NOTÍCIA
Início da implantação da Base recebe críticas pontuais. Especialistas apontam os obstáculos para ela chegar às salas de aula
Publicado em 08/10/2018
Um documento de caráter normativo que define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da educação básica, de modo a que tenham assegurados seus direitos de aprendizagem e desenvolvimento, em conformidade com o que preceitua o Plano Nacional de Educação (PNE).
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A frase ambiciosa, no mais nobre sentido que o termo pode ter, abre o texto de 472 páginas da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) dos ensinos infantil e médio, um documento formulado e discutido em três versões, nos últimos anos, para ser o ponto de partida do resgate da educação básica no país.
Aprovada em dezembro de 2017, a BNCC estabelece competências (o que se deve alcançar com o aluno) e as habilidades (os caminhos para atingir objetivos) capazes de gerar um conjunto geral de direitos relacionados ao aprendizado, à cidadania e à consciência crítica.
Trata-se, como se percebe, de um projeto de Estado — e jamais de governos. Mas, como todo projeto de Estado no Brasil, em qualquer área, sobretudo nos tempos atuais, as definições e métodos escolhidos passam longe do consenso e da convergência de opiniões e interesses.
“A BNCC, infelizmente, não conta com um cenário favorável para implantação. Tudo está polarizado, como ocorre, aliás, em todos os outros campos da sociedade”, constata o pedagogo, mestre em Educação e doutor em Sociologia Ricardo Mariz, assessor da União Marista do Brasil (UMBRASIL).
“O professor Milton Santos dizia: o futuro da educação brasileira poderá ser um conto de fadas, um drama aberto ou uma tragédia grega. Apesar de tudo, ainda não podemos apostar em nada melhor do que o drama aberto. Mas espero que por não mais muito tempo”, completa ele.
Educação conversou com professores, gestores, consultores e educadores ligados a governos e redes de ensino para fazer um balanço dos trabalhos realizados até agora para a implantação da BNCC do infantil e fundamental e discutir os caminhos possíveis para o documento do ensino médio, este ainda em tramitação no Conselho Nacional de Educação (CNE).
No caso da adoção da BNCC no infantil e fundamental, o Ministério da Educação (MEC) definiu uma agenda que, de acordo com seus dirigentes, abrigará em 2018 o estudo do documento pelos atores das escolas e redes de ensino públicas estaduais e municipais.
“O principal trabalho do MEC neste ano é apoiar as redes técnica e financeiramente para que os currículos cheguem até todas as salas de aula”, destaca Katia Smole, doutora em Educação nas áreas de ensino de Ciências e Matemática e secretária de Educação Básica do Ministério. “É um trabalho de formação inicial e continuada de professores, apoio na melhoria da gestão pedagógica das redes e escolas, material de apoio didático, recursos educacionais e tecnológicos”, acrescenta.
A secretária discorda dos que identificam açodamento e inversão de valores no calendário de implantação do MEC, com a definição dos currículos das redes estaduais antes da formação mais abrangente dos professores das redes baseada na BNCC, ou mesmo da segurança de que a grande maioria desses educadores conheça minimamente o documento.
“Os educadores e gestores das redes brasileiras estão envolvidos”, afirma. “Eles têm muito em que colaborar para o sucesso da implantação da BNCC. Ainda este ano irão participar de consultas públicas, contribuindo para que os currículos estaduais sejam bem adaptados às realidades e necessidades de seus estados e municípios. Nos próximos anos, todos vão trabalhar em conjunto para tornar esses currículos estaduais uma realidade nas salas de aula.”
Katia elogia a participação do Conselho Nacional dos Secretários de Educação (Consed) e da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) nos trabalhos. “Apoiados por eles, lançamos um programa, o ProBNCC, para estruturar os estados e municípios na construção, em regime de colaboração, dos currículos de referência dos estados. Eles serão orientadores para os projetos pedagógicos das unidades escolares dos sistemas de ensino que aderirem à iniciativa. E um ponto importante: os municípios que não aderirem a esse processo de construção em regime de colaboração terão toda a legitimidade para conduzir o processo de forma individualizada”, destaca.
Na contabilidade do MEC, 17 estados possuem, no momento, a primeira versão de seus currículos alinhados à BNCC. “A colaboração na construção dos documentos curriculares vai gerar impactos positivos em outras ações, entre elas a formação continuada de professores e gestores e a definição dos materiais didáticos de apoio. E, ao contrário do que muitos pensam, estamos, sim, atentos às identidades locais e às adequações regionais.”
