NOTÍCIA
Psicanalista foi grande divulgadora da área, além de autora da primeira tese sobre relações raciais produzida no Brasil
Publicado em 04/10/2017
No I Congresso Latino-Americano de Saúde Mental, em 1954, Virgínia sofreu um processo de acusação sobre sua prática. Os temas centrais do evento eram a influência e a inserção da teoria psicanalítica no meio social e científico. Ali, multiplicaram-se expressões de hostilidade por parte de médicos, com críticas severas àqueles que exerciam a profissão sem a formação médica. Uma das mesas era destinada à apresentação dos trabalhos realizados pela Seção de Higiene Mental Escolar, com a presença de Virgínia Bicudo, além de Lygia Amaral e Judith Andreucci – nenhuma das três médica.
O primeiro diretor do Conselho de Medicina de São Paulo, Flamínio Fávero, foi um dos responsáveis por uma ofensiva feroz de desmoralização contra Virgínia Leone Bicudo. Nessa época os médicos chegaram a distribuir panfletos em que se lia: “Se eres neurótico e queres se tornar psicótico, procura a doutora Virgínia Bicudo. Se trate com a doutora Virgínia Bicudo”.
Alguns pesquisadores supõem que a ida de Virgínia Bicudo a Londres, em 1955, para realizar uma especialização para o atendimento de crianças teria sido uma resposta a essa situação, buscando a valorização de seu potencial intelectual como tentativa de se legitimar como psicanalista.
Visitadora social psiquiátrica
A equipe da Seção de Higiene Mental Escolar, da qual Virgínia participava, atuava em duas frentes principais: diretamente com as crianças (oferecendo atendimento médico e psicoterápico); e indiretamente, modificando o ambiente da criança (a escola ou sua casa), por meio de orientações aos adultos cuidadores. Os princípios desse serviço se baseavam numa filosofia higienista, no movimento da Escola Nova. Crianças até então caracterizadas como “anormais” passaram a ser distinguidas entre as que teriam problemas emocionais e as que seriam portadoras de deficiência mental, numa visão bastante inovadora para a época. O serviço era composto por um médico psiquiatra (para avaliação do estado mental), um médico internista (para exame físico), um “psicologista” (para avaliar a condição intelectual e a estrutura de personalidade por meio de testes) e uma visitadora psiquiátrica, função que Virgínia Bicudo exercia (para colher a história de vida das crianças por meio de entrevistas com pais e professores e de observações diretas na escola e na família). Ela também orientava pais e professores.
É importante lembrar que o trabalho como educadora sanitária e visitadora psiquiátrica exigia e propiciava uma circulação pela cidade bastante nova para as mulheres da época, uma vez que a rua era, até a década de 1920, um ambiente marcadamente masculino.
Primeira pesquisadora sobre o racismo
Em 1942, entrou na recém-criada pós-graduação da Escola de Sociologia e Política, na qual elaborou sua dissertação de mestrado, “Estudo de atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo”, apresentada em 1945, a primeira tese produzida no Brasil sobre relações raciais. Utilizou entrevistas e depoimentos de 31 pessoas – distribuídas entre as de classe “inferior” e “média” (segundo condição econômica, profissão e nível de instrução), divididas entre “pretos” e “mulatos” – e pesquisa da documentação da Frente Negra Brasileira e do jornal Voz da Raça, entre 1941 e 1944, produzindo um trabalho que articulou a sociologia, a antropologia e a psicologia social.
Chegou à conclusão de que, mesmo quando diminuíam as diferenças sociais, permanecia o preconceito de cor. Tal apontamento foi fundamental para se contrapor às concepções de harmonia racial na sociedade brasileira, por meio das quais se acreditava que o preconceito de cor estava submetido ao de classe.
Além de falar da importância da transferência na relação entre entrevistador e entrevistado, ela apontou a necessidade de abordar processos sociais e psicológicos para se depreender o significado de atitudes que manifestavam seus entrevistados. Também apontou o quanto era legítimo formular hipóteses sobre as imposições sociais que seriam decorrentes da estrutura social, ou seja, acreditava ser possível conceber atitudes de “pretos” e “mulatos” como reflexo da atitude dos brancos, e assim buscar algo da atitude desse grupo étnico também.
Ao falar da integração do mulato das classes intermediárias, categoria na qual se encaixaria se fosse uma das entrevistadas, Virgínia propôs a hipótese de que a discriminação era baseada em cor, não em raça ou etnia. Ou seja, mesmo diante do esforço de elevar seu status educacional e profissional, pretos e mulatos encontravam restrições no meio dos brancos, a menos que fossem branqueados na cor e na personalidade, obtendo, então, maior aceitação social. Trata-se de um trabalho pioneiro que antecipou formulações de uma série de investigações atuais sobre os temas da negritude e da branquitude.
