NOTÍCIA
Publicado em 01/07/2019
Uso da estética e regras de jogos eletrônicos pode ser um recurso para motivar alunos e gerar engajamento
Por Davi Molinari: É consenso que a gamificação está dentro do conjunto de iniciativas para superar o desinteresse dos estudantes pela escola. O fenômeno é internacional e ocorre simultaneamente à adoção do conceito de desenvolvimento de competências como fundamento pedagógico nos sistemas de ensino de dezenas de países. Especificamente, no caso da educação brasileira, a crescente adesão à gamificação coincide com a introdução da nova Base Nacional Comum Curricular, a BNCC.
Ambos os movimentos buscam encontrar novas formas de superar os métodos tradicionais de ensino, assim como outras maneiras para engajar e motivar os alunos da nova geração nas atividades educacionais. Embora a BNCC configure o desdobramento também de marcos legais, sua consolidação aparece no contexto da revolução digital e do advento das novas tecnologias, com suas implicações em todos os aspectos da sociedade: economia, mercado de trabalho, produção de conhecimento, cultura e educação.
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Nesse sentido, qualquer rumo dado aos sistemas de ensino obriga as escolas a dialogar com a realidade atual. E nada mais presente do que a ideia de que os games podem se prestar a outras funções além do entretenimento. O uso de games ou de atividades gamificadas favorece o engajamento dos jovens em atividades escolares tidas por eles como enfadonhas.
“A gamificação, além de promover uma aprendizagem proativa e investigativa, nos ajuda a definir metas que irão orientar o aluno em seu caminho para autoconhecimento, autonomia, cooperação, comunicação e outras competências gerais que aparecem na Base, como pensamento científico, crítico e criativo; repertório cultural; cultura digital; empatia; e responsabilidade e cidadania”, explica Giselle Santos, consultora de Inovação do Edify e do Google Innovator.
Giselle é professora de inglês e se dedica a pesquisar temas como futurismo, tecnologias disruptivas e realidade virtual na educação. Ela enfatiza que é preciso diferenciar jogos e gamificação: “É muito comum confundir a gamificação com uma didática baseada em jogos. Ambas trazem benefícios para o desenvolvimento de competências comportamentais e intelectuais. Mas enquanto os jogos têm como objetivo a vitória, a gamificação utiliza a mesma mecânica e estética dos games para alcançar metas e objetivos reais”.
Portanto, aplicar elementos e mecânicas de design de jogos em outros contextos que não só recreativos é o que define a gamificação. Uma boa estratégia pedagógica não parte necessariamente de jogos, mas dos chamados “drives”, que são os norteadores do desafio proposto ao aluno. O educador deve se apropriar da linguagem existente nos games e aplicá-la no contexto da vida real, no ensino – de maneira que se abram possibilidades de designs de jogos (cenários) a serem construídos. O ideal é a combinação dos ambientes online e offline.
A pioneira nesse caminho é uma escola pública de Nova York, nos EUA, criada em 2009 por desenvolvedores de jogos eletrônicos. A Quest To Learn foi a primeira instituição de ensino do mundo a basear todo o currículo em games.
“A Q2L é projetada para permitir que os alunos ‘assumam’ avatares, identidades e comportamentos de exploradores, matemáticos, historiadores, escritores e biólogos e usem os recursos dos respectivos perfis em determinada dinâmica”, explica Giselle. “É nesse contexto que a escola promove a gamificação do ensino. Um exemplo foi a fusão de estudos sociais e inglês, em que os estudantes foram instados a resolver determinado conflito entre ‘os fantasmas do Museu Nacional de História Natural de Nova York, que estavam brigando porque não se entendiam quanto aos acontecimentos da Guerra de Independência americana’.
Apesar de terem testemunhado o mesmo evento histórico, os personagens tinham diferentes perspectivas do episódio (um fantasma havia sido escravo, outro era da realeza inglesa e um terceiro, colono americano). Os estudantes tiveram de entender o ponto de vista de cada um e resolver o conflito.”
