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A escola dividida

Rendimento, evasão, abandono e repetência ainda atingem de forma desigual brancos e negros nas escolas brasileiras. Um desafio para a gestão escolar, e não apenas para iniciativas individualizadas dos professores

Publicado em 12/01/2015

por Luciana Alvarez

 

Em 20 anos, de 1988 a 2008, o tempo de estudo das pessoas brancas no Brasil com idade superior a 15 anos passou de 5,2 anos para 8,3. Entre negros, foi de 3,6 para 6,5. Apesar de ambos terem aumentado o tempo na escola, a diferença entre brancos e negros passou de 1,6 para 1,8 ano. O crescimento da diferença entre brancos e negros comprova a necessidade de investir de forma diferenciada e global no acesso à educação. E a equidade racial começa a ser vista como um problema para a gestão escolar.

Uma das grandes dificuldades para avançar rumo ao fim do racismo é que poucas vezes o assunto é uma preocupação institucionalizada. O mais comum é ser uma causa abraçada por um ou dois professores, para quem o tema foi importante na vida pessoal. Entre as tentativas de tornar o assunto cada vez mais relevante dentro da escola, em 2002 o Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert) criou o Prêmio Educar para Igualdade Racial, que seleciona experiências de promoção da igualdade no ambiente escolar, tanto no âmbito do trabalho de professores quanto no de gestores escolares.

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Este ano, o Instituto Unibanco, o Fundo Baobá e o Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) abriram um edital para seleção de projetos de gestão que possam promover a equidade racial nas escolas. Esta primeira edição já recebeu a inscrição de 124 projetos, vindos de 21 unidades federativas. Ricardo Henriques, superintendente executivo do Instituto Unibanco, acredita que o número é bastante positivo, mas espera que as ações cresçam com o tempo. Ele defende que a busca da igualdade racial é um dos deveres da escola. “A escola precisa se preocupar com a garantia dos direitos da aprendizagem e com a redução da desigualdade. Se ela recebe desigualdades estruturais da sociedade, precisa ser capaz de enfrentar o problema e reduzir as distâncias”, afirma. Dentro dessas desigualdades está o racismo, muitas vezes jogado para debaixo do tapete da instituição escolar.

Para Henriques, a gestão ainda é um dos pontos mais deficientes hoje no enfrentamento ao racismo. “O marco legal de 2003 [Lei 10.639] estimula uma agenda pedagógica por parte dos professores, mas faltam estratégias da escola como um todo para enfrentar a desigualdade. A intenção do prêmio é estimular que a questão seja incorporada à agenda da escola, que o diretor passe a olhar para isso como um dos seus desafios de gestão. Ele deve se perguntar ‘como eu posso melhorar os resultados de aprendizagem de todos?’, e também como fazer com que os resultados de brancos e negros fiquem mais próximos. O diretor precisa assumir essa responsabilidade”, afirma.

Efeito avassalador
Para se ter uma ideia do quanto o assunto ainda é problemático no Brasil, dados compilados pelo Laboratório de Análises Econômicas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais, da UFRJ, mostram que na África do Sul, em período semelhante (de 1996 a 2007), a diferença do tempo de estudo das pessoas brancas e negras foi reduzida. Em 2007, a população branca possuía média de 11,4 anos de estudo, em uma evolução de 15,8% em relação a 1996. Embora ainda com menos escolaridade, os negros conseguiram um incremento de 30,1%, tendo passado de 5,6 para 7,3 anos de estudo.

“Nas escolas brasileiras, existem dois tipos de situação de discriminação: as explícitas e outras mais discretas, mas que estruturam nossa forma de agir”, explica Luciana Alves, mestre em Educação pela Universidade de São Paulo (USP) e professora de pedagogia no Senac. As explícitas costumam ser vistas nos conflitos entre alunos, nos xingamentos. “É quando um aluno chama o outro de macaco, fala do cabelo. Em geral, tem a ver com a desvalorização física. É um racismo mais fácil de perceber – e de combater.”

