Educadores defendem que currículo da Educação de Jovens e Adultos (EJA) precisa de orientações específicas. Na foto, alunos assistem aula da modalidade no Cieja Campo Limpo. (Foto: Gustavo Morita)
A Educação de Jovens e Adultos (EJA), assim como as outras modalidades da educação básica, também terá como referência para elaboração de seu currículo a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), cuja terceira versão foi divulgada em abril deste ano. O documento não dá orientações específicas para a modalidade, e as adaptações deverão ficar a cargo de estados e municípios, também responsáveis pela adequação às realidades locais.
De acordo com Maria Helena Guimarães, secretária executiva do MEC, o objetivo de não tratar a modalidade separadamente foi “não estigmatizar o público da EJA, retirando-o da educação regular”. “Na LDB, essa modalidade está incluída na educação regular e, como tal, foi considerada no conjunto dos direitos de aprendizagem de todos”, afirma. “Também não há algo específico para a educação indígena. Isso é questão do currículo, e a base não é currículo”, justifica Guiomar Mello, que participou da redação da terceira versão da BNCC.
A ausência de orientações para a elaboração do currículo da EJA, contudo, foi motivo de críticas por parte de educadores e pesquisadores. O motivo é a especificidade da modalidade, que atende um público muito heterogêneo e distinto do ensino regular, o que exige adaptação tanto dos conteúdos abordados quanto da maneira de tratá-los em sala de aula (leia mais ao fim da reportagem).
“Os conteúdos devem estar de acordo com a realidade dos alunos, respeitando os seus conhecimentos prévios, que não são os mesmos dos alunos do regular”, explica Tatiana Sznik, professora de inglês na EJA da Emef Doutor Fábio da Silva Prado. “Na prática, busca-se que os alunos desenvolvam a autonomia na aprendizagem, não que decorem conteúdos. Para isso, é preciso aproximar os saberes de sua realidade.”
Segundo Roberto Catelli Júnior, da ONG Ação Educativa, o resultado de currículos ou abordagem inadequados na EJA pode ser a evasão – um dos grandes problemas enfrentados pela modalidade. “A desistência tem a ver com três coisas, pelo menos: problemas de trabalho, de moradia ou de localização da escola, e o próprio currículo. No caso do currículo, às vezes porque a escola tem um horário extenso demais, ou um modelo de aula em que o aluno não acredita. Aí, ele simplesmente vai embora”, explica.
“A Base deveria ter um capítulo especial para a EJA, para as modalidades”, defende Catelli. Nele, poderiam ser dadas orientações sobre as diferenças da modalidade com relação ao ensino regular, o que auxiliaria as redes nas discussões sobre o currículo.
Sandra Leite, da Faculdade de Educação (FE) da Unicamp, também acredita que a Base deveria contemplar as particularidades da educação de jovens e adultos, e critica o fato de a modalidade ocupar um papel quase sempre de coadjuvante nas discussões sobre educação básica. “A EJA sempre aparece nos documentos legais ‘entre vírgulas’, como se a educação básica, regular e escolarizada, fosse toda uma coisa só”, diz.
A Base e a EJA
Dar orientações específicas, porém, nunca foi um dos objetivos da Base Nacional Comum Curricular. Hilda Micarello, coordenadora das duas primeiras versões do documento, diz que a intenção não era abordar as modalidades separadamente, mas sim oferecer parâmetros que valessem para toda a educação básica. “Nosso entendimento sempre foi que, uma vez definido na Base esse conjunto de objetivos de aprendizagem para toda a educação básica, caberia a cada sistema fazer as suas adequações”, afirma.
Nas primeiras versões da BNCC, os termos jovens e adultos aparecem diversas vezes no texto, numa tentativa de incluir esse público. Na segunda versão há, inclusive, parágrafos que citam as modalidades, prevendo a produção posterior de documentos que tratassem de como a Base se colocaria em relação a elas, já que possuem diretrizes próprias. “Da primeira para a segunda versão, tentamos tornar ainda mais explícita essa ideia de que, definida uma base para a educação básica, deveria dialogar com a EJA e com as outras modalidades”, explica Hilda Micarello.
Na segunda versão, houve uma maior aproximação com a Secadi (Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão). “Isso foi parte do processo, assim como foi com as associações científicas e movimentos sociais, além das contribuições do público”, conta Micarello.
Já na terceira versão, a expressão ‘jovens e adultos’ aparece de maneira menos recorrente. Segundo Guiomar Mello, a terminologia adotada na Base é genérica. “As adaptações ficariam a cargo de estados e municípios mesmo quando estava citado”, diz, negando um possível impacto da mudança.
Diretrizes para a EJA
A necessidade da elaboração de propostas curriculares para a EJA não é uma discussão recente. As Diretrizes Curriculares Nacionais para a modalidade foram publicadas em 2000, por meio do parecer no 11 do CNE, cujo relator foi Carlos Roberto Jamil Cury. Posteriormente, em 2010, foram publicadas as diretrizes operacionais, que tratam da duração dos cursos, idade mínima para ingresso e a educação a distância na modalidade.