Um avanço, mas falta tempo
Cecília Motta, pedagoga, mestre em Educação na área de Políticas Públicas para a Infância e presidente do Consed, também defende o cronograma atual. “Os trabalhos, no caso da BNCC infantil e fundamental, obedecem a uma ordem sensata, com abertura democrática à participação dos envolvidos. No meu estado, o Mato Grosso do Sul, tivemos a colaboração de vários especialistas de colégios e redes públicas e privadas na elaboração do primeiro documento curricular estadual baseado na terceira versão da BNCC. Recolhemos sugestões por áreas de conhecimento. Estamos agora encaminhando o processo de consultas públicas e interação com os municípios. Posso dizer que o resultado tem deixado a maioria dos atores satisfeita.”
E faz uma provocação. “A Base vem sendo discutida e construída desde 2014. Temos 20 anos de estagnação de nossos alunos no controle mínimo de Português e Matemática. O brasileiro costuma discutir muito e, por isso, perde prazos e momentos históricos. O documento aprovado ano passado está disponível há um bom tempo. Que me desculpem, mas não é aceitável que um professor ainda não tenha procurado o documento a esta altura do processo.”
Luiz Miguel Martins Garcia, doutor em Linguística Aplicada, secretário municipal de Educação de Sud Mennucci (SP) e presidente da seção paulista da Undime aprova o modelo de trabalho atual do MEC e considera que as discussões foram feitas “de forma bastante ampla”.
Mas pondera: “O ideal seria que tivéssemos um tempo maior para preparar e discutir com a maior quantidade de professores e escolas possível. Mas a construção dos currículos consumirá este ano e também o de 2019. É o possível. E eu poderia apostar que, hoje, praticamente todos os municípios do país estão discutindo a BNCC em algum nível em seus ambientes de educação”, acredita.
Nem todos possuem a mesma certeza. A grande maioria dos especialistas considera o texto da BNCC aprovado em dezembro de 2017 um avanço. Muitos acreditam, porém, que deveria haver um cronograma mais amplo e profundo de formação dos 2,2 milhões de professores do ensino básico do país para que eles tenham condições de trabalhar as competências e definir linhas e materiais didáticos com maior segurança.
Emília Cipriano, professora titular da PUC-SP e diretora do instituto Aprender a Ser, uma das mais respeitadas especialistas em educação infantil do país, está neste grupo. “A maior parte das consultas que recebo sobre a BNCC vem de educadores que, percebe-se claramente, sequer leram o texto. Opinam não sobre o que leram, mas sobre o que diz outra pessoa que leu o documento. Isso é preocupante”, constata.
“Acho que o cronograma e o modelo adotados pelo MEC este ano está impondo certo açodamento na formação dos currículos das redes. Montar currículos estaduais sem incluir professores que precisam conhecer a Base é o mesmo que colocar roupa nova em corpo sujo. Não funciona. Deveríamos ter um tempo maior para um projeto mais profundo de conhecimento e formação do professor”, defende Emília.
A coordenadora pedagógica do infantil e fundamental do Colégio Miguel de Cervantes, em São Paulo, Denise Tonello, concorda com a tese.
“A BNCC é uma boa proposta de equidade na oferta de direitos da educação, mas o poder público deveria ter oferecido um projeto mais concreto, enfático e disseminado de formação dos professores. As competências são o que a gente quer que o aluno seja. As habilidades, o que ele deverá fazer para chegar ao objetivo. Só será possível executar os currículos nas escolas, com seus devidos instrumentos, se os professores tiverem total domínio sobre o que são e o que significam todas essas habilidades e competências”, afirma.
“O que necessitarão realmente fazer, desde o infantil, para que o aluno forme depois um pensamento crítico? É só um de muitos exemplos. Neste momento, muitos estão preocupados meramente em transformar a Base em conteúdo, currículo. ‘Isso aqui eu dou, isso ainda não dei…’ Sabemos que não é isso. Para existir construção colaborativa entre professores, gestores e escolas, é preciso espaço de tempo e formação. Ao menos até agora, não vejo essa formação ocorrer minimamente a contento”, opina a educadora.
