NOTÍCIA
Livro clássico do historiador Marc Bloch destrincha o funcionamento das estruturas sociais que possibilitaram certas formas de convívio
Publicado em 08/05/2017
Em tempos cada vez mais dedicados ao instantâneo, a observação de aspectos duradouros, feita a partir de diversos ângulos de uma questão, parece não responder às urgências contemporâneas. Assim, uma disciplina como a história tem mostrado, para muitos, interesse cada vez mais rarefeito. Em especial quando se torna uma linha contínua de acontecimentos políticos e econômicos, com nexos causais que soam arbitrários.
Mas, à parte essas teleologias pouco inspiradas, a disciplina continua a exercer poder de sedução. Basta ver quantos adeptos têm longas narrativas escritas ou audiovisuais sobre momentos os mais variados da experiência humana. De um jeito ou de outro – com verdades ou ficção – essas narrativas preenchem o que os relatos da simples alternância de poder não conseguem: mostram como era a vida das pessoas sob os mais diversos aspectos, o que pensavam, o que comiam, como se relacionavam, no que acreditavam.
É esse olhar ampliado, dedicado a entender o funcionamento das estruturas sociais que possibilitam ou explicam certas formas de convívio que está presente em uma das maiores obras historiográficas do século 20: A sociedade feudal, do francês e precursor da Escola dos Annales Marc Bloch, lançada no final de 2016 pela Edipro, com competente tradução e prefácio de Laurent de Saes, doutor em história pela USP.
O livro de Bloch é um marco. Lançado originalmente em dois tomos nos anos de 1939 e 1940, foi concebido no bojo de um ambicioso projeto: o de escrita coletiva de uma coleção batizada de A evolução da humanidade, proposta por um professor do ensino secundário francês!
Bloch, a princípio, deveria assumir outros volumes também, mas priorizou aquele voltado ao final do Império carolíngio e ao regime feudal. Em sintonia com suas crenças e de seu amigo Lucien Febvre, concebeu uma obra que penetrasse nas formas de vida reinantes da época, mostrando não a linha cronológica factual, mas os aspectos que a tornaram possível.
Como bem escreve Saes na introdução, “Bloch e Febvre queriam resgatar as forças estruturais subjacentes à trama dos acontecimentos, em uma história que contemplasse os comportamentos, os valores, as mentalidades. Queriam, em resumo, uma história ampliada e aprofundada pela diversificação dos objetos e das abordagens, assim como pela formulação de novos problemas”.
Assim, em oposição à história de tradição positivista do século 19, os autores da Escola dos Anais abrem diálogo com outros campos do saber como forma de observar o fenômeno histórico, com clara influência de Emile Durkheim e das ciências sociais.
Saes enfatiza a pluralidade de disciplinas (geografia, antropologia, psicologia coletiva, etnografia, biologia, direito, teologia, linguística) usadas na construção para a análise das duas idades feudais caracterizadas por Bloch. A primeira, iniciada em torno de 900, marcada pelas invasões e desagregação de poder; a segunda, dos séculos 11 a 13, com a reorganização social.
Em estudo anterior, Os reis taumaturgos, em que analisa o rito do toque e a crença no poder de cura da realeza entre a Idade Média e o século 18, na França e na Inglaterra, Bloch já havia treinado a perícia para esses pequenos rituais, que reaparecem em A Sociedade Feudal nas cerimônias em que vassalos se comprometem com senhores ou nobres. É apenas um dos exemplos dos variados matizes de que faz uso para analisar o período.
Outro interessante é a linguística, por meio da qual Bloch mostra a fortíssima influência que os povos do norte da Europa, os vikings, iriam exercer sobre as vastas porções de terra que invadiram entre os séculos 8 e 11, seja na Grã-Bretanha, seja na região continental do Império carolíngio. No francês, havre (porto) e crique (angra), são tributárias da presença normanda, assim como no inglês sky (céu), low (baixo) ou verbos como to call (chamar) ou to take (tomar), este último provavelmente repetido à exaustão pelos temidos invasores.
Para construir o ambiente de sua história, Bloch nos mostra as raízes de formação dessa Europa, com os movimentos advindos das invasões, seja pelos povos do norte, seja pelo leste, com os húngaros, ou pelo sul, com os árabes. E, como, para superar essa instabilidade, o tecido social como um todo foi se refazendo ao criar novas relações de dependência que garantissem certa segurança e desenvolvimento econômico.
Curiosidade: muitas das estruturas descritas por Bloch parecem estar presentes nas quatro temporadas da série Vikings (NetFlix).