Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
Desde sua aprovação, em 4 de julho, a política de cotas sociais e étnico-raciais adotada pela USP tem gerado debates apaixonados. Trata-se, de fato, de tema controverso, porque implica concepções alternativas acerca do significado da universidade pública e de seu papel social. O jornal
O Estado de S. Paulo, por exemplo, argumentou em recente editorial que, por se ver obrigada a destinar verbas de pesquisa para a manutenção dos cotistas, a universidade terá de diminuir a verba destinada ao ensino e à pesquisa, o que pode comprometer sua excelência. O argumento soa plausível, mas simplifica questões bastante complexas.
Em primeiro lugar porque sugere que não haja outras fontes de recursos para financiar o apoio e a manutenção desses ingressantes. Só para recorrer a uns poucos exemplos: quanto a universidade gasta com seus carros luxuosos destinados aos diretores, pró-reitores, reitor e toda a alta burocracia que a dirige? (Não me parece que esse privilégio injustificável seja essencial para a manutenção de sua qualidade acadêmica!) Quanto gasta com a segurança privada que passeia pelos estacionamentos sob a alegação de proteger a propriedade privada de professores e alunos? A adoção das cotas em meio à crise econômica pela qual passa a universidade pode ser uma grande oportunidade para detectar e banir privilégios econômicos e sociais que distorcem o sentido público da universidade.
Em segundo lugar há a sugestão – pouco examinada – de que, por ser uma política de ação afirmativa, a adoção de cotas representaria a recusa do mérito acadêmico como critério de seleção. Ora, o que o sistema de cotas opera não é a abolição, mas antes o aperfeiçoamento dos mecanismos seletivos fundados no mérito individual. Isso porque ele atenua, em alguma medida, o peso de variáveis sociais extraescolares no rendimento da aprendizagem individual. Sabemos, por exemplo, que a escolaridade dos pais é uma das variáveis de maior peso no rendimento da aprendizagem escolar das crianças. Sabemos ainda que, no Brasil, a maior parte dos pais com alto grau de escolarização mantém seus filhos em escolas privadas. Assim como sabemos que a população negra deste país, mesmo depois de liberta, foi mantida longe dos bancos escolares.
Comparemos, a título de ilustração, duas trajetórias distintas. A de um adolescente oriundo de uma família branca, altamente escolarizada, que frequentou uma escola privada cuja carga horária é substancialmente maior do que a da pública e cujo aproveitamento médio no vestibular da Fuvest foi, por exemplo, de 70%. Agora a de um jovem negro, cujos pais têm menos de quatro anos de escolaridade, que frequentou uma escola pública, nunca fez curso de inglês ou de matemática com professores particulares e cujo aproveitamento médio no mesmo exame foi, por exemplo, de 60%. A qual das trajetórias você atribuiria maior mérito individual? Ora, nenhuma consideração de mérito pode tomar como referência apenas o ponto de chegada. Para ser minimamente comprometida com a justiça, ela precisa considerar a diferença nos pontos de partida.
A política de cotas não representa, pois, a rejeição da noção de mérito acadêmico, mas seu aperfeiçoamento. No lugar da abstrata igualdade de critérios para os que vivem a desigualdade de condições, ela introduz o princípio da equidade. Sua adoção não é uma panaceia para os problemas da escola e da universidade pública. Mas pode ser a afirmação de seu compromisso com o ideal de uma escola justa. O que não é pouco em um país marcado por toda sorte de injustiças.