Divulgadora da psicanálise
Nos anos 1950, apresentou um programa na rádio Excelsior, o Nosso Mundo Mental. Nesse programa, que fez muito sucesso, artistas dramatizavam os textos que Virgínia escrevia para divulgar conceitos e situações sobre a psicanálise. Ela também publicava uma coluna semanal no Jornal da Manhã, com o mesmo nome do programa, que ocupava uma página inteira e circulava aos domingos. Posteriormente, a partir de julho de 1954, publicou por mais seis meses no mesmo espaço do jornal textos produzidos com base na transcrição dos programas de rádio que haviam sido apresentados nos anos anteriores.
Também escreveu diversos artigos e ensaios, reunidos no livro Nosso mundo mental, editado em 1956 pela Instituição Brasileira de Difusão Cultural. Em um deles, revela seu ponto de partida: “uma criança-problema reflete sempre a situação total, isto é, criança-ambiente, não se podendo pois tratá-la isoladamente como forma de expressão do problema, mas tendo-se de lidar com ela como um todo em determinado ambiente”.
Relata no livro, por exemplo, aulas sobre educação sexual a adolescentes e adultos, ao avaliar que não estariam sendo transmitidos a eles os conhecimentos fundamentais: “No tocante aos problemas sexuais, os adolescentes têm de orientar-se por si, porque os pais não têm ‘coragem’ para ventilar o assunto com os filhos e nem a escola está preparada para incluir a educação sexual em seu currículo. Quando muito a escola secundária inclui a anatomia e a fisiologia dos órgãos da reprodução, porém os aspectos emocionais que entram nos conflitos dos adolescentes são banidos de qualquer curso”.
Não há dúvida de que Virgínia colocou grande ênfase no papel dos pais, mas não descartou a importância de fatores econômicos: “A pobreza e a ignorância condicionam situações desfavoráveis ao desenvolvimento sadio da personalidade, porém são as atitudes e os afetos dos adultos que mais diretamente atingem a criança”.
Apresentou o desenvolvimento psíquico da criança desde o nascimento, passando por diversas fases até a vida adulta, abordando as noções de desejo inconsciente e conflito mental; as formas de expressão da agressividade, amor, medo; os sentimentos que acompanham a situação edípica (inveja, ciúmes, rivalidade, culpa e angústia de castração); a importância da fantasia; as atitudes contraindicadas na educação (rejeição e favoritismo, superproteção); a adolescência; a psicoterapia; reeducação e princípios da higiene mental aplicados à educação.
Ainda que se possa questionar o quanto muitas dessas noções do que seria saudável e desejável no ambiente familiar e escolar produzem de normatização, é preciso reconhecer que Virgínia Bicudo abriu questões fundamentais para um público bastante diversificado. É indubitável que suas reflexões mostram-se de interesse até os dias atuais.
Professora universitária e analista didata
No início da década de 1940, Virgínia Bicudo começou a lecionar, com Durval Marcondes, higiene mental e psicanálise na Escola Livre de Sociologia e Política, transformando essa instituição num espaço importante de difusão de “saberes psi” em São Paulo.
Em 1961, foi indicada a assumir a direção do Instituto de Psicanálise e se manteve no cargo por 14 anos. Durante os anos 1960 e 1970, gozou de grande prestígio e reconhecimento público, tendo se tornado uma profissional bastante requisitada. A espera para conseguir um horário de supervisão com ela poderia ser de quatro anos.
Em 1970, fundou o Grupo Psicanalítico de Brasília e, posteriormente, o Instituto de Psicanálise de Brasília, alternando períodos em São Paulo e na capital federal. Construiu um círculo de relações e amizades significativamente amplas, que a colocou em contato com a vida social e política de ambas as cidades.
Já idosa, passou a morar definitivamente em São Paulo e tornou a marcar sua pertença racial (o que já havia feito em seu mestrado) e a relembrar sua origem de classe, usando turbantes, voltando a morar no apartamento simples de sua juventude, constatando a distância dos amigos “profissionais”, dedicando-se aos dramas familiares, sendo esquecida publicamente. Pode-se dizer que morreu como mulher negra. No entanto, atualmente, diversos pesquisadores têm se dedicado a escrever dissertações e teses sobre ela, acentuando o pioneirisno de suas ideias, obras e atividades.