NOTÍCIA
A primeira infância é um período crítico para trabalhar habilidades que serão essenciais ao desempenho escolar e à vida em sociedade. Entre elas, o autocontrole, a atenção e a capacidade de resolver problemas
Publicado em 17/07/2019
Por Telma Pantano, da revista Neuroeducação*
Ao contrário do que se acreditava até algum tempo atrás, o cérebro do bebê não é uma “tábula rasa” pronta a ser definida e moldada pelo ambiente nem permaneceu “inativo” até o momento do nascimento. Esses conceitos errôneos por muito tempo sustentaram ideias como a de que o recém-nascido precisava se manter em locais com pouca iluminação e estimulações auditivas, visuais, olfativas ou mesmo táteis para ir se “adaptando ao ambiente”.
Hoje se sabe que as crianças já nascem prontas para aprender. O cérebro dos bebês recebe uma gama imensa de estimulações ainda intraútero e, a partir dessas informações, eles já desenvolvem conceitos físicos e biológicos, chegando a estabelecer relações de causa e efeito, quantidade (comprovadamente até quatro elementos) e conceitos relacionados à língua nativa. Para os bebês, a manutenção dos estímulos já apresentados intraútero, como luz e sons, deve ser mantida para o reforço e a intensificação dos registros de memórias sensoriais que já começaram a construir antes de nascer.
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O cérebro dos bebês é ávido por receber estímulos ambientais e processá-los, desde que sejam respeitadas questões de ordem de apresentação, quantidade, velocidade e, principalmente, ritmo. Sabe-se, por exemplo, que os bebês têm preferência (melhor qualidade de respostas) a sons da fala humana do que a ruídos do ambiente; apresentam, desde os primeiros dias de vida, noções intuitivas de quantidade, memorizam sons, reconhecem e diferenciam acusticamente traços mínimos do idioma e demonstram preferências sensoriais por formas arredondadas e objetos simétricos e em movimento.
O cérebro do bebê desenvolve-se, assim, em resposta aos componentes genéticos (que sustentam as bases biológicas para o desenvolvimento) e ambientais. Dessa forma, durante toda a gestação e após o nascimento, o cérebro do bebê recebe e processa estímulos ambientais, ainda que reduzidos ou distorcidos. Essas informações são processadas e reforçam as sinapses que já foram estabelecidas a partir do período gestacional, uma vez que o cérebro do recém-nascido conta com uma superprodução de sinapses que serão seletivamente perdidas ao longo dos três primeiros anos, no processo chamado poda neuronal (descarte de neurônios). A experiência e a estimulação reforçam as sinapses já estabelecidas, ou seja, a aprendizagem modifica a estrutura física do cérebro, favorecendo assim a estabilização e a formação de novas sinapses.
Logo, temos nos primeiros anos de vida a necessidade de estimulações ambientais coerentes e conjuntas com a maturação cerebral, e os resultados dessas interações parecem exercer um papel fundamental ao longo da vida. Sabe-se que o cérebro se desenvolve mais rapidamente entre o nascimento e os primeiros anos de vida do que em qualquer outro período do desenvolvimento humano.
Quais habilidades devemos estimular (e observar se estão sendo estimuladas) nos primeiros anos de uma criança? Com essa dúvida em mente, o psicólogo Walter Mischel, da Universidade Columbia, desenvolveu uma série de pesquisas para descobrir se habilidades já presentes no começo da infância seriam indicativas de uma boa pontuação no SAT – teste americano de múltipla escolha semelhante ao Enem, que avalia desempenho escolar e competências sociais, cognitivas e emocionais – na adolescência e na vida adulta.
Mischel levou adiante vários experimentos com crianças entre 3 e 8 anos. Um deles se tornou bastante conhecido, o “teste do marshmallow”, que consiste em deixar a criança sozinha em uma sala com poucos estímulos, a não ser uma mesa, duas cadeiras e um prato com uma guloseima (no caso, um marshmallow). O pesquisador explicava à criança que ela poderia comer o doce imediatamente ou aguardar até que ele retornasse para a sala depois de uma breve ausência. Nesse caso, ele deixava claro, ela ganharia dois doces em vez de um por ter esperado. Todas as crianças optaram por esperar. No entanto, nem todas conseguiam cumprir o acordo e comiam o doce antes da volta do pesquisador – o que levava, no máximo, 15 minutos. De acordo com o estudo, aquelas que conseguiram esperar obtiveram escores mais altos no SAT, aplicado dez anos depois.