“Ao longo dos anos, o parecer de Jamil Cury recebeu aditivos, que tratam da organização da modalidade dentro da educação básica. São elementos que influenciam muito quando vamos discutir currículo, mas que não tratam de orientações curriculares”, explica Elisabete Oliveira, professora do Instituto Federal de Alagoas (IFAL).
Nesse sentido, há a Proposta Curricular Nacional para a EJA, publicada em 2001, voltada apenas aos anos iniciais do ensino fundamental – o chamado ‘primeiro segmento’. O documento foi elaborado a partir de uma iniciativa da ONG Ação Educativa. Em 2002, foi publicada uma proposta voltada ao segundo segmento, correspondente aos anos finais da etapa. Um documento nos mesmos moldes, mas voltado ao ensino médio, nunca chegou a ser produzido. Desde então, também não houve a elaboração de novas propostas nacionais. As PCNs para o primeiro e o segundo segmento da EJA estão disponíveis no site do MEC.
Para Paulo Mello, da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), a desatualização do currículo é prejudicial, uma vez que os conteúdos a serem ensinados e discutidos devem estar sempre conectados com o momento vivido pela sociedade. “Todo currículo é um documento histórico, porque é datado. Responde a demandas do campo da educação num certo instante, no plano dos estudos científicos e do que se considera relevante numa determinada época”, afirma.
O professor exemplifica com temas que ganharam importância nos últimos anos e que, por isso, devem integrar os currículos. “Hoje, as demandas de estudos sobre a diversidade são uma questão fundamental. Os direitos humanos, na área de humanidades, também são uma discussão importante.”
Mas, se não há documentos com orientações curriculares mais recentes em nível nacional, o mesmo não se pode dizer das realidades locais. Alguns estados e municípios têm publicado suas próprias propostas curriculares para a EJA. Não há um levantamento que mostre quantos entes federativos possuem diretrizes para a EJA, mas em estados como São Paulo e Santa Catarina, por exemplo, valem os mesmos documentos elaborados para a educação básica como um todo. Já Distrito Federal, Paraná, Tocantins, Rondônia, Rio de Janeiro e Alagoas têm currículos específicos.
Para Sandra Leite, da Unicamp, a discussão de currículos específicos para a EJA no âmbito das secretarias, tendo a BNCC como referência, é ‘a esperança que resta’. “Não é impossível, mas é difícil”, avalia.
O que tem sido feito
Professores de EJA consultados pela reportagem afirmam que, atualmente, a definição do currículo da modalidade ocorre a partir de discussões dentro das próprias escolas. Há grande preocupação em conectar os conteúdos com o cotidiano do aluno e de oferecer um tratamento mais adequado aos adultos. Elaine Barbosa, que dá aulas de português para turmas de EJA na Emef Min. Synesio Rocha, no Campo Limpo, zona sul de São Paulo, exemplifica: “O aluno da EJA tem necessidade de escrever, contar o que viveu. Tem mais necessidade de registrar. Se você trata o conteúdo mais oralmente, ele sente que não ‘fez lição’”.
Para Êda Luiz, coordenadora geral do Cieja Campo Limpo, o fato de essas discussões acontecerem no âmbito das escolas tem sua importância. “O lado positivo [de não haver uma base específica para a EJA] é que nos dá a liberdade de formular, confeccionar, organizar, elaborar nosso currículo”, diz a coordenadora.
Êda Luiz, coordenadora geral do Cieja Campo Limpo: a favor da liberdade de definir o currículo no âmbito das escolas onde há oferta de EJA (Foto: Gustavo Morita)
No caso do Cieja, tanto a definição do currículo quanto a organização da modalidade são marcadas pela flexibilidade e pela participação dos alunos. Os três turnos do dia são divididos em vários períodos de 2 horas e 15 minutos cada um – em vez de aulas de 45 minutos. O aluno pode frequentá-los de acordo com sua disponibilidade. A sexta-feira é reservada para a realização de uma pesquisa sugerida pelo professor, que pode ser feita na escola ou em casa. A sexta-feira mais flexível foi um pedido dos próprios alunos. “Nesse dia da semana, eles fazem muitos ‘bicos’. Também ajuda a economizar na condução”, diz Êda. O resultado dessas ações, de acordo com a diretora, é uma diminuição da evasão.
Os conteúdos são estudados de maneira interdisciplinar e partem das demandas dos alunos, que escolhem um tema gerador. Em 2017, esse tema é saúde. Os estudantes fazem rodízio em cada área do conhecimento, passando um mês em cada uma, e abordam os conteúdos a partir de situações-problema. “Em ciências, por exemplo, discutem saúde numa perspectiva científica. Em ciências humanas, alguma coisa de saúde pública como, por exemplo, o SUS”, explica Dennis Bluwol, professor de geografia no Cieja Campo Limpo. “O tema é uma isca para trabalharmos as habilidades, que são a questão principal da escola. Trabalhá-las a partir de um tema escolhido pelos alunos facilita essa ponte.”
