NOTÍCIA
Publicado em 03/07/2019
Os algoritmos começam a bater na porta de instituições comprometidas em formar jovens em condições de ler, escrever e programar o novo mundo que se impôs
O primeiro computador pessoal do mundo chegou ao mercado há apenas 38 anos. A internet, há 30. O primeiro (e inacessível) celular com recursos de smartphone há 27, e o primeiro tablet, 17. Nesse período de tempo, uma eternidade para um adolescente e um mero resíduo para a História, educadores buscaram as melhores formas de promover o letramento e a inclusão digital e virtual dos estudantes. O objetivo inicial era ensinar a utilizar programas para estudos e pesquisas sobre o conteúdo tradicional de cada ano letivo. O cenário em 2019 é radicalmente distinto: 231,8 milhões de celulares no Brasil, ou mais de uma unidade por habitante na média, em outro paradoxo de um país onde essas bibocas conectadas fascinam corações e mentes até em territórios sem água pela torneira e esgoto pelo encanamento. Lá fora, o mundo caminha para ter impressionantes 25 bilhões de gadgets e aparelhos de todos os tipos, formas e naturezas plugados na web.
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Nesse contexto, pensar apenas em incluir deixa de fazer sentido. A meta passa a ser formar para desenvolver pensamento e raciocínio computacional. E aprender a programar para resolver demandas na medida em que se evolui nas séries e, depois, nas carreiras. É a imposição da necessidade, no infantil, fundamental e médio, de alfabetização e formação em tecnologia e programação, a digital literacy.
Educação ouviu responsáveis por tecnologia digital em escolas, especialistas e formuladores de políticas educacionais na área para dimensionar a situação das redes e escolas brasileiras em relação às exigências impostas pela nova ordem digital. As diferenças de recursos, remuneração, preparo das equipes e infraestrutura existentes entre as escolas e redes particulares e públicas – e mesmo as encontradas dentro de cada uma dessas partes –, produzem historicamente vários níveis de qualidade. Ao se incluir a educação digital nesse contexto, as distâncias se tornam ainda mais abissais. De qualquer forma, os entrevistados destacam dois pontos comuns quando a meta é construir uma situação aceitável para ensinar crianças e jovens a lidar com algoritmos, programações e criações nos ambientes digital e virtual. São eles:
Visão estratégica – Ainda não existe na maior parte dos administradores de redes públicas, e mesmo em grande parte das escolas particulares, a consciência de que a alfabetização digital de hoje não deve se prestar apenas a solucionar os problemas dos alunos no presente, mas, fundamentalmente, a ajudar a gerar soluções para problemas acadêmicos e profissionais no futuro. Muitas escolas privadas, embora com estrutura suficiente para desenvolver a alfabetização digital, ainda insistem em manter seus alunos no estágio de usuários de máquinas e programas, e não como candidatos a criadores ou programadores com os algoritmos.
Formação dos professores – Se o preparo em massa de educadores para as outras exigências da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) já é um desafio imenso, é de se imaginar dificuldade ainda maior em relação aos conteúdos digitais. Um dado para dimensionar a situação: a pesquisa TIC Educação 2018, do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic), constatou que mais de 40% dos professores de escolas públicas e privadas, questionados pelos alunos sobre temas relacionados à cultura e cidadania digital, disseram não ter conhecimento suficiente para tirar as dúvidas . “Um fato incômodo, mas é inegável: as crianças brasileiras, mesmo na maior parte das escolas particulares, ainda hoje, chegam à metade do fundamental, na média, consideravelmente mais fluentes, em termos digitais, do que seus professores. Essa diferença precisa ser tirada para que a batalha não seja perdida”, constata Mário Ghio Júnior, diretor presidente e CEO da Saber Educacional, do grupo Kroton.
As dificuldades não devem diminuir o ímpeto na busca de soluções. Um bom começo é observar as experiências bem-sucedidas. Algumas delas foram lançadas no ensino privado pelo Sistema Educacional Brasileiro (SEB), um dos maiores do mundo no setor e um dos mais arrojados quando o assunto é lançamento de iniciativas curriculares e complementares para o ensino. O uso de tecnologia digital no aprendizado é marca forte em divisões do grupo como Escola Concept, Colégio Visão, Escola Luminova, Pueri Domus, Esfera Escola Internacional e AZ.
A cartada mais recente da empresa foi a parceria, para aplicação em seus domínios e representação no mercado de escolas privadas formado por outros grupos, do material da Ubbu Code Literacy, um dos mais bem-sucedidos programas de aprendizado de programação e ciência da computação para crianças, com mais de um milhão de licenças adquiridas no mundo. “Nossa missão é ajudar a preparar crianças para as competências do futuro, mas com resultados imediatos: melhora do raciocínio lógico, resolução de problemas e maior atenção ao planeta. Estudos realizados pela Universidade Nova, de Lisboa, mostram que os alunos melhoram consideravelmente as notas em matérias como matemática e raciocínio lógico”, afirmam os executivos da empresa no comunicado mundial.
