NOTÍCIA

Edição 256

A elegância indiscreta dos eufemismos

Publicado em 21/04/2019

por João Jonas Veiga Sobral

O idioma tem lá suas astúcias para manter a ordem do dia, nos limites da civilidade e dos bons costumes. O abrandamento da linguagem é um desses recursos que permite suavizar o que pode soar áspero aos ouvidos e ao espírito. O eufemismo é figura retórica que se presta a isso bem.
Segundo o clássico Aurélio, eufemismo é “o ato de suavizar a expressão duma ideia substituindo a palavra ou expressão própria por outra mais agradável, mais polida”. Sempre que “a chapa esquenta”, lançamos mão de uma expressão mais branda em nome da temperança e da paz dos homens. É comum, por exemplo, em acaloradas plenárias do Congresso Nacional que algum parlamentar acuse um colega com a seguinte frase: ”Vossa excelência falta com a verdade”. O habilidoso parlamentar substitui “mente” por “falta com a verdade” – assim escamoteia a animosidade da discussão sem perder a alfinetada. Mas isso não significa que a suposta elegância no trato das palavras e a polidez de obrigação no das pessoas não escondam, como dizia Machado de Assis, “a baba de Caim”.

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Os eufemismos são recursos retóricos amplamente usados, sobretudo em situações que possam gerar mal-estar ou que são tabus sociais. A morte é um bom exemplo. Evitamos a palavra, como o diabo, a cruz. Em um belo poema, Bandeira a substitui por “a indesejada das gentes”.
Em situações em que devemos fazer um comentário que diga mais do que os tradicionais “meus sentimentos” e “meus pêsames”, empregamos eufemismos confortadores como “descansou em paz”, “foi para o céu”, “está a lado do Senhor” e por aí vai. Médicos, para confortar a família, também exploram a força retórica dos abrandamentos linguísticos. Sugerem um embate entre o enfermo e a morte, ainda que com vitória da dita cuja: “fulano lutou, mas não resistiu à cirurgia”. A ideia de luta e de resistência propõe que o paciente anestesiado ainda reunia forças para combater o possível fenecimento. Assim, fica a imagem de alguém que não se entregou à inexorável pá de cal do fim.

eufemismos

A elegância eufemística é também muitas vezes truculência bem vestida (foto: Shutterstock)


Não raro, esses recursos sinalizam para um verniz que pretende cobrir hostilidades e enxugar com babadouro a tal baba de Caim. Quando alguém diz que determinada pessoa é “bem bonita de rosto”, lança-se luz às faces da elogiada e cobre-se de manto diáfano as imperfeições das outras partes do corpo. Narradores de futebol adjetivam alguns jogadores como “esforçados” e “táticos” – eufemismos claros que buscam não fazer presente a falta de técnica ou de habilidade do referido atleta. Isso sem contar os malabarismos linguísticos (“flexibilização dos preços”, para propor aumento impopular de alguma tarifa).
Há eufemismos que flertam com o ludíbrio, com a má-fé, e não raro ferem a inteligência das pessoas. Quem nunca ouviu algum comandante de polícia dizendo que o policial “possa ter se desviado da conduta padrão na abordagem do suspeito”? Não há dúvidas de que houve violência na conduta e panos quentes na sintaxe e na semântica.
Há outros que se confundem com a ironia ou se juntam a ela para dar mais força discursiva à enunciação. Em Dom Casmurro, Bento Santiago, o narrador do romance, refere-se ao personagem José Dias, agregado da família, de forma eufemística e irônica: “[José Dias]Teve um pequeno legado no testamento, uma apólice e quatro palavras de louvor. Copiou as palavras, encaixilhou-as e pendurou-as no quarto, por cima da cama. ‘Esta é a melhor apólice’, dizia ele muita vez. Com o tempo, adquiriu certa autoridade na família, certa audiência, ao menos; não abusava, e sabia opinar obedecendo [grifo do colunista]. Ao cabo, era amigo, não direi ótimo, mas nem tudo é ótimo neste mundo. E não lhe suponhas alma subalterna; as cortesias que fizesse vinham antes do cálculo que da índole [novo grifo]“. O narrador, com uso de ironia e eufemismo, desmascara a índole calculista de José Dias, que agia meticulosamente por cálculo para continuar usufruindo dos favores e das benevolências da família rica que o abrigava.
Quem nunca ouviu em ambiente de trabalho elogios a determinadas pessoas que não passam de questionamentos escamoteados? ”O professor de literatura é muito querido, suas aulas são divertidas.” Ou elogios a um que miram tiro certo no outro? ”O professor de redação é muito rigoroso, não se dá bem com os alunos como o de literatura.!
A elegância eufemística é também muitas vezes truculência bem vestida.

Autor

João Jonas Veiga Sobral


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