Esses estudos foram replicados em diversas partes do mundo, com resultados bastante similares. Mas o que foi avaliado? Essas pesquisas buscam mensurar aspectos da chamada função executiva. Entre eles, por exemplo, a capacidade de controlar impulsos tendo em vista um objetivo final (planejamento) – no caso do teste, resistir à tentação de comer um doce para poder ganhar dois dali a alguns minutos.
Aliás, o controle de impulsos é necessário para a relação com o ambiente e para interagir com outras pessoas. Crianças que conseguem postergar o ganho de recompensas – como esperar a sua vez para brincar no escorregador, aguardar para falar, esperar numa fila para ser atendida – tendem a se sair melhor em testes que envolvem raciocínio lógico e elaboração de textos, sendo capazes de formular melhor as estruturas linguísticas para a exposição dos pensamentos. Além disso, na adolescência, costumam resistir mais a assédios ambientais, como o uso de álcool e drogas, e também apresentam mais responsabilidade social. A escola e os pais são fundamentais, não apenas para transmitir modelos de autocontrole, mas para proporcionar às crianças situações em que ela possa exercitar essa habilidade.
A função executiva está diretamente relacionada ao desempenho escolar, uma vez que a aprendizagem requer organização de processos atencionais e de memórias para que possa se estruturar e se consolidar. A função executiva desenvolve esse papel organizador, atuando diretamente na cognição, na emoção e no comportamento e possibilitando os processos de aprendizagem consciente, normalmente com mediação da linguagem.
Como fornecer, então, estímulos adequados ao desenvolvimento e à maturação cortical, que ocorre de forma tão predominante nos primeiros anos de vida? A estimulação de bebês deve ser muito cuidadosa e considerar parâmetros como seu padrão de vigília-sono (bebês dormem cerca de 18 horas e crianças pequenas, 15, em períodos intercalados) e a intensidade e frequência dos estímulos apresentados, uma vez que o bebê recebia informações (luz, sons e interação com os pais, por exemplo) em intensidade bem mais reduzida enquanto estava no útero. A manutenção do padrão de estímulos após o nascimento e respeito à fisiologia do sono comprovadamente trazem ao bebê satisfação e conforto.
Esses estímulos devem ir gradualmente aumentando e se aproximando das situações ambientais. O cérebro de pré-escolares estrutura-se fundamentalmente através da consistência ambiental e emocional. É essencial para o cérebro de uma criança que ela seja exposta a rotinas e limites. Estudos comprovam que ambientes caóticos, desordenados e estressantes são influências altamente negativas para o desenvolvimento e a maturação cortical. A rotina e a continência emocional e cognitiva fornecem as bases fundamentais para a seleção de sinapses e para a organização cerebral necessária ao longo de sua vida, facilitando inserção social, educacional e familiar.
Programas de estimulação devem se basear no nível de desenvolvimento atual da criança e oferecer oportunidades para a exploração lúdica e motora em situações individuais e em grupo, visando à aquisição de conceitos e à integração de aprendizagens através das explorações motora, sensorial, social e emocional.
Dessa forma, os anos pré-escolares estão situados em um período crítico para o desenvolvimento cerebral. É essencial o fornecimento de estímulos adequados para a aquisição de habilidades fundamentais, subjacentes às exigências dos ambientais sociais, educacionais e familiares. Um ambiente estimulante deve fornecer a possibilidade de a criança estruturar relacionamentos positivos, tanto horizontal (com crianças da mesma idade) quanto verticalmente (com os mais velhos), além de rotinas e consistências regulares que promovam a oportunidade de atividades repetitivas, capazes de possibilitar formação e aquisição de conceitos, aprendizagens através de estímulos sensoriais e motores e exposição a linguagens variadas e interação nos aspectos verbal e gestual.
Evidências indicam que programas educacionais efetivos e bem planejados nos primeiros anos de vida têm impacto positivo no desenvolvimento infantil, assim como no sucesso da vida educacional de crianças, além de se caracterizar como um retorno certo e efetivo de investimento econômico e social. Programas escolares que visam à pré-escola trazem altos retornos para a sociedade e a criança, como a continuidade do bom desempenho a longo prazo.
*Telma Pantano é fonoaudióloga e psicopedagoga do Serviço de Psiquiatria da Infância e Adolescência do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP), pós-doutora em psiquiatria pela USP, autora do livro Neurociência aplicada à aprendizagem (Pulso Editorial, 2009)
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