E vão além na euforia: “A Ubbu deseja preparar todas as mentes jovens do mundo, entre seis e 12 anos, para o futuro. Pensadores lógicos, solucionadores de problemas, cidadãs e cidadãos conscientes e habilidosos. Com um currículo específico para cada ano letivo, em qualquer cidade, de qualquer país”, completam. “Nossas unidades próprias e parceiras tratam a alfabetização e a formação digitais para adolescentes, jovens e universitários com profundidade. Agora, elas e também o mercado terão um sistema eficiente para tratar do tema também no âmbito infantil”, afirma a diretora-executiva do SEB, Thamila Zaher.
Outro grande grupo, o Mind Makers, criado em Belo Horizonte, oferece sistemas de aprendizado de linguagem de programação e pensamento computacional para 30 mil alunos de 95 escolas parceiras espalhadas por 12 estados do país. “Trabalhamos com os melhores recursos didáticos dos movimentos code e maker, que hoje revolucionam o aprendizado em países líderes no ranking educacional”, afirma João Lacerda, formado em Tecnologia da Informação e CEO da empresa. “O movimento code comprova que crianças são capazes não somente de aprender a programar, mas também de desenvolver, a partir deste domínio, outras habilidades fundamentais para o futuro. E, como complemento, o maker ajuda a enriquecer a experiência com o do it youself, o aprendizado mão na massa, aplicado à construção de objetos concretos de robótica, invenções eletrônicas ligadas à internet e também equipamentos e mecanismos mais simples”, completa o executivo.
No programa da Mind Makers, a disciplina Pensamento Computacional é implantada nas turmas de infantil (quatro a cinco anos) e fundamental I e II. Os módulos são semestrais, com 16 aulas, uma por semana. As escolas parceiras substituem algumas aulas de matemática, artes e linguagens pela matéria de computação. Antes do primeiro ano de implantação, a empresa realiza um programa de capacitação de 70 horas para os professores da escola.
No início do método da Mind, o aluno estuda o impacto social da digitalização nos diferentes públicos, e recebe informações sobre os limites para se posicionar ética e socialmente em meio ao tráfego de dados e informações. Depois, são passados conceitos e ensinamentos técnicos sobre as linguagens digitais para exercício da programação. Por fim, adolescentes e jovens entre o fundamental e o médio aprendem a integrar seus comandos e criações à programação aos computadores, máquinas, gadgets, aparelhos, robôs, elementos de robótica e outros dispositivos físicos de acordo com a realidade de cada situação. E a usar programas geradores de soluções de problemas relacionados à sua realidade acadêmica ou, em alguns casos, pessoais ou profissionais.
Os resultados atingidos pelo Crescimento, maior colégio privado de São Luis (MA), parceiro do grupo, mostram a importância da adoção da alfabetização digital. Um dos projetos mais admirados na escola é a série Animações, da disciplina de Pensamento Computacional. Na segunda etapa da série, alunos do 6º e 7º anos do fundamental, orientados pelo professor Pedro Lobo, venceram o desafio de produzir um zootrópio, objeto giratório usado para criar ilusão de movimento a partir de quadros e imagens, e também um vídeo sobre o trabalho.
Em texto escrito em parceria com o sócio Paulo Alvim, formado em ciência da computação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Lacerda faz ressalvas importantes sobre a necessidade de se harmonizar a atual formação complementar em temas digitais oferecida nas escolas brasileiras e as exigências sobre o tema incluídas na competência cinco da BNCC. “Informática é o reverso da computação. São como água e vinho. Em informática, os alunos aprendem a usar programas prontos, feitos por outros. Na computação, a fazer seus próprios programas e a criar novas soluções. O desenvolvimento do pensamento computacional não ocorre com a mera utilização do computador, mesmo que seja o mais sofisticado aplicativo já feito.”
A dupla acrescenta: “Projetos esporádicos na área não causam impacto relevante nos desenvolvimentos digital e socioemocional. Promover um ou dois projetos multidisciplinares por ano é louvável, mas insuficiente para fazer a diferença. Por isso, iniciativas baseadas em situações-problemas devem ser priorizadas e executadas continuamente durante todo o ensino fundamental”.
O Dante Alighieri, em São Paulo, segue o conselho. O currículo da área é dado por professores de tecnologia do maternal ao médio. A direção optou por não passar o conteúdo de forma isolada, e sim integrada a outras matérias em parceria com os professores dessas áreas de conhecimento.
“No maternal, iniciamos, com muito cuidado, as apresentações orientadas, mesmo porque várias dessas crianças, apesar da pouca idade, manipulam equipamentos da família em casa. Depois disso, ensinamos programação em cross content, ou conteúdo cruzado”, explica a diretora-geral pedagógica Valdenice Minatel. “Um exemplo: se os alunos do final do fundamental ou do médio desenvolvem algo relacionado a políticas públicas, a tecnologia digital traz recursos de programação para dar soluções de formato à apresentação e à divulgação da proposta, com a participação dos alunos na criação e desenvolvimento das ferramentas. A prática está sempre ligada à solução de um problema para os alunos entenderem que a tecnologia servirá para esses processos na vida pessoal e profissional”, ilustra a diretora.