Para Bluwol, a questão fundamental na EJA é a mediação feita a partir do conteúdo. “Você pode fazer um curso sobre
Aedes aegypti, com trabalho de conscientização ecológica, discussões éticas sobre a questão urbana; mas pode, ao mesmo tempo, fazer um curso sobre astronomia e ter discussões éticas e existenciais a partir da astronomia. Nos dois casos, consegue mediar aquilo com a vida concreta do aluno, com questões de como ele se coloca no mundo, sua participação numa teia de relações.”
Livro didático
Em muitos casos, na falta de diretrizes ou orientações, o maior definidor dos conteúdos da EJA acaba sendo o livro didático. O material funciona como um guia do que deve ser abordado nas aulas, mas não é incomum encontrar professores que dizem buscar, também, material de apoio. A modalidade entrou no Plano Nacional do Livro Didático (PNLD) em 2009, e teve duas edições desde então, em 2011 e 2014. Em 2017, quando se completam três anos desde a última edição, ainda não foi publicado um novo edital.
Segundo Paulo Mello, que fez parte da equipe pedagógica do PNLD/EJA de 2011, na prática, já existe um currículo. “Se existe um programa com livros didáticos que preveem conteúdos numa determinada organização, existe um currículo. Não se avalia os livros de EJA com os mesmos critérios do ensino dito regular. Por que não? Porque são conteúdos diferentes, há uma realidade específica, um currículo próprio. Se você não pode avaliar com os mesmos critérios o livro, por que poderia ter um currículo genérico?”, questiona.
Elaine Barbosa, professora de língua portuguesa na Emef Ministro Synesio Rocha, diz se basear no material didático, mas não restringir as aulas ao que eles propõem. Para a professora, um dos grandes obstáculos enfrentados na utilização dos livros do PNLD/EJA é que, em muitos casos, os textos não se conectam à realidade dos alunos. “No caso de um texto sobre um tsunami que aconteceu no Japão, por exemplo, o aluno vai ler, mas não vai se mobilizar. Depende mais do direcionamento do professor com relação aos textos do que de seguir exatamente o que está no livro didático.”
Lucy Pacheco, professora de matemática na EJA na mesma instituição, conta que o aluno dessa modalidade busca uma aplicação prática dos conteúdos. Para que isso seja possível, é preciso fazer um diagnóstico da turma. “O livro didático traz algumas sugestões, mas conhecendo o aluno, o trabalho que ele realiza, a gente consegue fazer uma relação melhor, mais próxima.”
Tanto para fazer a aplicação prática quanto para estabelecer reflexões mais profundas em sala de aula, as educadoras afirmam que é preciso extrapolar o livro didático. E aí entra a importância de o professor estar preparado para atuar na modalidade. “Na EJA, a gente foge das perguntas do livro, buscamos algo mais reflexivo”, diz Elaine Barbosa, exemplificando com certo infantilismo das indagações propostas. “Se fala de duas pessoas, por exemplo, pergunta quem são elas.”
Para Roberto Catelli, as escolas que oferecem EJA acabam tendo de ‘se virar’, pois as discussões e definições sobre o currículo acabam ficando restritas ao nível das redes e instituições. “Deveria haver orientações às redes sobre como organizar uma política de EJA e, eventualmente, sugerir, não compulsoriamente, abordagens, temas, conteúdos que parecem pertinentes a esse aluno.”
Resta indagar o quanto todas essas definições prévias não deveriam estar vinculadas à formação e à preparação específica do professor que atua na modalidade.
O público da EJA
A Educação de Jovens e Adultos conta com um público muito diverso. Dentro da mesma sala de aula, há adultos de 40 anos ou mais, jovens de 20 a 24 anos e adolescentes de 14 a 17 anos (veja quadro abaixo). A modalidade vem passando por um processo de ‘juvenilização’, atendendo até mesmo um público que deveria estar matriculado no ensino regular. Legalmente, a idade mínima para ingresso em turmas de EJA é de 15 anos no ensino fundamental e 18 no médio. Mas há redes que permitem o ingresso aos 14 anos, desde que os alunos completem 15 no mesmo exercício.
Êda Luiz, do Cieja Campo Limpo, conta que, na instituição, 29,5% dos matriculados têm entre 15 e 18 anos. Para atender esse público é preciso repensar o currículo. “Normalmente, pensar em EJA é pensar em alguém com mais experiência, que sabe usar algumas habilidades que esses adolescentes ainda estão adquirindo”, explica.
O adolescente que chega à EJA, em geral, foi expulso ou passou por muitas reprovações no ensino regular, avalia Dennis Bluwol, professor do Cieja Campo Limpo. “Ele vem para a EJA porque as escolas não querem lidar com pessoas de verdade”, afirma.
Se para o público dessa idade talvez o conteúdo mais próximo daquele do ensino regular seja o mais adequado – uma vez que o objetivo pode mesmo ser ‘correr atrás’ para conseguir a certificação, fazer vestibular e se inserir no mercado de trabalho –, o mesmo não vale para os mais velhos. No caso deles, a perspectiva não é a de ir para a faculdade, mas sim a de ter elementos para entender melhor o mundo em que vivem.
Fonte: Inep/Censo 2016
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