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Nos tempos que correm, quando ato e representação são tomados pela mesma coisa por absoluta falta de discernimento daqueles cuja cidadania parece ter sido despertada pelo uso contínuo das redes sociais, o debate sobre ensino confessional e laicidade do Estado torna-se particularmente delicado.
E essa atmosfera de aspereza social parece ter levado os juízes do Supremo Tribunal Federal (STF) a ratificar o espírito nacional, aquele que busca sempre acomodar as situações sem bulir com as forças que têm mais poder nos bastidores da República.
Esse espírito, diga-se, domina a Constituição Federal no que diz respeito à laicidade do Estado. Ao contrário da Constituição francesa, por exemplo, que declara com todas as letras a laicidade do Estado, a nossa apenas a tangencia. Diz que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença” (art. 5o) e veda aos entes federativos que estabeleçam “cultos religiosos ou igrejas”, que os subvencionem, financiem ou mantenham “com seus representantes relações de dependência ou aliança” – e aí vem o senão que salvaguarda os arranjos de conveniência – “ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público” (art. 19o).
Estes, normalmente, são os dois artigos apontados como indicativos da laicidade do Estado no Brasil. Como o artigo 210, em seu parágrafo 1o, diz que “o ensino religioso, de maneira facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental”, havia muitos anos que o país esperava pela interpretação do STF sobre a possibilidade de o Estado oferecer ou não um ensino religioso confessional.
Apoiada na apontada “facultatividade da matrícula”, a juíza Carmen Lúcia desempatou a votação alegando não ver “contrariedade que me leve a declarar inconstitucionais as normas declaradas”.
Esquecem-se a juíza e seus cinco pares que com ela votaram que a escola não é lugar para professar fé alguma, e sim para propagar e estimular o conhecimento e o pensamento científico. Que as religiões, como significativa manifestação humana na qual se originam questionamentos sobre o universo e o nosso lugar nele, requer o olhar e a compreensão intelectual dos estudantes, não há sombra mínima de dúvida. Mas atrelá-la, sob o patrocínio do Estado, a qualquer visão destituída de uma busca do entendimento da espiritualidade como fenômeno, e não como objeto de identificação, é deturpar o sentido republicano da escola pública.
E significa, sobretudo, manter a eterna cordialidade nacional, que prefere misturar fronteiras do público e do privado a confrontar os interesses do patrimonialismo que nos corrói em três tempos, passado, presente e futuro. Ancorados na dubiedade da linguagem e das ações, seguimos os mesmos.