O mesmo modelo de conhecimento cruzado é adotado nas turmas de fundamental e médio do Colégio Bandeirantes, também de São Paulo. Os ensinamentos são exercitados em projetos nas aulas de artes, história, matemática e português em parceria com os professores de ciência. Programação, códigos e pensamento científico são passados com densidade pelos professores da área digital. E a carga de conteúdo é complementada à base de consultorias e participações de professores e alunos em palestras e aulas de profissionais como Martha Gabriel, posicionada pela Online Universities entre os 35 professores mais especializados em novas tecnologias no mundo e entre os 50 profissionais inovadores do mundo digital brasileiro pela publicação especializada ProXXIma.
“Como a assimetria na formação de professores, pais e alunos no campo tecnológico ainda é grande, fazemos alfabetização digital sem abandonar a tarefa de passar conhecimento sobre programas e aplicações usados no cotidiano”, explica o diretor educacional de tecnologia do Bandeirantes, Emerson Pereira. Para justificar a postura, ele cita o resultado de um questionamento de uma grande pesquisa sobre o assunto, feita no final de 2018 com pais e alunos do colégio. “Quando a gente perguntou o que eles desejariam ver abordado sobre tecnologia digital, a maioria dos alunos disse querer, veja só, dominar bem o Word. E os pais, que desejariam ver os filhos controlando o Excel. Surpresas e, ao mesmo tempo, sinais de que a alfabetização digital, por mais que priorize a criação e o domínio no trabalho com algoritmos e seus aplicativos de uso, não pode partir do pressuposto de que todo mundo no nosso ambiente domina o básico dos programas e ferramentas mais disseminados”, acrescenta o diretor.
Na também paulistana Vereda, os alunos do médio passam antes por uma disciplina chamada Projeto de Vida, para refletir sobre sua personalidade, desejos e escolhas ligadas ao futuro. A partir disso, escolhem uma direção. “Essa cadeira faz com que o aluno escolha um caminho com muito mais consciência e segurança. A depender da opção, ele recebe formação complementar baseada em três pilares: programação e mundo digital, empreendedorismo, em aliança com o Sebrae, ou um aprofundamento em design, que, por sinal, é trabalhado em algum nível desde o fundamental I”, detalha a diretora pedagógica da escola, Carolina Rosignoli.
A unidade paulistana da americana Avenues The World School, inaugurada em agosto de 2018 (a escola segue o calendário dos Estados Unidos), tem hoje as mensalidades mais caras do Brasil, todas acima de R$ 8 mil. Nada mais previsível, portanto, que a estrutura de formação digital fosse plenamente compatível com os custos. A escola-sede, em Nova York, foi reconhecida recentemente, pela terceira vez seguida, para os anos de 2017 a 2019, como distinguished school (escola distinta) em educação digital por um gigante mundial do setor, a Apple. Antes, tinha recebido a designação dos períodos de 2013 a 2015 e 2015 a 2017.
Para a Apple, isso significa oferecer programas com critérios de inovação, liderança e excelência educacional na área digital, além de ambientes exemplares de ensino e aprendizado para alunos, educadores e equipe técnica. Todos os dados do sistema são hospedados na nuvem por meio de uma robusta rede sem fio de banda larga. Professores e alunos têm pleno acesso à tecnologia nas salas de aula, laboratórios maker e espaços de criação e desenvolvimento, o que inclui acesso sem fio a projetores interativos, compartilhamento de tela, câmeras IP e ferramentas acadêmicas para busca de soluções em ações ocorridas ou produzidas dentro e fora do colégio.
No colégio de São Paulo, os alunos têm uma disciplina específica de programação, do infantil ao 5º ano fundamental. “Até os seis anos, o conteúdo é trabalhado totalmente fora do ambiente digital. Usamos linguagem lúdica para ensinar os primeiros procedimentos e desenvolver habilidades nas crianças. O tempo de brincar e de aprender brincando é indispensável para um crescimento saudável e produtivo – e nós respeitamos isso com rigor”, explica a diretora de tecnologia educacional da Avenue paulistana, Lia Muschellack.
A partir do primeiro ano fundamental, a escola começa, lentamente, a estabelecer o contato das crianças com as máquinas e a fazê-las manipular dispositivos e aplicativos de programação relacionados a cada idade. Os mais comuns são os de linguagem de programação em bloco. Como nas montagens de Lego, eles permitem usar trechos inteiros, e não apenas frases, de linguagem de programação em comandos de algoritmos. Um dos mais conhecidos é o Scratch. No 6º ano, o aluno passa a ter uma aula semanal da atividade, além do conteúdo cruzado com outras disciplinas. A partir daí, os interessados em aprofundar ainda mais os conhecimentos sobre programação podem pedir ao colégio uma formação mais densa na área.
As iniciativas públicas e privadas nesse campo ajudarão os brasileiros e o país numa realidade admitida há anos em países como Estados Unidos, Japão, Estônia, Letônia, Dinamarca, Inglaterra, Alemanha, França, Suíça, China e Coreia do Sul: o domínio e a programação computacional se estabelecem rapidamente como uma linguagem tão indispensável quanto a oral ou a escrita. Que nessa corrida o Brasil não fique uma vez mais para trás.
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