“Já passou da hora de superarmos a visão dicotômica que separa natureza e cultura” (Crédito: Shutterstock)
Em 2001, foi lançado o filme
Janela da alma, no qual o premiado escritor português
José Saramago faz um depoimento que carrego até hoje em minha memória. Ele relata a experiência de ter assistido a um espetáculo na Ópera de Lisboa no local da plateia que chamava de galinheiro, na parte de cima do teatro. Naquela posição, era possível ver a parte de trás da coroa real que ornava o teatro. Viu que ela era oca e estava cheia de pó e teias de aranha. Segundo Saramago, foi a partir daquele momento que ele percebeu que para conhecermos as coisas temos que dar a volta, dar a volta toda.
O depoimento de Saramago entrelaça-se em minha memória a uma entrevista de Claude
Lévi-Strauss, antropólogo francês, que eu lera anos antes, no final do século passado. De sua autoria, eu conhecia a magistral obra
Tristes Trópicos. Na entrevista, Lévi-Strauss chamava a atenção para a
importância de os profissionais das ciências humanas olharem para os conhecimentos advindos das neurociências. Em seu entender, muitas das questões deixadas em aberto pela filosofia e pela sociologia poderiam ser respondidas com o auxílio de um olhar mais biológico dos processos mentais.
O conselho de Lévi-Strauss deveria ser aplicado na tentativa de compreensão de diversas características humanas. Infelizmente, em muitas situações percebe-se uma
verdadeira batalha entre aqueles que defendem a origem biológica de um fenômeno e os que dizem que sua origem é ambiental ou cultural. Não consigo perceber a contribuição que este pensamento dicotômico, algo como um embate entre Biologia X Cultura, semelhante a um jogo de futebol, pode trazer. Por vezes, até nos esquecemos de que
o limite entre natureza e cultura não existe a priori. Admitir a existência de uma descontinuidade entre estes dois domínios pode não ser a melhor alternativa. Já passou da hora de superarmos esta visão dicotômica.
Um dos desdobramentos desta dicotomia é o fato de nós, os chamados cientistas da natureza, termos extrema dificuldade em lidar com aquilo que é subjetivo e qualitativo. Para muitos cientistas da natureza, subjetivo é sinônimo de incerto, impreciso, pouco rigoroso. A busca dos cientistas da natureza em descartar por completo a subjetividade, pois ela prejudicaria o rigor científico, é ilusória.
Como seria possível abandonarmos por completo a subjetividade se a ciência é uma atividade humana?
Um exemplo de como esses problemas epistemológicos emergem no cenário educacional está relacionado ao tema das
competências socioemocionais (persistência e abertura a experiências são exemplos dessas competências). Em julho de 2014, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), em conjunto com o Instituto Ayrton Senna, lançou edital para financiar projetos com o objetivo de fomentar intervenções voltadas ao desenvolvimento de habilidades socioemocionais nos estudantes da educação básica. O edital utilizou como base teórica estudo do economista Daniel Santos e do psicólogo Ricardo Primi, no qual foram avaliados mais de 24 mil adolescentes do Estado do Rio de Janeiro.
Nesse estudo, os autores avaliaram a personalidade dos alunos por meio de um instrumento construído com o referencial chamado
Big Five, que admite a existência de
cinco fatores ou dimensões da personalidade: abertura a experiências, extroversão, amabilidade, conscienciosidade (também chamada de escrupulosidade) e estabilidade emocional (também chamada de neuroticismo).
Os pesquisadores investigaram a existência de associação entre o resultado do
Big Five e parâmetros relacionados ao êxito escolar, propondo que o desenvolvimento das habilidades emocionais deve ter a mesma prioridade que o desenvolvimento de habilidades cognitivas. Obviamente que podemos tecer críticas à abordagem, como, por exemplo, a tentativa de reduzir a personalidade a cinco fatores. Na época, entidades representativas de educadores e psicólogos vieram a público repudiar a abordagem. Um dos argumentos utilizados foi que este recorte quantitativo desconsidera fatores sociais e culturais e que não leva em conta a historicidade dos fenômenos.
As duas posições apresentadas anteriormente talvez reflitam ideais distintos de sociedade, expondo divergências a respeito da avaliação. Visões que podem e devem conviver de maneira integrada. Avaliar um sistema educacional para definir prioridades é completamente diferente da avaliação e acompanhamento individual do desenvolvimento de um aluno. Ambas as avaliações são essenciais, mas exigem o uso de “réguas” distintas.
A solução de problemas educacionais e a definição de políticas públicas capazes de provocar mudanças efetivas na educação brasileira dependem de uma
visão ampla, abrangente, que leve obrigatoriamente em consideração as múltiplas perspectivas a respeito do tema.