– Bom dia, classe, tudo bem? Gabriel, você poderia passar na minha sala, por favor?
– Bom dia.
– Bom dia, Gabriel. Percebi que estava fazendo uso inadequado do computador durante a aula. O que houve? – Eu já havia terminado a lição e faltavam só dez minutos para acabar a aula. Resolvi, então, jogar futebol no computador.
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– Por que, quando me viu olhando-o através da janela da classe, imediatamente você fechou a tampa e a tela do computador?
– Porque eu não deveria talvez jogar…
– Quando você diz que “não deveria talvez jogar” futebol durante a aula, você tinha mesmo dúvida ou certeza de que não deve, devesse ou deveria jogar?
– Talvez eu não devesse jogar….
– Ah, que bom, porque você disse na primeira frase que “ talvez não deveria”. Não me pareceu uma dúvida.
– É…
– Outra coisa, quando fechou rapidamente o computador, você teve dúvida de que não devesse jogar e que a ação fosse inadequada?
– Não, eu tinha certeza de que não deveria estar jogando.
– Você pediu ao professor para jogar? Se pedisse, talvez ele não permitisse?
– Não pedi, não. Provavelmente, ele não permitiria.
– Você acha mesmo que provavelmente ele não permitiria?
– Falo isso para amenizar. Ele realmente não permitiria.
– Sim, agora estamos conjugando a situação no modo mais adequado, não?
– Sim.
– Você sabe que é uma falta de comportamento que será anotada, não?
– Sei, sim. Desculpe, isso não ocorrerá mais.
– Que bom, Gabriel. Fico contente de ver que entendeu a situação. Ah, sempre que tiver dúvida sobre algo, não aja como se tivesse certeza.
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A sociedade contemporânea pode ser tranquilamente caracterizada como a época das certezas e dos dogmas absolutos. Há cidadãos circulando pelo mundo real e virtual cheios de si e de razões. Caminham altivos sem hesitar, sem uma dúvida incauta que os atropele ou interdite. Carregam em suas bolsas e bolsos todas as certezas do mundo.
Gravam áudios ou digitam textos definitivos e inabaláveis. Exprimem opiniões imunes a refutações. Seguros de suas certezas e de suas convicções, abandonam as causas, as consequências, os contextos e as provas. Formulam certezas alicerçadas, estranhamente, em hipóteses e conjecturas e não dão contam disso ou não prestam contas a isso.
Nessa “era das certezas”, o pobre do modo subjuntivo é uma vítima certa. Não há espaço para ele na fala e na escrita dos assertivos usuários da língua. O pobre modo hipotético torna-se obsoleto e estranho ao idioma. Afinal, um modo que propõe a dúvida, a possibilidade do ato, a incerteza de sua realização, parece mesmo padecer sem sentido no tempo das convicções e da assertividade.
Quer que eu
faço uma lista de frases que
exemplificam a agonia desse modo verbal frágil, cheio de insegurança? Farei a lista. Não sem antes sugerir uma provocação aos supostos leitores desta coluna que não se ativeram para a formulação, possivelmente estranha, proposta em “faço” e “exemplificam”. Não soam um bocadinho equivocadas essas formulações cheias de certezas?
Antes de explicá-las ou de tentar esclarecê-las, vamos à tal lista de expressões que decretam o fim excruciante do subjuntivo, esse resistente modo verbal. Comecemos com “a senhora quer que eu compro os bilhetes?”, “o cavalheiro deseja que reservo um assento mais confortável?” e “o passageiro aguarda que a situação se normaliza para seguir viagem”.
Em todos esses períodos, evidentemente que se desejasse o uso do modo subjuntivo para que as enunciações caracterizassem as dúvidas e as hipóteses subjacentes ao que se pretendia comunicar. No entanto, há em cada uma das formulações – além do uso estranho do modo indicativo, sinalizador de certeza – um atropelo mental do enunciador que, desejoso de estabelecer certeza onde há dúvida, antecipa como certa as ações de “compra”, de “reserva” e de “normalização”.
Como dissessem que “basta a senhora querer que eu compro os bilhetes”, “é só o cavalheiro desejar que eu reservo o assento confortável” e “ é certo que a situação estará normalizada a tempo de o passageiro seguir viagem”. Contaminados pelo vírus da certeza, os enunciadores desprezam a hipótese do modo subjuntivo, esse ser pessimista e agourento, e tascam o modo indicativo, esse ser cheio de luz e de positividade.
Há, no tempo da certeza cristalina e absoluta, também situações em que a suspeita passa a ser toda a verdade. O indivíduo que suspeita passa a não ter dúvida, tem certeza de que a suspeita é certa e irrefutável. Por isso, não é incomum que se leia por aí algo como “há suspeitas de que o prefeito estaria envolvido a um suposto esquema de corrupção”.
Evidentemente que se pretendeu, equivocadamente, com o uso do futuro do pretérito do modo indicativo indicar possibilidade de envolvimento do prefeito em esquema de corrupção. No entanto, cabe ressaltar que esses tempo e modo não sinalizam dúvida, pelo contrário, indicam certeza, um futuro em relação a uma marca determinada no passado (“no mês passado, ela disse que estaria conosco”) ou uma condição irrealizável (“se pudesse, ela estaria aqui”).
Assim, o ideal seria substituir “estaria” por “esteja” (presente do subjuntivo, sinalizador de dúvida no presente.) para que a dúvida seja a tônica da manchete: “há suspeitas de que o prefeito esteja envolvido…”.
E por falar em marotices da língua, dos modos verbais e dos usuários, Machado de Assis não deixou por menos no clássico “
Memórias póstumas de Brás Cubas”, em que relativiza a certeza e a dúvida de forma bastante irônica e sarcástica: “Cresci; e nisso é que a família não interveio; cresci naturalmente, como crescem as magnólias e os gatos.
Talvez os gatos são menos matreiros, e, com certeza, as magnólias são menos inquietas do que eu era na minha infância”. Ali, onde reinaria a dúvida imposta pelo advérbio “talvez”, O Bruxo do Cosme Velho aplicou um sonoro “são”, no presente do indicativo, eliminando com isso a possibilidade ou a hipótese de que os gatos fossem mais matreiros do que o narrador quando criança mimada e dada a peraltices, sempre repreendida em público e desculpada no seio privado da família.
Por conta das possibilidades diversas de uso desse advérbio, o indicativo e o subjuntivo se engalfinham em jogo matreiro de certezas e de dúvidas. A língua sugere que, quando anteposto o advérbio de dúvida, o verbo se conjuga no subjuntivo “talvez ela tenha 40 anos”; já, quando posposto, o verbo se conjuga no indicativo, “ela tem talvez 40 anos”. No entanto, a regra não é seguida à risca. O usuário determina o uso de acordo com sua necessidade de gerar dúvida ou de aclarar hipóteses.
Em nossos tempos, o subjuntivo à mingua espera remédio que cura ou cure nossas certezas lancinantes. Melhor ficar com Guimarães Rosa:
“Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa (…) Esta vida está cheia de ocultos caminhos. Se o senhor souber, sabe; não sabendo, não me entenderá”.
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Autor
João Jonas Veiga Sobral