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Arte e Cultura

Síndromes que ensinam

Colunista utiliza manifestações obsessivas literárias para divagar sobre nosso inconsciente

Publicado em 17/11/2016

por Gabriel Perissé

John Neville como o Barão de Münchausen no divertido filme de Terry Gilliam, de 1988 | Divulgação


Há uma curiosa interface entre patologia e cultura literária no uso dos epônimos. Epônimo é um recurso de linguagem com o qual, neste caso específico, atribuímos o nome de um personagem fictício a alguma doença identificada pela medicina.
Essa arte de nomear (modo de criar definições certeiras) acrescenta à ciência uma dimensão artística que contribui para a compreensão do que existe de ambíguo e complexo nas enfermidades humanas.
A síndrome de Münchausen, por exemplo, que consiste na simulação de doenças orgânicas que levam a consultas, hospitalizações e cirurgias desnecessárias, recebe este seu nome do barão Karl Friedrich Hieronymus von Münchausen, que existiu de fato, no século 18, mas foi transformado em personagem no livro As loucas aventuras do barão de Münchausen, do bibliotecário alemão Rudolf Raspe. O ponto de contato entre o portador da síndrome e o personagem está na capacidade de criar histórias fantásticas para chamar a atenção dos outros.
Essa e outras doenças cujos nomes se inspiram na literatura são fonte de aprendizado, sugerindo leituras saudáveis e tratamentos preventivos. Afinal, a leitura é também um procedimento de cura, se pensarmos nos termos da biblioterapia.

Alice e Ulisses

A síndrome de Alice no País das Maravilhas foi estudada pelo psiquiatra inglês John Todd, no século passado. Todd adorava ler Lewis Carroll. Podemos dizer que foi mera coincidência ele se interessar pelo estudo das alucinações que afligem a personagem Alice, ou terá sido a leitura atenta de um dos seus autores preferidos que o habilitou a detectá-las?
De qualquer modo, as vítimas desta síndrome (e afirma-se que o próprio Lewis Carroll era uma delas) sofrem de um distúrbio neurológico que afeta sua percepção, provocando distorções visuais e tácteis. Perdem a noção de perspectiva. O tamanho e a forma das partes do seu corpo parecem alterados. As pessoas e objetos que veem assumem novos tamanhos ou parecem mais distantes ou mais próximos do que de fato estão.
O elemento “maravilhoso”, visto pelos ângulos literário e clínico simultaneamente, é assustador. As sensações angustiosas que Alice experimenta naquele reino onde moram cartas de baralho, um chapeleiro maluco, coelhos de casaca e gatos que ficam invisíveis, deixando um sorriso flutuante no ar, tornam-se interessante objeto de pesquisa. E nem mencionemos as escolas maravilhosas que ali existem (talvez algum país adotasse este sintomático modelo pedagógico em tempos delirantes?), conforme se descrevem no Dicionário de lugares imaginários, organizado por Alberto Manguel (Cia. das Letras, 2003):

Várias matérias incomuns são lecionadas nessas escolas: as belas-tretas e o bom estrilo, os diferentes campos da matemática (ambição, distração, murchificação e derrisão); estudos histéricos antigos e modernos, marografia; arte (desgrenhar e espichar em taramela) e os clássicos, pantim e guaguejo.

Uma outra síndrome, não menos “maravilhosa” (adjetivo em sentido trágico, mais do que irônico), carregada de implicações psicológicas, é a síndrome de Ulisses, que afeta a maioria dos imigrantes forçados, pelas circunstâncias de guerra, perseguição ou desastres naturais, a abandonar seus países. Depressão, ansiedade crônica, dores de cabeça contínuas são alguns dos sintomas percebidos em milhões de refugiados, desde o início deste século.
Sem documentos, sem recursos, sem moradia, sem destino, sem referências, homens, mulheres e crianças, distantes de suas regiões de origem, assemelham-se ao personagem de Homero. Ulisses, herói na Guerra de Troia, consumiu-se de tristeza e nostalgia ao longo de quase duas décadas, longe da cidade grega de Ítaca, sua terra natal. A imagem literária de seu quadro de estresse descreve os efeitos de uma duríssima realidade que tantos seres humanos vivem hoje.

Rapunzel e Dorian Gray

A síndrome de Rapunzel, descrita na década de 1960, remete a uma das mais famosas personagens dos Irmãos Grimm. A jovem princesa, aprisionada numa torre inacessível, sem portas ou escadas, possui longos cabelos dourados em trança, corda improvisada pela qual o príncipe amado sobe até sua janela. A bruxa malvada, que a mantinha presa na torre, ao descobrir tudo, cortou-lhe as madeixas e deixou o príncipe cego.
As pessoas portadoras desta síndrome apresentam um aglomerado de fios de cabelo no estômago, causado pelo transtorno compulsivo de arrancar e engolir seu próprio cabelo. Do que a pessoa estará tentando escapar? Em que torre existencial encontra-se aprisionada? No conto (aliás, nada infantil!), Rapunzel, grávida, reencontra o príncipe muito tempo depois, cura-o da cegueira com suas doces lágrimas, e a família, reunida, viverá feliz para sempre.
No único romance de Oscar Wilde, O retrato de Dorian Gray, o personagem é acometido pela síndrome que, em nosso tempo, tornou-se grave fenômeno sociocultural, merecendo entrar na lista dos epônimos médicos: a preocupação obsedante com a aparência física e o inconformismo doentio com o processo de envelhecimento natural.
A síndrome de Dorian Gray, tal como na ficção, provavelmente não terá um final feliz. As incontáveis cirurgias plásticas e o consumo exagerado de cosméticos são apenas manifestações epidérmicas de uma profunda e sofrida dificuldade para aceitar-se a si mesmo. Embora não valha como receita, reler e compreender esse romance pode ser um excelente remédio!

Autor

Gabriel Perissé


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