúvidas se quer mesmo persistir na carreira. “Eu fui bem recebida pela diretora e coordenadora, e o Estado, hoje, prepara bem o professor em relação ao conteúdo”, explica. “O problema são os alunos: mal-educados, desinteressados, mal preparados e agressivos.”

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Contexto escolar
O desabafo da professora mostra uma realidade de muitos que começam: a falta de preparo para lidar com a parte prática da docência. Por mais que Fernanda estivesse amparada em relação ao conteúdo que deveria ensinar aos seus alunos, ela desconhecia o contexto escolar onde foi inserida: os alunos, a classe que ia assumir e como lidar com os conflitos. Isso sem contar o fato de que seu primeiro dia de aula foi uma substituição às pressas. Quando saem da faculdade, os futuros professores têm em mente muitas teorias, alguma observação extraída dos estágios obrigatórios e nenhuma prática. “As faculdades não estão preocupadas em formar professores, mas bacharéis, mesmo dentro da licenciatura”, critica a doutora em geografia e formadora de professores Lisângela Kati. “O problema é que o conhecimento científico é diferente do conhecimento escolar.” É o que o espanhol Carlos Marcelo Garcia, professor de didática e organização escolar da Universidade de Sevilha, chama de “divórcio” entre a formação inicial e a realidade escolar.

Na outra ponta, as escolas recebem e colocam os professores iniciantes na linha de frente da mesma maneira como fazem com os já experientes. Na rede privada, ainda existe uma preocupação em situar o novo profissional dentro das diretrizes pedagógicas daquela instituição, sobre as regras internas e acerca das características dos alunos e das turmas em geral. Mas isso é feito com todos os que são novatos na escola, independentemente de ser um professor já experiente ou um recém-formado. “Hoje, já existe uma consciência de que o processo de formação de um professor é para toda a vida, até ele se aposentar”, ressalta Marisa Ferreira, psicóloga e especialista em formação de professores. “O problema é que nem mesmo os programas de formação continuada diferenciam esse começo, que é muito difícil.” A psicóloga diz que os três primeiros anos, em especial o primeiro, são chamados de “choque de realidade”. Carlos Marcelo, referência no tema, apelidou de “aterrisse como puder”. “Espera-se desse profissional que ele sobreviva ou desista”, escreveu o espanhol em artigo sobre o tema.

Ensinar e aprender
No ano de estreia, os novatos têm uma série de desafios para assimilar ao mesmo tempo: adquirir conhecimento sobre os alunos, sobre o currículo exigido, sobre o contexto escolar, afinar conteúdo e didática, desenvolver repertório, criar uma comunidade de aprendizagem e desenvolver sua própria identidade profissional. E tudo isso com as mesmas responsabilidades dos demais professores. É um processo intenso no qual ele tem de ensinar e aprender a ensinar ao mesmo tempo. Se esse profissional não encontra um amparo mínimo na direção e na coordenação do colégio, as chances de ele se frustrar e desistir do ofício são grandes.

Marli André, doutora em psicologia da educação e professora da PUC-SP, participou de um longo estudo sobre práticas de apoio aos professores feito pela Fundação Carlos Chagas a pedido da Unesco. O capítulo escrito pela psicóloga foi justamente sobre os iniciantes. Nas entrevistas com os recém-chegados, Marli ouviu desabafos parecidos com o de Maria Fernanda – sobre a incapacidade dos alunos de prestar atenção. “O que eles encontram em sala de aula é muito diferente do que eles imaginavam durante a faculdade, e as escolas não os preparam para a diversidade que encontram na classe”, relata.

As outras queixas ouvidas pela professora da PUC-SP ao longo do estudo foram a falta de apoio da coordenação para estratégias pedagógicas, a solidão no ato de ensinar e a zombaria dos mais experientes. “Muitos ouviam dos veteranos coisas como: você tem esse entusiasmo agora porque está começando, já já isso acaba”, conta Marli. Dos 15 municípios pesquisados, ela achou apenas dois que se destacam por políticas positivas. Em Sobral, no Ceará, e em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, existem processos de formação dirigidos especialmente aos iniciantes, com grupos de discussão e de interação com os mais experientes. “Em Sobral, os recém-chegados têm um acompanhamento especial dos coordenadores durante seus três primeiros anos”, exemplifica Marli.

