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Arte e Cultura

Um touro diferente

A história de Ferdinando é uma lição de pacifismo e tolerância

Publicado em 31/01/2018

por Gabriel Perissé

touro ferdinando

Foto: Divulgação


É um movimento normal da mente humana voltar-se para a antítese, para o contrário, para a diferença. Isto já dizia Goethe em relação às palavras e conceitos: toda palavra suscita o seu antônimo. Falamos “alma”, vem à memória “corpo”. Pensamos em “noite”, vêm à tona “dia”, “manhã”, “alvorecer”.
A ironia, por exemplo, trabalha com o oposto do explícito. Machado de Assis dizia que era fácil suportar a cólica do próximo. Sem dúvida, a dor do outro está do outro lado, e não me afeta diretamente. A tristeza da dor alheia não me diz respeito, se não pratico a solidariedade. Também o paradoxo baseia-se nessa estratégia intelectual: o mito definido como “o nada que é tudo”, nas palavras de Fernando Pessoa, diz tudo.
A sempre empolgante luta entre o bem e o mal demonstra que polaridade jamais enfrenta problemas de aceitação. Amor e ódio, certo e errado, sim e não, justo e injusto, verdade e mentira, céu e inferno (com um terrível purgatório no caminho de Dante), vida e morte… Romances, filmes, teatro, música, pintura, e todos os diálogos em que Sócrates buscava o que não é para saber o que de fato é. Eis o jogo que leva torcidas e leitores ao delírio.
Ferdinando está de volta
Em 1936, o escritor e ilustrador norte-americano Munro Leaf publicou um livro que rapidamente tornou-se long-seller internacional, com base nas antíteses forte x sensível, ferocidade x mansidão, violência x não violência. The story of Ferdinand, cujo título em português é O touro Ferdinando, completa este ano 82 anos de promissora carreira. Já foi editado em inúmeros países e recebeu duas adaptações para o cinema: em 1938, pelos estúdios da Disney, e agora, em 2018, pela Blue Sky Studios (com direção do brasileiro Carlos Saldanha).
A simplicidade da história (que foi escrita pelo autor em menos de uma hora) realça o contraste entre o mundo da força venerada e o comportamento pacato do touro Ferdinando. O touro que gosta de cheirar flores jamais terá a performance que dele se espera na arena. Em lugar de distribuir chifradas contra toureiros famosos, Ferdinando prefere a tranquilidade do campo. Seu fracasso como animal agressivo não lhe causa o menor aborrecimento. É feliz sendo o que é: um touro diferente.
Por que será O touro Ferdinando (Editora Intrínseca, 2017) leitura educadora? Ferdinando surpreende desde quando era ainda bezerro. Desde pequeno, evita as brincadeiras brutais dos seus colegas de idade. Não gosta de ficar pulando e trocando cabeçadas com os outros bezerros. Para que isso? Prefere ficar sentado, à sombra de uma frondosa árvore, no meio das flores. Ferdinando é um autêntico pacifista. Não à toa, Gandhi e Martin Luther King se encantaram com a narrativa.
Sua mãe, observando o estranho comportamento do filhote, ficava apreensiva. Temia que ele se sentisse sozinho. Ela o procura para conversarem:
— Por que você não brinca de correr, pular e dar cabeçadas com os outros bezerros? — perguntava ela.
Mas Ferdinando respondia:
— Prefiro ficar aqui, quietinho, cheirando as flores.
E assim ela entendeu que Ferdinando não se sentia sozinho. Por ser uma mãe compreensiva, mesmo sendo uma vaca, deixou que ele ficasse ali, quietinho e feliz.
A presença e a compreensão da mãe faz-nos pensar, por outro lado, na falta de compreensão do pai. Aliás, o pai de Ferdinando nem aparece na história. A ausência da figura masculina pode indicar que Ferdinando fosse órfão. Terá o pai dele morrido num espetáculo tauromáquico? É bem possível. Ferdinando herda do pai a força e o tamanho, mas, por algum motivo, não compartilha com os outros touros do pasto o sonho de ser escolhido para as tradicionais touradas espanholas.
Paz e guerra
O sucesso de O touro Ferdinando deve-se à sua contraproposta num tempo de ódios e conflitos. Entre 1936 e 1939, precisamente na Espanha, onde se passa a história, vivia-se a guerra civil. Logo depois, estouraria a Segunda Guerra Mundial. Conta-se que o ditador Franco proibiu que o livro fosse traduzido para o espanhol. Hitler, na Alemanha, disse que se tratava de “propaganda da democracia decadente”, e apenas em 1946 o livro pôde ser lido em alemão: Ferdinand, der Stier (“Ferdinando, o touro”).
Nos Estados Unidos, na mesma época, a crítica dividiu-se. Uns diziam que era um livro comunista, pacifista (algo malvisto em tempos de guerra…) e fascista. Outros afirmavam que era, na verdade, uma sátira ao comunismo, ao pacifismo e ao fascismo. Quando perguntaram ao autor o que pensava ele dessas reações contraditórias, respondeu simplesmente: “O touro Ferdinando é um filósofo”.
Quando cinco homens estranhos foram procurar no campo um touro musculoso e veloz para participar da próxima tourada em Madri, Ferdinando, graças ao acaso de uma ferroada de abelha, pulou, bufou e deu tantos coices no ar que, sem querer, chamou a atenção dos observadores e foi conduzido direto para a capital. Com a intenção de atrair o público sedento de sangue, deram ao jovem touro um cognome assustador: “Ferdinando, o Feroz”!
Ferdinando, porém, no final, por mais que o provocassem, só queria sentir o perfume das flores que enfeitavam os chapéus das mulheres presentes ao evento:
Não importava o que fizessem, Ferdinando se recusava a lutar e ser feroz. Continuava ali sentado, cheirando as flores. Os bandarilheiros ficaram com raiva, os picadores ficaram com mais raiva ainda e o toureiro chegou a chorar de tanta raiva, por não poder se exibir com sua capa e sua espada.
Ferdinando ensina, entre outras coisas, que uma atitude de paz (atitude estética, representada pela fruição do aroma das flores) pode intensificar a raiva dos senhores da guerra. Felizmente, na ficção, levam o touro Ferdinando de volta para o campo. Infelizmente, na história humana, a raiva pode ser cruel com quem pensa e age diferente.

Autor

Gabriel Perissé


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