A preocupação de Emília e Denise é respaldada por algumas constatações incômodas. No Bett Educar 2018 — que não por acaso teve como temas a implantação da BNCC e a reforma do ensino médio —, outro estudioso atento da BNCC, o educador e editor Lauri Cericato, coordenador do MBA em Edição de Didáticos e Sistemas de Ensino da Casa Educação, ficou preocupado com o resultado de uma pesquisa feita no congresso sem que os professores revelassem a identidade.
“Eles simplesmente informavam, num componente eletrônico, se conheciam ou não a BNCC. Resultado: 67%, ou dois a cada três envolvidos, sequer haviam lido o documento. E isso em um evento de ponta, que reúne, em tese, os com melhor preparo. O que se pode esperar de uma amostra que represente a realidade de todos os professores do ensino básico?”, questiona.
Apesar dessas dificuldades, e da necessidade inquestionável de preparar os professores na ponta, Cericato acredita que os governos devem iniciar essa etapa rapidamente e agir com pragmatismo. “Deixaremos de trabalhar com um rol de conteúdos para mobilizar competências e habilidades. Mas não podemos demorar a começar – mesmo porque, infelizmente, sabemos que quase tudo o que demora a ser iniciado neste país, na prática, sequer começa ou não termina bem”, pondera.
Para além das opiniões contrárias ou favoráveis a um ou outro ponto do processo de definição e adequação dos currículos, o texto para o infantil e o fundamental foi bem recebido pela maior parte do universo da educação.
Mas as divergências em relação ao documento para o ensino médio, ainda em tramitação no Conselho Nacional de Educação, ainda aparecem com intensidade.
De acordo com o CNE, o texto, no momento, está na etapa de escutas em audiências públicas regionais. A da Região Sul foi feita recentemente e a de Brasília está agendada. As do Sudeste, Nordeste e Norte, que foram canceladas, serão remarcadas.
“A proposta de BNCC elaborada pelo MEC evidencia os problemas contidos na Lei 13.415, do ensino médio, aprofunda-os e não os supera. Ela sublinha o defeito de origem: a separação do ensino médio do conjunto da educação básica na concepção de uma BNCC. Eis que, materializando nossos piores temores, a proposta do MEC para o ensino médio não só destoa, mas contradiz em grande medida o que foi definido na BNCC das etapas educacionais anteriores e é radicalmente distinta do que vinha sendo cogitado nas versões primeiras”, escreveu o sociólogo e escritor paulistano Cesar Callegari em carta divulgada no último dia 29 de junho, ao deixar a presidência da Comissão Bicameral encarregada da Base no CNE, do qual permanece como conselheiro ”.
Como ele, muitos educadores temem que os direitos de educação dos alunos do médio sejam comprimidos ao que couber em, no máximo, 1.800 horas, ou 60% da carga horária do período, como diz a nova lei.
O que traria, entre outros problemas, a redução do escopo de aprendizagem e também do material contemplado no Exame Nacional do Ensino Médio, o Enem, e em outros grandes testes de abrangência municipal, regional e nacional.
Eduardo Deschamps, doutor em Engenharia Elétrica pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), ex-presidente do Consed e atual do CNE, não quis comentar as opiniões expressas no texto de Callegari.
“Respeito muito as opiniões do conselheiro Callegari. Mas ele destaca, em sua carta, que um dos motivos que o levaram a deixar a presidência da Comissão Bicameral é o fato de não se sentir mais isento para conduzir o processo diante de convicções que formou sobre a BNCC e a Lei do Médio. Então, até pelo mesmo motivo, ou seja, para não comprometer minha isenção à frente do CNE, não vou comentar neste momento os pontos sobre a Base levantados por ele. Mas a Base do médio está caminhando bem. Se os envolvidos concluírem por reparos, eles serão feitos”, ressalva Deschamps.
“Mas especificamente em relação à reforma do ensino médio, posso dizer que tenho posição diferente. Ela traz a lógica da adequação às realidades regionais e será regulamentada por educadores, e não pelo Congresso, o que é uma conquista. Em caso de revogação, penso que seria grande o risco de os educadores perderem essa condição – e isso seria altamente negativo”, analisa.
Os milhões de estudantes do ensino básico esperam que o resultado desse confronto de ideias seja um projeto de futuro que mereça a melhor nota possível. Mesmo porque o futuro que está em jogo, no caso, é o deles.
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