Contratos de trabalho na modalidade temporária chegam a quase 30% do total de professores da rede pública de Educação Básica e revelam fragmentação dentro da própria categoria. A "transitoriedade" dificulta ainda a criação de vínculos entre os profissionais e as escolas
Publicado em 03/06/2014
Imagine uma rotina de trabalho baseada na instabilidade: saber que hoje está em determinado lugar e, na mesma semana, pode ser dispensado e encaminhado para atuar com outra função, em outro local, a quilômetros do anterior. E a cada ano ter apenas uma certeza: a demissão em dezembro e a posterior “contratação” em meados de março. Pois é mais ou menos essa a realidade profissional para milhares de professores brasileiros contratados, ano a ano, como temporários. Atualmente, segundo dados do Censo Escolar 2013, divulgados em março, 28,32% dos 1.787.644 contratos de trabalho da função docente nas redes municipais e estaduais da Educação Básica brasileira são temporários. Isso significa que 527.781 contratos para atuação como professor são realizados sem vínculo empregatício com o serviço público.
Estados como Acre, Ceará, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, por exemplo, têm mais de 60% de suas redes estaduais ocupadas por temporários. No Espírito Santo, 72,16% das funções docentes são temporárias – o índice mais elevado do país (veja gráfico na página 36). “Precisamos construir alternativas, fazer mais concursos, discutir a carreira do magistério. O índice elevado de temporários é ruim, tanto para os professores que estão contratados nesse regime, quanto para a rede de ensino. Mas estamos empenhados em reduzir essa marca”, afirma o secretário estadual da Educação, Klinger Barbosa Alves. A maior parte das secretarias informou que tem buscado a redução do número de temporários em seus quadros, especialmente com a realização de concursos públicos (veja as principais respostas das secretarias na página 34).
A situação chamou a atenção do Tribunal de Contas da União (TCU), que em relatório de auditoria recente sobre o ensino médio nas escolas públicas brasileiras, apontou: “O uso ostensivo, intensivo e, em algumas redes, claramente abusivo do regime de contratação temporária é deletério ao sistema educacional”. O documento aponta o que seriam algumas das consequências prejudiciais da prática: “Se de um lado ele frustra a perspectiva de desenvolvimento e amadurecimento profissional onde há a prática de rescisão dos contratos logo após o período letivo, a prorrogação contumaz de contratos em outras redes cria verdadeiras subcategorias de professores, sem a mesma remuneração e sem outros direitos viabilizados por meio de vínculo minimamente estável com os governos estaduais”, aponta o relatório.
Condição precária
Mas, quais são as consequências dessas contratações para a qualidade da educação pública no Brasil? Em que medida esse ciclo de instabilidade interfere no aprendizado dos alunos? A presença maciça de temporários em determinadas redes revela uma grande deficiência de planejamento de pessoal e de gestão por parte de governos estaduais e municipais, avalia Ocimar Alavarse, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. “Na verdade, os gestores conseguem calcular, com uma boa margem de segurança, quantos profissionais estão ou vão deixar a rede. Portanto, podem se antecipar e garantir a organização de concursos”, diz o professor da USP. Para ele, não há um “limite ideal” de temporários no quadro da rede pública. “O patamar deveria ser zero, até porque, no serviço público, o temporário fica em um limbo jurídico”, sustenta.
Alavarse defende que todos os ocupantes de postos de trabalho na rede pública de educação sejam efetivos, contratados via concurso, e que eventuais necessidades de temporários deveriam ser supridas por aprovados nesses concursos, mas que não foram nomeados. “Essa condição precária do temporário contamina e desmoraliza o professor. Parece até uma ‘orquestração’, porque não é um caso isolado. Em vez de se investir na valorização da carreira docente, ocorre o contrário”, diz. Além da questão profissional, ele destaca que a presença de temporários prejudica a qualidade de ensino. “A educação é um projeto de longo prazo. Quanto mais organizado esse processo, melhor o sucesso dos alunos. A adoção de temporários como expediente de gestão não contribui para a melhoria dos processos pedagógicos”, diz.
Problema antigo
A socióloga Juliana Regina Basílio, que fez mestrado em 2010 sobre os docentes contratados sem concurso público na rede estadual de São Paulo, diz que apesar de estar mais presente na agenda de pesquisadores e mesmo da imprensa nos últimos anos, a questão dos temporários não é novidade. “No caso da rede paulista, há pelo menos 40 anos a maioria dos professores é contratada sem concurso. É assim que se dá a entrada desse profissional na rede e assim é que ela funciona. Não estou dizendo que funciona bem, mas funciona nesse sistema”, diz a pesquisadora da Unicamp. Juliana estudou ainda o caso dos professores eventuais, modalidade específica da rede de São Paulo, também sem vínculos trabalhistas, regulamentada em 1986. “Não há como se falar ‘professor’ como um termo geral porque efetivos, temporários e eventuais não são vistos e não se veem da mesma maneira”, sustenta a socióloga, que já atuou nas três modalidades – foi eventual, temporária e professora concursada.