“O outro lado, muito silenciado, é o que se vê nas escolhas dos materiais, nos vídeos, livros, nos discursos do professor. Eles trazem a ideia de um branco universal. O negro é tratado de forma pontual: fala-se do negro e aprende-se sobre a ‘cultura negra’ em datas específicas”, completa Luciana, que fez uma pesquisa sobre a branquitude, ou seja, a construção identitária do branco. Esse tipo de visão propagada pela escola de um “branco universal”, em vez de combater o racismo existente na sociedade, acaba estimulando-o, diz a pesquisadora.

Dados estatísticos deixam claro que a discriminação estrutural tem um efeito perverso sobre o desempenho escolar dos negros – e, portanto, ele não pode ser tratado como “casos isolados”. Segundo o último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2010, a porcentagem de jovens de 15 a 17 anos cursando o ensino médio era de 55% entre os brancos e de 41% entre os negros. Entre os jovens de 18 e 19 anos, 47% dos brancos haviam concluído o ensino médio, mas o número despencava para 29% para os jovens negros.

Um levantamento de 2013 feito pela professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) Paula Louzano, por meio de cruzamento de dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) e dos questionários socioeconômicos da Prova Brasil, mostrou que rendimento, evasão, abandono e repetência atingem de forma desigual brancos e negros.

Enquanto 7% dos estudantes brancos têm mais de dois anos de atraso escolar, entre os negros esse indicador chega a 14%. Entre as crianças autodeclaradas pretas, 43% já tiveram algum tipo de fracasso escolar; entre as brancas, o índice é de 27%. Considerando apenas crianças cujos pais completaram o ensino básico, ser negro aumenta a probabilidade de fracasso escolar entre 7 e 19 pontos porcentuais. Ao conseguir isolar variáveis socioeconômicas, a hipótese mais provável para a diferença de resultados é que ela seja provocada pela discriminação na escola.

Muitas vezes, porém, a criança e o jovem são culpabilizados: a responsabilidade do fracasso escolar é atribuída ao próprio sujeito, ou à sua família, nunca à instituição escolar, mascarando assim a existência do racismo. “A discriminação racial é cristalizada na sociedade, e também na escola. Os professores reproduzem o discurso do mundo, afinal, a escola não é um lugar protegido. Nem sempre o professor percebe a discriminação, porque é tudo muito naturalizado”, afirma Rosana Heringer, especialista em políticas públicas de promoção da igualdade racial da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

“Desde os anos 1980 pesquisas indicam que a discriminação é a ação padrão da escola. Tudo é influenciado pela cor: o incentivo, o reforço positivo, o estímulo, a afetividade do professor. Mas no local, essas diferenças são tratadas como se fosse por questões de temperamento, por afinidade. É algo que se vê da pré-escola ao ensino superior”, afirma. Para a professora da UFRJ, mesmo casos de racismo explícito costumam ser tolerados. “É difícil comprovar um caso de discriminação nas escolas, assim como o é fora do sistema educacional. As pessoas dizem que foi um mal-entendido. Se você não tem testemunhas, o racismo é facilmente descaracterizado”, exemplifica.

Rosana avalia que a Lei 10.639, de 2003, que incluiu no currículo oficial o ensino de temas ligados à história e cultura afro-brasileira, representou um importante marco legal, mas os avanços na prática escolar ainda estão aquém dos necessários. “Tivemos a melhora das medidas legais, mais cursos de capacitação de professores, materiais didáticos mais bem elaborados, mas a mudança de atitude ainda não aconteceu. Às vezes precisa de uma geração ou mais para mudar.”

A educação, no entanto, tem a obrigação de fazer muito mais, defende. “Temos de esperar e cobrar das escolas porque o fim do racismo na sociedade tem de começar por elas. O que está sendo feito ainda é muito pouco em face do tamanho do desafio e da responsabilidade”, completa a professora da UFRJ.