Formação inicial
Um dos maiores mitos da educação, segundo o espanhol Carlos Marcelo, é o de que para ensinar, basta saber o que se ensina. Mas e se, por outro lado, os cursos de pedagogia no Brasil não formam nem para o conteúdo? Para Quézia Bombonatto, presidente da Associação Brasileira de Psicopedagogia, a formação inicial dos professores também não está dando conta do recado. “Estamos tendo um problema muito sério em relação à formação inicial do professor que se forma em pedagogia. A começar pelo fato de que é um curso pouco procurado, muitos já foram até fechados, e de fácil acesso. Isso permite que o aluno entre mal preparado, com graves dificuldades de aprendizagem. Como um aluno que não sabe aprender vai ensinar? Começa errado. Para conseguirem dar o curso, os professores das faculdades de pedagogia são obrigados a nivelar por baixo. E esses recém-formados vão entrar no mercado sem, muitas vezes, nem mesmo saber escrever.”

Tutores pelo ensino
Especialistas defendem a necessidade de cada escola ter seu próprio programa de recepção. No caso de Fernanda, um conhecimento mais aprofundado sobre sua turma a faria saber de antemão quais partes do conteúdo apresentado na apostila padrão dada pelo governo caberiam em sua aula. “Na apostila de português tinha uma dinâmica com uma música do Caetano Veloso e a primeira coisa que me perguntaram foi: Quem é Caetano?’.” Para atenuar as dificuldades didáticas de seu corpo docente, a rede estadual de São Paulo adotou como prática um curso de formação atrelado ao concurso público. Antes de assumir uma classe, o candidato passa por um curso de 360 horas entre aulas presenciais e a distância. “A iniciativa é boa, mas insuficiente”, acredita Marisa. “Cada escola deve ter seu próprio método de recepção e formação dos iniciantes, inclusive as públicas.”

Estimular os profissionais a fazer intercâmbio das práticas de ensino, como acontece também em Sobral, é uma forma de torná-los receptivos aos recém-chegados na labuta. O ideal, para Marisa, seria criar um sistema no qual os mais experientes se tornassem tutores dos iniciantes. “Algumas escolas até fazem isso, mas de maneira informal, e muitos professores se sentem sobrecarregados, pois não ganham para isso e nem são reconhecidos pelo trabalho extra”, diz a psicóloga. Correntes pedagógicas atuais pregam que quando os professores trabalham em conjunto, diminui a solidão que eles sentem em sua jornada. Nessa cultura profissional, marcada pelo isolamento, é malvisto até mesmo pedir ajuda entre colegas. “Em mais de dez anos, eu nunca assisti a nenhum colega dando aula. Não é estranho?”, questiona a professora Sara Villas, de Belo Horizonte. “Professores não trocam experiências entre si”, confirma Lisângela, que vibra quando vê que suas alunas-professoras estão trocando e-mails sobre suas experiências em classe.Em seu trabalho de formação, ela procura lembrar que os erros são importantes para o processo. “Todo mundo só quer falar do que deu certo, eu mostro também as cabeçadas que dei no começo e como isso ajudou a construir meu caminho como professora.”

Hoje, de acordo com Marisa Ferreira, as maiores referências que um professor tem para estrear em sala de aula são o conteúdo ensinado na faculdade, a memória do tempo em que era aluno e a maneira como o professor preferido dava aula. A partir desse tripé é que ele vai criando seu próprio estilo. “O problema é que confiar num modelo antigo de dar aula, dos tempos em que ele era aluno, pode ser muito arriscado”, acredita Marli André. “Os alunos hoje são muito diferentes e as mudanças de comportamento acontecem mais rápido.” Às vezes dá certo. Luis Otávio Targa, de 23 anos, começou a dar aulas de biologia no Colégio Vértice, em São Paulo, no ano passado. Ex-aluno da escola, ele foi bem recebido não só pela direção, mas também pelo outro professor de biologia do ensino médio, mais velho, mais experiente e que tinha sido seu professor. Durante um bimestre, ele apenas acompanhou o antigo mestre. Hoje, um ano e meio depois, já arrisca incluir suas próprias características no jeito de ensinar. “Tenho a idade do irmão mais velho dos meus alunos, falo a língua deles, sei qual o fenômeno da internet do momento e uso muito bem as novas tecnologias”, diz. A mesma característica que ajuda, atrapalha: “Por ser muito novo, às vezes eles perdem a noção de que eu sou professor e aí preciso me impor”.