A vivência pessoal também levou a pedagoga Denize Cristina Kaminski Ferreira a estudar o tema em sua dissertação de mestrado, apresentada em 2013, na Universidade Federal do Paraná. “Convivi de perto com essa sensação do ‘não saber’ como será o ano seguinte. Sei como é angustiante”, conta. Ela se inscreveu para dar aulas como professora temporária quando ainda era universitária. Mesmo sem experiência, foi chamada para lecionar língua portuguesa. “Na falta de um professor concursado são aceitos outros profissionais, independentemente do tipo de formação. Isso foi um dos pontos que quis abordar com minha pesquisa”, diz. Ela chegou a entrevistar antigos gestores de educação, que explicaram ter ciência de que o processo de seleção de temporários não era ideal, mas que havia a necessidade de “garantir o professor em sala de aula”. “Assim, um professor com melhor qualificação entra no mesmo patamar dos sem formação adequada para o exercício da função, é nivelado por baixo”, diz a pesquisadora.
“No decorrer do ano letivo é comum que docentes sem formação adequada lecionem disciplinas diversas, devido à falta de professores devidamente habilitados. Há gente sem formação específica lecionando geografia, inglês, educação física. E não é culpa do professor. Ele é vítima. Aceita e se submete a esse tipo de vínculo porque precisa do emprego”, diz Denize. Ela verificou na pesquisa que os temporários sofrem até para serem representados pelas entidades sindicais. “Efetivos e temporários, na prática, são professores, enfrentam a mesma realidade nas escolas. Mas a diferenciação de vínculo faz com que cada um lute por reivindicações diferentes”, afirma. “Ocorre uma fragmentação da categoria, que acaba por enfraquecer o grupo como um todo. E os sindicatos tendem a não dar a devida atenção à pauta dos temporários, justamente por sua condição de temporário. É bem complicado”, avalia.
Vozes anônimas
A reportagem de Educação procurou professores que atuam como temporários para contar um pouco de suas experiências. Por medo de represálias, todos pediram para não serem identificados – alguns chegaram a desistir de falar, mesmo com a opção de anonimato. “Quando você é temporário você não cria raízes, não pode participar de greves, não tem quase nenhuma garantia”, diz B.E., professor desde 1982 no Recife (PE). Desde 2005 é efetivo na rede municipal de Olinda, mas eventualmente assume turmas como temporário na rede estadual. “Tenho noção das duas realidades e a dos temporários é mais triste. Ele é ‘descartável’, vive numa ditadura. Acredito que a manutenção desse tipo de vínculo pelos gestores é uma maneira de ‘terceirizar’ o sistema educacional, de quebrar a força e a unidade da categoria docente”, avalia B.E.
Professor temporário na rede estadual de Curitiba (PR) desde 2011, D.J. começou a trabalhar no último ano da graduação. “Foi a maneira que encontrei para entrar na rede”, conta. “A grande dificuldade de ser temporário se escancara ao final da segunda quinzena de dezembro, quando você fica desempregado. Depois tem de se habilitar novamente no processo seletivo, enfrentar a burocracia e, com sorte, começar novamente em março. Até lá, não há emprego”, diz. Essa “transitoriedade”, segundo ele, dificulta a criação de vínculos entre os profissionais e as escolas. “Não criamos laços, não somos incluídos no desenvolvimento do processo pedagógico. Você às vezes até participa das reuniões, mas evita falar, porque sabe que, no próximo ano, não estará ali”, afirma. “Minha intenção é me especializar e buscar uma colocação na iniciativa privada. A última coisa que quero para meu futuro é depender do trabalho temporário”, diz.
Também de Curitiba, a professora J.M., que atua na rede estadual do Paraná, vê o trabalho temporário como opção de curto prazo, não como carreira. Aos 55 anos, ela encontrou na colocação como professora temporária uma forma de voltar ao mercado de trabalho, do qual estava afastada há muitos anos. “Foi um ‘atalho’ e acabei gostando. Estou cursando pedagogia e minha intenção é atuar nessa área, mas na parte de planejamento pedagógico”, diz. “Sei que em várias escolas há preconceito, mas não tive esse problema. Creio que muito disso depende da forma como você se coloca. Nunca fiz distinção entre mim e os colegas ‘de carreira’ e nunca fui tratada diferentemente”, afirma.
S.F. é temporário no Distrito Federal e mantém em uma rede social da internet, desde 2010, um grupo de discussão voltado a professores que atuam nessa modalidade de contratação, com quase nove mil inscritos. “Foi uma maneira que encontramos para dividir informações, esclarecer dúvidas”, conta. “A experiência de temporário não é boa. É uma alternativa à falta de concurso, paga um pouco melhor que a rede privada, no caso de Brasília, mas o tratamento é ruim, não é o mesmo dispensado aos docentes do quadro, somos os ‘descartáveis’. Com o grupo conseguimos alguma articulação, pois até o sindicato faz vista grossa a nossa categoria.” S.F. diz que estão diligenciando com alguns deputados pela melhoria de condições de trabalho dos temporários. “Alguns ajustes que garantiriam mais segurança aos temporários não implicam sequer mais custos ao erário. Nosso intuito é, melhorando as condições de trabalho, melhorar o sistema de educação”, afirma.
Rede a rede | |
A revista Educação consultou, por e-mail e telefone, as 27 Secretarias de Estado da Educação do país para falar sobre a proporção de temporários na função docente em suas respectivas redes. Do total, 13 não retornaram: Am, Pa, AP, To, Ce, Pb, Pe, Al, SP, Pr, R S, MS e Go. Veja, a seguir, as principais respostas Espírito Santo Distrito Federal Acre Mato Grosso |
Os bons exemplos | |
Apenas três Estados apresentam proporção menor que 10% nas contratações de temporários, de acordo com o Censo Escolar 2013, mas todos garantem que reduziram ainda mais esses números. Rio de Janeiro Rio Grande do Norte Sergipe
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