Possíveis caminhos
Entre os dez projetos selecionados pelos Institutos Unibanco e Baobá, uma ideia norteia a maioria: reconhecer e valorizar a cultura afro-brasileira dentro da escola. Para tanto, o público-alvo deve ser amplo: alunos negros e brancos, professores e funcionários. Assim é o projeto da Escola Estadual Nair Mendes Moreira, de Contagem (MG). “Temos na escola muitos descendentes de uma comunidade quilombola, mas ainda assim as pessoas julgam os quilombolas como pessoas sem conhecimento, que fazem macumba”, afirma Thatiana Barcelos, uma das idealizadoras do projeto. Para enfrentar o preconceito, a escola vai promover formação de professores e funcionários, além de oferecer aos estudantes aulas de capoeira, contação de histórias e literatura negra. “Queremos acabar com o estereótipo negativo ao valorizar o aspecto africano de nossa cultura”, diz.

Outra frente de ação é desenvolver a liderança de jovens negros. Juciê Parreira, da equipe executiva da ONG Nuvem, que vai colocar em prática o Programa Jovens Líderes para Equidade Racial em uma escola rural do município de Campo Largo, na região metropolitana de Curitiba, conta que 40 jovens do Colégio Estadual São Francisco de Assis serão escolhidos para passar por formações nesse sentido. “Dar oportunidades, empoderá-los perante seus colegas, família e comunidade são meios para irmos na contramão de uma história que vem sendo construída, negando fortes potenciais de jovens. Eles podem – e vão – promover mudanças”, acredita Juciê.

Para a pedagoga mestre em Educação pela Universidade de São Paulo (USP) que pesquisa sobre as relações raciais nas escolas, Mighian Danae Ferreira Nunes, para cumprir seu papel de diminuir o racismo na sociedade, a escola deve começar admitindo que há, sim, diferenças entre brancos e negros, mas mostrar que não há superiores ou inferiores. Ao silenciar sobre a questão, a escola abre espaço para que outras instâncias da sociedade construam o significado dessa diferença – e, na maioria das vezes, isso não será feito de forma positiva, acredita.

“Tivemos de trazer um nome em inglês – bullying – para tratar de um problema nosso. Então, discute-se o bullying na escola, mas não se discute o racismo. Dessa forma são incluídas outras questões junto – como o menino obeso, o que usa óculos –, e se acaba descaracterizando o racismo”, critica Mighian. Com grande experiência em educação infantil, a professora relata ser comum crianças brancas não quererem dar as mãos para crianças negras – e muitas vezes a reação dos professores é “deixar para lá”. E, quando as crianças negras se sentem deslocadas no espaço escolar, não há um esforço de inclusão. Em vez disso, as crianças são tachadas de “malcriadas” ou “desobedientes”.

Segundo Mighian, enfrentar a questão, em vez de “deixar para lá”, seria benéfico para o país, uma forma de entender melhor a própria identidade nacional. “Em vez de discutir e resolver, a gente nega. No plano individual não se aceita que exista o racismo; no coletivo, não nos aceitamos como país, com as nossas características, nossos próprios problemas.”

A ideia é que a discriminação racial é um problema de todos, pretos e brancos, e sua superação traz vantagens a ambos. A escola, seja ela pública ou particular, com grande ou nenhuma presença de negros, deveria formar cidadãos com consciência sobre a diversidade étnica e cultural da sociedade brasileira, capazes de reconhecer que ela foi formada sobre a exploração de africanos escravizados, defende a pesquisadora.

“Se é doloroso para uma criança negra saber que seus antepassados foram escravizados, também é doloroso para a branca saber que os seus foram os escravizadores. Se é doloroso ser vítima de racismo, também é doloroso se reconhecer com comportamentos racistas”, diz Mighian, citando que já presenciou professores que se recusaram a participar de formações sobre o tema. “As pessoas precisam olhar para seu próprio preconceito. Claro que é difícil lidar com décadas de práticas racistas. Muitas vezes, a reação do professor é repudiar aquele conteúdo.”

Com as crianças e jovens, porém, boas práticas em sala de aula têm o potencial de promover resultados positivos e rápidos. “Tive uma aluna de 11 anos que me contou ao final do ano, depois de eu ter trabalhado a questão racial durante todo o ano letivo, que pela primeira vez pegou na mão do pai. Ela disse que antes sentia nojo do pai por ele ser negro; ela tinha aprendido que aquela cor era feia. Ela disse que sempre amou o pai, mas que só então entendeu o que representava ser negro”, relata.

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Luciana Alvarez


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