NOTÍCIA

Edição 219

Autor

Gabriel Perissé

Publicado em 08/07/2015

O pós-aluno

Há o tempo de sermos alunos, o tempo forte para aprender. Mas todos também somos ou seremos pós-alunos. E descobriremos, olhando para trás, o que aprendemos

© iStockphoto

Não é totalmente verdade que somos eternos aprendizes. Certamente, sempre podemos retornar à escola para aprender, estudar, sempre podemos procurar cursos de aperfeiçoamento, contratar o serviço de professores particulares, matricular-nos em cursos virtuais, praticar a autoeducação. Na maturidade ou em avançada idade, sempre há chance de aprender.
Mas há um tempo em que somos alunos por pleno direito. Um tempo forte para aprender.
Na infância e na adolescência, vivemos intensamente o papel de alunos. E somos reconhecidos pelo nosso desempenho na escola. Os professores nos olham como alunos, se dirigem a nós para ensinar, e nos avaliam, pois alunos somos e ali estamos para aprender, ainda que os bons professores saibam, além de ensinar, aprender também com seus alunos.
Aluno é aquele que precisa ser alimentado (a palavra “aluno” está em ligação com o verbo latino alere, “alimentar, sustentar, educar”). Os alunos se alimentam daquilo que o professor digere. Todo aluno tem fome. E todo professor, em tese, tem fome de ensinar. Mas não é simples alimentá-lo.
E um dia o aluno será um pós-aluno. Não exatamente aluno de uma pós (uma pós-graduação). Pós-aluno porque olha para trás e descobre que aprendeu, com os professores, com os livros, e com os colegas.
O aluno relapso
O jornalista e poeta Lêdo Ivo (1924-2012) escreveu um breve texto chamado O aluno relapso (pela Editora Apicuri, 2013), em que nos conta um pouco de sua história de aluno e pós-aluno.
Lêdo adolescente era o primeiro aluno da sala. E tinha um colega que era o último, o incorrigível, o vilão que todos julgavam e condenavam. O relapso não acreditava em Deus, obtinha as piores notas, envolvia-se em brigas, desafiava a autoridade. O aluno correto sentava-se à frente, colaborava, obedecia, alcançava as melhores notas, ganhava elogios.
Como sabem os sábios do povo, “os extremos se tocam”. O exemplar e o transgressor conversam. Um se sente fascinado pelo outro. Um quer entender o outro. Um quer aprender com o outro. Um sente inveja do outro, talvez.
O aluno correto trilha o bom caminho sob os aplausos da família e da sociedade. O relapso opta pelo desvio, e por ele vai correndo, vaiado e difamado. O obediente busca o reconhecimento externo. O negligente escandaliza a todos. O estudioso é aprovado com louvor. O incompetente é reprovado com horror. E o tempo afinal os separa. Cada aluno se torna um pós-aluno.
Metamorfoses
Quarenta anos depois, Lêdo reencontra o colega relapso. E descobre que o colega maldito agora tornou-se… professor! E professor de Direito, exercendo também a nobre função de desembargador. O rebelde tornou-se julgador intolerante. Converteu-se em representante da ordem. Passou a acreditar que a religião e as instituições militares têm por função evitar a anarquia, conter os impulsos das massas.
Lêdo se espanta, pois “o desenho final não correspondera ao rascunho da adolescência”. No caso do colega, e igualmente no caso dele, Lêdo. Em sentido oposto, quem um dia tinha sido aluno cordato também agora se transformara em poeta, em crítico da autoridade, questionador das regras, adulto relapso aos olhos alheios.
O mundo dá cambalhotas e as pessoas, piruetas. Metamorfoses espirituais. Reputações traídas de um lado e de outro. O aluno mau perdeu o sentimento de aventura. O aluno perfeito ganhou uma dignidade melhor. O aluno indomável resolveu aderir a quem o oprimia. O aluno bom revoltou-se e trocou a honra pela felicidade.
A pós-avaliação
Existe vida depois da escola. As avaliações morais e psicológicas que recebemos quando somos crianças e jovens podem carecer da precisão necessária. A precisão de quem se abre para o inusitado e lê as entrelinhas da alma dos alunos.
O primeiro colocado poderá descobrir sua vocação, e colocar-se fora das hierarquias, longe do sucesso. O último poderá conquistar o prêmio que antes rejeitara, ocupar os postos do poder. E até mesmo ensinar aos outros o que é certo e errado. Não nos deixemos enganar. No fundo da alma rebelde talvez se esconda um autoritário. No fundo da alma submissa talvez se esconda um revolucionário.
Quando Lêdo reencontrou o antigo colega, viu naquele senhor austero, caminhando rumo ao Tribunal de Justiça, um exemplo de como pode acabar um aluno relapso. O aluno fracassado se tornou um vencedor. E ele, Lêdo, o outrora aluno vitorioso, caiu na poesia.
O poeta é presunçoso. Não quer fazer a lição de casa. Prefere as respostas erradas e as notas baixas. Não decora porque decidiu falar do coração das coisas. Sai da fila e brinca na hora das provas. Sofre do seu próprio jeito e estuda seus versos em vez de preencher exercícios de rotina. Lê o que quer, e por isso escreveu:
 O mundo nada pesa.
Atlas, sinto
 a leveza dos astros nos
meus ombros.
 Minha alma desatenta
é mais pesada.
Quer ganhe ou perca, sou verdade e minto.
 Se pergunto, a resposta
é dos assombros.
 No sol a pino finjo a madrugada.


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