“A aprendizagem duradoura acontece quando as pessoas estão diretamente envolvidas em experiências que impactam, ou complementam, a maneira como pensam e se comportam”, define a professora. E detalha: “A construção e a criação desses cenários, formados por desafios e solução de problemas, dentro de regras estabelecidas para avançar a uma próxima fase, perder ou ganhar vidas, além dos caminhos propostos, as escolhas e consequências, formam o design do game, Aplicados a uma situação real, promovem a gamificação desse conteúdo didático”.
Atraídas pelo mercado de ensino brasileiro, já estão desembarcando aqui empresas estrangeiras especializadas em gamificação, como a finlandesa Seppo, que firmou parceria com o Instituto Ayrton Senna. Entre os motivos que contam a favor da gamificação estariam suas flexibilidade e aplicabilidade. Seus defensores garantem que esse método pode ser desenhado para quaisquer ambientes, sejam escolas públicas ou privadas; sejam sistemas de ensino regular ou escolas de ensino específico como o de língua estrangeira.
É o caso do material empregado pelo programa bilíngue Edify, que usa a gamificação, desde o Fundamental I, como meio de ensinar “outras habilidades, aliando o desenvolvimento linguístico a outras competências.” Como material de apoio, são empregados livros didáticos em que os conceitos de gamificação estão presentes.
Já a rede de ensino de tecnologia CodeBuddy oferece uma experiência mais imersa na internet. Essa plataforma adota estratégias comuns aos jogos – novamente, fases, recompensas e personagens customizáveis. A ferramenta disponibiliza conteúdos vinculados à cultura digital necessários para o alcance das competências de programação e computação previstas na BNCC. “Permitimos a reflexão sobre estratégias e antecipamos um processo de escolhas que dialogam com situações reais. Os alunos traçam seu próprio caminho para o aprendizado nessas tarefas”, afirma Eduardo Honzak, diretor-geral CodeBuddy.
Por ser um processo de construção criativo que atende qualquer faixa etária e por não ter uma natureza exclusivamente digital, apesar de dialogar com os games eletrônicos, a gamificação tem a adesão de professores de diferentes lugares e realidades socioeconômicas do país.
Durante dois anos, de 2014 a 2016, a Fundação Maurício Sirotsky Sobrinho (FMSS) e o Grupo RBS financiaram o projeto Logus, que buscou o engajamento dos estudantes de escolas públicas do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina. O jogo, com etapas online e presenciais, colaborava com o objetivo do projeto, de “despertar o protagonismo jovem por meio do desenvolvimento de competências socioemocionais”, conta Amaralina Machado Rodrigues Xavier, coordenadora de projetos da FMSS.
A narrativa desse game compreendia o combate ao Nulis, vírus do desinteresse e da apatia. Nesse cenário, as equipes tinham de completar missões que incluíam ações de sustentabilidade, leitura, cidadania e transformação da escola e seu entorno. O projeto envolveu 10 mil pessoas entre professores e alunos. Foi “descontinuado” porque a FMSS mudou sua estratégia de atuação junto à comunidade, mesmo “tendo um balanço positivo”, explica Amaralina.
Já Beni Kuhn, economista pela PUC-SP, vê na gamificação um caminho para melhorar o desempenho dos alunos brasileiros nos exames do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (o Pisa). Os resultados mostram que a queda no aproveitamento não decorre apenas da falta de conhecimento. Existe também uma inabilidade para responder às questões. “Os alunos gastam muito tempo nas primeiras questões e não alcançam as últimas”, explica Kuhn, para quem uma das soluções seria o uso da gamificação para potencializar estrategicamente o aprendizado, “além de motivar e engajar o aluno na resolução dos mais diversos desafios”.
Apesar das vantagens, professores ligados às chamadas “escolas transformadoras”, como Diogo Basei Garcia, diretor do Colégio Viver, em Cotia, Grande São Paulo, compreendem o alcance da gamificação, mas ponderam que o processo não pode estar desassociado de uma visão mais completa do aluno: “Penso que, como contraponto, temos de manter o equilíbrio entre três pilares – o desenvolvimento corporal, da lateralidade, que chamamos pedagogia da Roda; a pedagogia do texto e, enfim, o trabalho com telas digitais”.
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