Turmas mais difíceis
Todo principiante, por mais bem recebido que seja na escola, esbarra em alguma dificuldade. Gabriel Prado, professor de matemática de São Paulo, não chegou a ter uma recepção diferenciada por ser um estreante no universo escolar quando entrou no colégio Oswald de Andrade, mas sentiu uma abertura da direção para pedir socorro sempre que precisasse e se sentiu acolhido como colega pelos seus pares. Seu maior temor foi saber-se responsável por um curso de um ano de duração. Um início mais tortuoso viveu Sara, que teve como primeira turma alunos de EJA (Educação de Jovens e Adultos), de idades que variavam de 18 a 80 anos. “Já não bastassem todas as dificuldades, os iniciantes tendem a pegar as turmas mais difíceis”, destaca Marisa Ferreira. Sara e a Maria Fernanda do começo dessa história são a prova viva do que diz a especialista.

Na rede pública, isso acontece com mais frequência. Em especial porque há professor afastado, outros que faltam por priorizar o emprego na rede privada, e as turmas mudam muito. “Fica muito difícil fazer um planejamento de aula dentro desse contexto”, lembra Lisângela Kati.

Para Quézia, os baixos salários e as imensas dificuldades em conseguir dar uma aula geram um número muito alto de afastamentos por motivos de saúde e de profissionais em busca de oportunidades melhores. Essa rotatividade gera um prejuízo imenso para a educação pública, pois um professor planeja, o outro executa e um terceiro finaliza. “Tem professor que nem chega a conhecer seus alunos. Não é raro ver turmas inteiras no pátio do colégio sem fazer nada porque não há professor. Nesse eterno recomeço, o aluno se sente desmotivado, desprestigiado. Na rede privada isso já não acontece. Pega muito mal com os pais quando uma escola particular troca muito de professor.”

Nesse cenário de inconstância, o novato, em especial o que não fez concurso e entrou pelo regime de contratação de emergência, é utilizado para apagar incêndios: substituir professores quando o ano letivo já está na metade, pegar turmas que ninguém quer, dar aulas em escolas situadas em lugares perigosos etc. “Nunca dê a turma mais complicada para quem está começando”, aconselha o especialista Carlos Marcelo.

O mesmo conselho serve para as turmas dos anos iniciais da Educação Básica. Marisa Ferreira, que também é especialista em educação infantil, lembra que nessa primeira etapa de ensino, os professores que estão chegando são colocados na creche, a área mais delicada das escolas. “A creche precisa de pessoas experientes justamente por exigir cuidados que vão além do ensino em si”, acredita. Quando os bebês estão um pouco maiores, entre dois e três anos de idade, não é incomum ver as professoras dando trabalhos de alfabetização para os pequenos, o que mostra a dificuldade em entender o que deve ser trabalhado nessa faixa etária. “Elas trabalham com livros e passam até lição de casa”, conta Marli. “Elas tendem a achar que brincadeira é perda de tempo ou atividade para o tempo livre.”

Impactos na aprendizagem
As consequências de um mestre mal recepcionado por seu primeiro empregador, independentemente da etapa do ensino, impactam diretamente a aprendizagem dos alunos. Pouco confiante em seu método e sem ter com quem dividir suas dúvidas, angústias e ações, o professor tende a se sentir ameaçado pelos alunos, que deixam de prestar atenção no que ele ensina, e vira um refém da situação, perdendo a autoridade. Não existe um número preciso no Brasil da evasão escolar dos docentes nos primeiros anos como profissionais, mas o fenômeno é confirmado pelos especialistas. Para ilustrar de forma matemática basta pensar numa pirâmide. Na base, estão todos os mestres em começo de carreira. No topo, os que perseveraram. Quem desiste, dificilmente volta.

Sara sobreviveu, cresceu e desenvolveu seu próprio método. E conseguiu manter sua paixão pelo ofício. Luis e Gabriel estão confiantes no caminho escolhido. Já Maria Fernanda ainda não decidiu se preserva ou se abandona a carreira. Apostar na resistência e capacidade de superação de cada indivíduo, como se a educação fosse uma grande gincana de reality show, é arriscar demais o futuro da docência – e do ensino – de um país.


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