O boto cor-de-rosa, figura lendária e recorrente no imaginário da floresta, aparece travestido de homem (Imagem: Divulgação)
Nas comunidades ribeirinhas do Amazonas, os mitos se misturam à vida cotidiana e têm força de explicação para muitas questões da existência. Assim, o Curupira, normalmente associado a uma figura masculina jovem, de cabelos compridos e avermelhados, com os pés voltados para o lado oposto à parte frontal do corpo, está no imaginário coletivo como protetor da floresta e seus habitantes. É ele quem assombra aqueles que contra ambos atentam, seja caçando por diletantismo, derrubando suas matas, perturbando os sons naturais ou, grande heresia, trabalhando aos domingos.
É por infringir este último mandamento que o narrador de
Nas águas do Rio Negro, membro de uma expedição universitária conduzida pelo barco Escola da Natureza, acaba perdido na floresta. Ao acordar na rede em que adormecera, no convés do barco, não viu nada além de um silêncio profundo, quase atemorizante, que o destituíra de seus acompanhantes. A voz solitária restante, do cozinheiro, lhe disse que os outros já haviam deixado o barco.
Ao tentar encontrá-los, o narrador se viu perdido na mata, ainda que fosse sempre reconhecendo lugares por onde julgava já ter passado. Na mata, um jovem fugidio, encontrado duas vezes, lhe indicaria caminhos que se revelariam contrários ao destino desejado. E, qual um Ulisses, o narrador foi se emaranhando em sua pequena Odisseia até descobrir que aquele era o Curupira… e que era domingo, dia de forçosa pausa na floresta!
Esse narrador expedicionário, que como um ribeirinho vai misturando os fatos vividos com os mitos que ajudam a dar sentido à vida nesse mundo tão distinto daquele de suas origens (aquelas, já retratadas num simpático livro sobre o bairro paulistano do Brás), é ninguém menos do que o médico Drauzio Varella.
Frequentador assíduo das expedições pelo Rio Negro, onde já esteve mais de 100 vezes, esse mesmo doutor Drauzio – que agora também nos lega, em outra obra voltada ao público adulto, um retrato dos presídios femininos – brinca aqui com as lendas amazônicas, do Curupira ao peixe boto, passando pela mula sem cabeça e a cobra-grande. E o faz no espírito local, como se recordasse vivências tão nítidas quanto provadas.
E não perde a oportunidade de falar do que efetivamente procura em suas incursões: plantas para colher medicamentos, as quais, por sua longevidade e resistência a inimigos diversos (fungos, bactérias, vírus), podem ser poderosos elixires para o corpo humano. E também não deixa de lado uma boa descrição deste que é o terceiro maior rio do planeta, com 1,7 mil quilômetros de um extenso traçado que começa na Colômbia para desaguar no rio Amazonas.
Em suma, há um pouco de tudo: lendas amazônicas, aventura, ciência, geografia e, sobretudo, o poder da narrativa.
Nas águas do Rio Negro, de Drauzio Varella, ilustrações de Odilon Moraes (Companhia das Letrinhas, 56 páginas, R$ 44,90, e-book: R$ 27,90) | Crédito: Divulgação